The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 37
Capítulo XXXVII - 25 de Dezembro de 1872




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Delia jamais tivera apreço à riqueza ou joias. Para ela, não havia nada mais importante do que estar ao lado das pessoas que amava, e os olhos brilhantes das três crianças era atualmente o que possuía de mais valioso. Observava seus movimentos empolgados com um sorriso amável no rosto. O barulho decorrente da agitação parecia incapaz de ser contido, mas não a incomodava, no final das contas. Por um breve instante, a jovem permitiu-se apreciar a acolhedora sensação de plenitude, ignorando propositalmente a temporariedade do sentimento.

Todos os anos, o Natal era acompanhado por temperaturas baixas, nuvens cinzentas e um vento cortante, o que em nada afetava a euforia dos pequenos. Dimitri e Gregory estavam bastante entretidos numa luta de espadas de madeira, enquanto Rosetta encontrava-se hipnotizada por sua nova boneca. A camponesa gostaria de lhes proporcionar muito mais, mas a alimentação e as vestimentas novas já lhe custavam demasiadamente caro. Naquela manhã, ela levantou-se de sua cama com o semblante pesado, acompanhada pela convicção de que precisaria enfrentar olhos tristonhos e decepcionados, assim que dissesse que não conseguira comprar sequer um presente que pudesse ser repartido entre eles. Foi com um misto de espanto e incredulidade que recebeu um caixote recheado de mimos, todos trazidos diretamente do castelo de Odarin pelas mãos de Elliot e Marco.

O encanto com os brinquedos novos não permitia que nenhum deles lhe desse a devida atenção, mas ela não se incomodava. O alívio de ver que o Natal dos pequenos fora salvo por seus dois anjos da guarda lhe bastava. Afora isso, os rapazes trouxeram ainda sobras das comemorações realizadas na vila dos serventes, o que lhe daria pouco mais de uma semana sem gastos no mercado. Após meses de contenção de gastos, era como tirar um enorme peso das costas, permitindo-lhe respirar com certo alívio.

— Preciso ir agora — a ruiva anunciou, enquanto erguia-se e batia a poeira da saia de seu vestido. — Eu estarei de volta antes do entardecer, está bem? Comportem-se enquanto isso!

As crianças confirmaram em uníssono, enquanto acenavam apressadamente, para logo retomarem a atenção aos seus presentes. Elliot se limitou em acenar com um sorriso acanhado no rosto, observando-a entrar em casa para buscar alguns pertences antes de partir. Marco ensaiou o mesmo gesto, mas vê-la afastar-se fez com que se sentisse estranhamente inquieto, levando-o a segui-la quase que imediatamente.

— Espere um pouco. Por que tem de ir, ainda mais tão cedo? — o moreno questionou, mas logo sentiu-se constrangido de tê-lo feito. A moça já não lhe devia explicação alguma, e mesmo assim ele não conseguia conter seu desejo de fazer parte daquela rotina ou de suas decisões, por mais simples que fossem.

— Houve um enorme banquete na residência dos Chevalier, que certamente se estendeu durante boa parte da madrugada. Sei que ainda devem estar dormindo a essa hora, mas haverão de querer tudo limpo e organizado quando despertarem — Delia retrucou, enquanto concentrava-se em amarrar com firmeza a capa ao redor de seu torso. Era seu único agasalho e ela não gostaria de vê-lo voando para longe por conta de uma inesperada rajada de vento. — Mas não se incomode com isso, você pode ficar aqui o tempo que desejar.

— Delia, por mais que eu aprecie a companhia das crianças, não é somente por elas que venho aqui sempre que tenho chance — Marco respondeu, sentindo-se tomado por uma repentina onda de coragem. Não era de seu feitio fazer declarações com tanta clareza, mas sentia que, se assim não o fizesse, era provável que não tivesse a audácia de tentá-lo novamente. — Para ser sincero, eu ainda não compreendo bem o que aconteceu. Foi difícil admitir a mim mesmo que você já não compartilhava mais seus pensamentos e preocupações comigo. Eu passei a sentir que a minha presença era algo de menor importância na sua vida.

— Por céus, não diga tolices! — ela disparou, interrompendo sua fala e, consequentemente, sua linha de raciocínio equivocada. — Você sabe que não há nenhuma pessoa em Odarin a quem eu preze mais do que você.

Em Odarin”. A restrição não lhe passou despercebida, mas o rapaz nada disse. Sabia bem que a jovem não era oriunda daquelas terras e que tinha questões pendentes com o seu passado. Tratava-se de uma conclusão elementar, fazendo-o sentir-se tolo por não perceber a dimensão da situação anteriormente. Havia um gosto amargo em sua boca e ele se arrependia de não tê-la deixado partir sem protestar. O que faria se ela começasse a dizer coisas as quais ele não estava preparado para ouvir?

— Sinto muito por ter dado causa ao nosso distanciamento de maneira tão repentina e sem as devidas explicações. Acredite em mim quando digo que compartilharia minhas razões se pudesse fazê-lo. Sei que é isso que deseja. — Seus olhos encontravam-se fixos um no outro. A jovem sequer reparou que havia dado um passo à frente, minorando a distância entre eles. — Mas eu não posso. Nossa melhor alternativa é esquecer, pois só assim conseguiremos evitar ainda mais sofrimento.

— Terá de me desculpar, Delia, mas eu não consigo esquecer você — o carpinteiro confessou, com a voz baixa e receosa. Com uma das mãos calejadas e cheias de pequenas cicatrizes advindas das farpas de madeira, ele acariciou o rosto corado da ruiva. — Não importa o quanto eu tente, é sempre para cá que meus pensamentos me trazem.

Embora não se permitisse transmitir aqueles sentimentos em palavras, ela tinha certeza de que seu rosto e suas reações denunciavam boa parte de seus pensamentos. A distância que havia forçosamente estabelecido não mudava o fato da incontestável ligação existente entre eles. Essa inabalável conexão foi responsável por fazê-los empregarem os passos necessários para acabar com a distância física, ainda que espiritualmente estivessem tão distantes. Era como um mudo pedido de perdão, que partia de ambos e tinha efeitos amplos.

Havia um turbilhão de sensações envolvidas naquele abraço. Delia sentia o calor proveniente do corpo do rapaz aquecê-la por completo, conferindo-lhe ainda uma espécie de conforto e segurança que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Marco, por sua vez, sentia seus dedos formigarem de ansiedade e esforçava-se em refrear o desejo de beijá-la ao menos mais uma vez. Nutriam o mesmo sentimento um pelo outro, e mesmo assim não conseguiam atingir um ponto de sintonia que os permitissem ficarem juntos. Enquanto a ruiva tivesse assuntos íntimos de seu passado ainda pendentes de resolução, seria incapaz de doar-se por completo. Enquanto o rapaz não conseguisse se desvencilhar da ideia de um relacionamento sem segredos, ele não suportaria permanecer ao lado dela.

Apesar de geograficamente próximos e detentores de personalidades que se completavam com uma estranha perfeição, ainda havia muito a ser superado pelos dois. Se conseguiriam ultrapassar as barreiras invisíveis que os separavam, era uma pergunta que os importunava a todo momento.

— Eu preciso ir agora — ela afirmou, com um desânimo quase palpável. Lutava contra o ímpeto de permanecer ali, escondida dos problemas que suspeitava que a perseguiriam para sempre.

Marco ainda segurava-lhe a mão, mas percebendo a estupidez que estava prestes a fazer, soltou-a logo em seguida. Não fazia sentido impedi-la de viver. Não era assim que gostaria que tudo acontecesse. Mais que qualquer outra coisa na vida, desejava ardentemente que ela ficasse, desde que por vontade própria.

Sem impedimentos físicos, Delia afastou-se com passos lentos, mas decididos. Estava partindo, mas não lhe faltava vontade de ficar. Não lhe parecia justo impedi-lo de viver. Não era assim que gostaria que tudo acontecesse. Mais que qualquer outra coisa na vida, desejava fortemente que ele pudesse aceitá-la, mesmo com todas as suas limitações.

Incapazes de chegar a um consenso, eles se separaram mais uma vez, enquanto almejavam apenas que aquela não fosse a última.



— Mas quem poderia imaginar que a menina agitada que cresceu em minha casa se tornaria uma legítima rainha? — inquiriu de forma retórica, enquanto exibia um meio sorriso sugestivo para a jovem rainha. — Seu pudesse prever esse tipo de acontecimento, certamente teria sido mais solícito com os seus pedidos.

— Não se culpe por isso, imagino ninguém poderia antever essa situação — Sarah comentou, em meio a um sorriso verdadeiramente amável. Tinha um genuíno apreço pelo Conde Avelar, que se intensificava ao recordar tudo que o fidalgo fizera por sua família anos antes. — Eu mesma jamais havia vislumbrado a possibilidade de governar Odarin um dia. E ainda assim, aqui estamos nós.

— É realmente uma pena que Allen não tenha tido um herdeiro antes de falecer. Teria lhe poupado alguns aborrecimentos, eu imagino.

O comentário amargo não poderia ter partido de outra pessoa senão Charlotte. Desde que chegara em Hallbridge para as comemorações natalinas, a ruiva lhe direcionava a todo instante olhares desdenhosos enquanto torcia os lábios, à espera do momento em que estariam à sós para tentar atingi-la com todo tipo de impropérios. “Não se deixe levar por discursos inconvenientes ou alfinetadas desagradáveis, pois esse tipo de recepção irá acompanhá-la para sempre. Responda-os de maneira polida e mostre que você está acima de tudo isso”, ela quase podia ouvir Phillip sussurrar tais palavras em seu ouvido. Com aquilo em mente, ela respirava fundo e respondia com serenidade.

— Permita-me discordar, pois duvido muito que esta seria a solução mais adequada ao caso — respondeu, sem alterar seu tom de voz, contendo a ânsia de retribuir a provocação. — Crescer sem a presença dos pais está longe de ser a melhor maneira de resgatar um reino de uma crise. Mas posso lhe garantir que Beatrice teria feito um trabalho excepcional na condição de rainha.

— Fique tranquila, estou certo de que também fará tudo que está ao seu alcance para melhorar essa situação. — Com isso, o Conde encerrou o assunto, já ciente de que o relacionamento entre as duas jamais fora amistoso ou qualquer coisa remotamente similar a isso. — Quanto a você, Edgar, deve estar igualmente empenhado na recuperação econômica de Odarin, imagino.

— Na realidade, não tenho tido muita utilidade nesse sentido. — A resposta soou desinteressada, refletindo com perfeição o estado de espírito do Duque. Enquanto balbuciava as palavras sem ânimo, o rapaz mexia em sua comida com a ponta do garfo, sem apetite suficiente para degustar dos sabores que compuseram sua infância. — Sarah está sendo tão bem assessorada quer sequer sente a necessidade de minha ajuda.

— Exagero seu — ela pontuou, com uma nota de aborrecimento presente em sua voz. Seu consorte vinha empregando comentários desagradáveis desde que chegaram em Hallbridge. As falas cumpriam com o papel de deixar-lhe desconcertada diante de suas companhias, mas ela permanecia compenetrada em evitar qualquer confronto. “Não perca o controle, haja como uma rainha”.

— Longe disso — ele retrucou, largando o garfo sobre a mesa com impaciência. — Nas últimas semanas, tenho tido mais horas vagas do que poderia desejar.

— Parece que ser consorte não é tão divertido quanto ser rei, meu caro irmão — Gilbert mencionou, em meio a uma risadinha, a qual Charlotte acompanhou de imediato.

Sarah mal conseguia acreditar no que se passava diante de seus olhos. Poderia esperar isso uma zombaria daquelas de qualquer pessoa, mas ver Edgar preparando terreno para ela fosse motivo de risadas era tão inacreditável quanto aviltante. Além disso, eram poucos aqueles com quem se sentia confortável a compartilhar suas questões pessoais e, apesar de todo o apreço que possuía pela Família Avelar, eles não estavam incluídos nesse pequeno universo de pessoas.

Na ocasião, Charlotte e Gilbert trocavam olhares recheados de uma estranha cumplicidade. Não tinham certeza se o Conde vinha relevando os comentários atravessados de modo a assegurar o clima amistoso do desjejum, ou se estava velho demais para perceber a troca de farpas ocorria ali. Tudo que sabiam era que pisar nos calos da jovem rainha era um passatempo muitíssimo divertido.



— Graças a Deus, você chegou! Eu estava prestes a ficar louca aqui.

— O que houve? — Delia questionou, logo que fechou a porta dos fundos da casa da Família Chevalier. — Onde está Emma?

— Acamada, justo num dia como hoje, consegue acreditar nisso? — A servente de pouco mais de trinta anos comentou com evidente mal humor, enquanto tentava conciliar os muitos afazeres pendentes com a quantidade escassa de mãos trabalhando. — Você nem ao menos imagina o estado que a sala de estar se encontra. Tentei arrumar enquanto preparava o desjejum deles, mas não posso me afastar dessas panelas por mais que alguns instantes. Precisamos recolher a louça, lavar, secar, arrumar a mesa e ainda...

— Tudo bem, Julie, já entendi o que quer dizer — interrompeu a ruiva, ciente de que se não o fizesse a mais velha não encerraria seus lamentos tão cedo.

Não necessitando de mais que um instante para retirar a capa e colocar seu avental amarelado, a jovem tomou uma bandeja em mãos e seguiu para a sala de estar. Embora já soubesse que Julie era conhecida por ser exagerada em suas falas, desta vez teve de admitir para si mesma que seu relato havia sido mais que verídico. Havia copos e taças espalhados por todo o cômodo, as cadeiras estavam muito distantes dos seus devidos lugares e o chão precisava urgentemente ser lavado. Parecia difícil acreditar que ela e Emma havia deixado aquele lugar impecável apenas dois dias atrás. “Se a nobreza não tivesse tantos empregados a seu serviço, ninguém poderia distingui-los de um grupo de porcos preguiçosos”, pensou enquanto equilibrava bandeja entre a cintura e o braço esquerdo, colhendo os utensílios sujos com a mão livre.

Quando chegou ali, Delia poderia jurar que trabalhar naquela casa seria como tortura, mas a realidade se mostrou muito mais agradável do que vinha imaginando. Apesar de todo o desleixo dos moradores, havia muito menos do trabalho ali do que nas hospedarias. Além disso, o inconveniente rapaz que lhe concedera aquela oportunidade não havia mentido: Phillip nunca aparecia para visitar a família, o que ela considerava bastante cômodo. Aquele trabalho a permitia até mesmo passar algum tempo a mais com seus pequenos, algo que apreciava imensamente. Eles cresciam rápido até demais.

Seguindo para a sala de visitas, ela ponderou se deveria abrir as janelas por um instante, no intuito de amenizar o cheiro de mofo proveniente dos livros que abarrotavam as estantes do local, mas rapidamente desistiu da ideia. De início, seus passos se retiveram com a visão diante de si, mas o temor logo se mostrou injustificado. Sentado de maneira desleixada sobre uma poltrona próxima a janela, Phillip portava um ar pacífico enquanto dormia. Sua cabeça pendia sobre um dos punhos, demonstrando que seu semblante não se suavizava nem mesmo quando estava desacordado.

Ver que ele tinha comparecido a ceia de Natal dos Chevalier era um motivo razoável para se surpreender. Ele não aparentava ter qualquer apego com os demais membros de sua família e o mesmo poderia ser dito de seus pais. As raras vezes em que era mencionado durante as refeições, seu nome não era precedido por nenhum bom adjetivo. Somente depois de conhecer sua realidade familiar foi que Delia percebeu o motivo para que ele tivesse uma personalidade tão inconveniente e desagradável. Ainda assim, havia chegado a conclusão de que o rapaz não era todo uma má pessoa.

Por um momento, pensou que poderia simplesmente deixá-lo lá, repousando. No entanto, não tardou para que se desse conta de que a lareira já havia se apagado. A temperatura do cômodo não estava insuportável, mas dormir numa poltrona sem nenhum cobertor não deveria ser muito confortável.

— Você é mesmo uma tola — murmurou consigo mesma, enquanto se dirigia até um armário escondido debaixo da escada.

Tomando uma manta felpuda em mãos, ela retornou à extremidade da sala de visitas e cobriu-o com a coberta da forma mais delicada que pode empregar. Não queria sequer imaginar a quantidade de asneiras que seria obrigada a ouvir se ele acordasse e a encontrasse empregando tamanho gesto de dedicação. Depois de se certificar que já não havia mais nenhuma área suscetível ao tempo frio, ela afastou-se no intuito de continuar com suas obrigações.



— Eu não consigo crer na maneira como Edgar vem se portando, tal qual uma criança mimada. Não quero acreditar que tudo isso seja por conta da nomeação de Philip ao cargo de Secretário Real — Sarah bradou, de modo irritadiço e revoltado. Jamais havia imaginado aquele tipo de tratamento distante e desrespeitoso de seu consorte, mais parecia se tratar de uma outra pessoa, a quem ela desconhecia por completo. — E pensar que Evangeline deixou de fazer esta viagem conosco achando que seria o momento adequado para uma conciliação. Eu o convidei para uma cavalgada, mas você acha que ele deu ouvidos? Preferiu se isolar numa sala escura, discutindo investimentos, enquanto se afoga em bebida e aposta verdadeiras fortunas numa mesa de jogo. Prefere ficar com Gilbert do que aproveitar o dia ao ar livre comigo. O que acha disso tudo?

Com um relincho baixo, a égua balançou a crina, indicando ao seu modo primitivo que escutava e concordava com cada palavra proferida pela jovem rainha. No entanto, a resposta foi pouco eficaz em melhorar o ânimo da menina, que trazia consigo um ar desconsolado. A brisa fresca e com cheiro de água salgada cortou o campo, balançando com força sua capa azul escura. Estava sozinha e por essa razão escolhera a combinação de roupas mais discreta que sua mala pôde lhe proporcionar. Por vezes, ela sentia saudades do anonimato e da falta de responsabilidade. Libertar-se desses fardos, ainda que de maneira temporária, já era um alívio. A sensação de leveza a fazia pensar no quanto desejava não pertencer a nobreza.

Seu único saldo positivo daquela viagem seriam as horas de descanso, em que permaneceu sentada no jardim ou cavalgando pelas estradas de terra batida, tal como costumava fazer anos antes. Tantas coisas mudaram desde então que seria impossível não se sentir atordoada e sem chão durante boa parte do tempo. O comportamento de Edgar era uma das mudanças que mais lhe incomodavam. Durante um único dia, não eram poucas as vezes que se via saudando o ar descontraído e amistoso do jovem Avelar. Embora não soubesse precisar o que havia ocasionado tamanha mudança, gostaria ao menos de descobrir o que poderia ser feito para reverter aquela situação.

— Boa tarde, senhorita.

O cumprimento chamou-lhe a atenção, e só então se deu conta de uma senhora que caminhava na direção oposta à sua, levando consigo uma cesta de frutas. A camponesa cruzou seu caminho com passadas constantes e decididas. Não hesitava ou vacilava, e por mais ordinária que aquela ação pudesse parecer, tinha sido responsável por desencadear uma reação dentro de si.

Sarah puxou as rédeas e tornou a encará-la por cima do ombro, observando-a se afastar em velocidade constante. A mulher tinha os fios castanhos, um pouco mais escuros que os seus. Era magra, mas ainda assim parecia ter um corpo forte e saudável. A pele era ligeiramente queimada do sol, algo comum em quase todos os habitantes de Hallbridge. Embora não soubesse precisar o quê, ela podia perceber algo de familiar naquela distinta senhora. Era como se já a tinha visto antes, ou ao menos alguém muito semelhante.

— Está vendo aquela mulher, Artemis? — a menina questionou, e logo a égua soltou o ar pelas narinas com força, mostrando-se atenta à sua fala. — Pode parecer estranho o que irei dizer, mas eu a invejo. Ela caminha com segurança, não tem medo do que possa vir pela frente. Talvez eu fosse mais corajosa se pertencesse à plebe, ao invés da nobreza. O que pensa disso?

Artemis bateu com a pata dianteira na terra e relinchou com impaciência, enquanto erguia o focinho, na tentativa de farejar o ar. Olhando para o alto, pôde perceber que o céu começava a tornar-se cinzento, denunciando que aquela seria uma noite chuvosa. Batendo as rédeas com firmeza e empregando um impulso com os pés, ela trotou em direção à casa da Família Avelar sem pestanejar, temerosa de que a chuva a alcançasse antes que ela conseguisse chegar em casa.

Por sorte, estava mais próxima dos domínios do Conde Avelar do que havia imaginado. As terras no entorno de sua morada eram extensas, além de precedidas por uma vasta plantação de diferentes tipos de grãos. Enquanto cortava os campos de trigo, foi com certa nostalgia que se recordou de suas pequenas expedições, explorando aqueles caminhos que mais se assemelhavam a um labirinto, deixando a pobre Evangeline enlouquecida com o seu sumiço. Quando mais nova, tudo lhe parecia muito maior e mais ameaçador, mas essas conjecturas em nada abalavam sua bravura infantil e ingênua. Agora, os contornos do mundo tinham traços mais nítidos e seus obstáculos eram bem mais facilmente identificáveis. Neste caso, o que ela tanto temia? De onde vinha a incômoda necessidade de aceitação e chancela de seus atos? Era o tipo de questionamento que ela gostaria de poder responder.

Somente quando a jovem finalmente adentrou na extensa propriedade é que pôde suspirar aliviada. Conseguira escapar dos primeiros pingos de chuva e, além disso, sentia-se tomada por uma repentina onda de motivação, que julgava vir da imagem da camponesa com quem cruzara na estrada.

Phillip dizia-lhe com frequência que ela conseguiria tudo o que quisesse, a partir do momento que passasse a fazer bom uso das palavras e inspirasse respeito nas demais pessoas. Embora não tivesse uma ideia muito certa de como poderia fazê-lo, este detalhe não a impediria de tentar, ainda que falhasse no processo.

Com aquilo em mente, a jovem deslocou-se até o salão de jogos, onde tinha certeza que Edgar estaria. O servente que guardava a porta parecia relutante em conceder-lhe passagem, mas acabou tendo que fazê-lo, pois não teria como dizer não à rainha. Uma vez lá dentro, seus olhos logo começaram a lacrimejar, por conta da fumaça advinda dos cachimbos e charutos, aliado ainda ao cheiro forte do fumo, mas ela resistiu ao ímpeto de tecer qualquer comentário a respeito. Era visível o olhar de desconforto dos demais, incomodados com uma presença feminina num ambiente onde mulheres eram terminantemente proibidas

Aos fundos, sentado num sofá com uma pequena taça de conhaque em mãos, Edgar assistia a um jogo de pôquer com um olhar distante e desinteressado. Esgueirando-se entre as mesas e poltronas, Sarah conseguiu alcançá-lo em pouco tempo, mas o rapaz sequer se dignou a mover os olhos em sua direção para recepcioná-la.

— Eu gostaria de conversar com você — ela disse em voz baixa, quase num sussurro, de modo a não chamar ainda mais a atenção dos outros convidados presentes. No entanto, nem mesmo sua fala parecia despertar o interesse do Duque.

— Estou ocupado agora — ele retrucou, sua voz transbordando descaso com suas palavras. Aquele tom debochado não era exatamente uma novidade e aparecia com frequência todas as vezes em que seu consorte exagerava no consumo do álcool. — Talvez numa outra hora.

— Acho que já teve o suficiente por hoje, não concorda? — O questionamento sutil foi acompanhado pelo delicado gesto de sua mão, que se punha sobre o copo, obstruindo a passagem ao que o rapaz estava prestes a reabastecer-se de mais bebida. — Vamos, por favor, eu realmente preciso falar com você.

— Não está satisfeita em comandar Odarin como bem entende, agora pretende também controlar minha própria vida também? — retrucou com impaciência, enquanto afastava sua taça com brusquidão.

A frase escapou por seus lábios de maneira ríspida e arruinou todo o clima de discrição que a jovem tentava criar. Agora, de maneira muito mais intensa do que antes, todos os convidados e encaravam com um misto de curiosidade e escárnio. Até mesmo os jogadores tiraram os olhos de suas próprias cartas para atentar no clima animoso que parecia se formar ali.

— Embora eu não pretenda controlar sua vida, tenho certeza de que cumpriria essa função com muito mais zelo do que você, caso ela estivesse sob minha responsabilidade — rebateu, com uma irritação quase palpável e sua voz soando bastante audível desta vez. O próprio Edgar sentiu-se acanhado debaixo do olhar tão feroz que lhe era direcionado. Por um instante, ela quase se assemelhava com Allen em seus momentos de ira. — Não me procure enquanto não recuperar os estilhaços de razão e bom senso que você trocou nestas bebidas desprezíveis.

Girando sobre seus calcanhares, a jovem rainha não precisou de mais que alguns segundos para cruzar o cômodo e abandoná-lo com seus companheiros boêmios embalados por um silêncio profundamente constrangedor. Desta vez, nem mesmo a atenção de todos pesando sobre suas costas pareceu lhe incomodar. Não passava de um mero detalhe, insignificantes demais diante de seus verdadeiros problemas.



— Você realmente precisava armar uma cena como esta? — Edgar indagou, enquanto fechava a porta de seu quarto, encostando-se nela com os braços cruzados e a expressão fechada.

— Está incomodado por eu tê-lo constrangido? — a jovem retrucou de maneira retórica e sarcástica. Àquela altura, já não estava mais preocupada em manter seu tom de voz baixo e sustentar uma postura adequada para uma rainha. Sua mente estava cheia de pensamentos e precisava livrar-se deles o mais rápido possível. — Talvez agora consiga visualizar como venho me sentindo nos últimos dias. Consegue imaginar quantas vezes me senti constrangida com seus comentários desagradáveis e alfinetadas? Eu gostaria ao menos de compreender o que fiz para merecer esse tipo de tratamento, que nem ao menos parece com você!

— Eu realmente preciso lhe dizer? Porque tudo me parece bastante óbvio.

— Edgar, me ajude a compreender — ela praticamente suplicou, pondo as mãos na cintura de modo a evitar que seus dedos encontrassem algum objeto de valor para amortizar sua raiva. — Não quero imaginar que tudo isso tem sido por conta da nomeação de Phillip como Secretário Real. Sei que fui precipitada em minha decisão, mas ele tem se disposto a nos ajudar e tem o feito com muita maestria.

— Não teríamos que arcar com os custos de outro funcionário se tivesse me deixado cuidar de tudo — o jovem Avelar rebateu com irritação. Havia muito mais do que aquilo envolvido em sua mudança de comportamento, mas revelar tais detalhes seria o mesmo que assinar sua sentença de morte. Sentia-se encurralado e a sensação o fazia tornar-se cada vez mais defensivo em suas falas, sequer ponderando o efeito que aquilo poderia causar em sua companhia. — Era isso que eu teria lhe dito, caso tivesse sido consultado desse seu intento, mas parece que sente um prazer especial em agir de maneira escusa.

— “Escusa”!? Está ao menos ouvindo o que está dizendo? — inquiriu, estupefata por estar ouvindo aquele tipo de declaração. Em uma rápida pausa, a menina procurou respirar fundo, mas então tentar explicar seu ponto de vista. — Ouça: pela primeira vez na vida compreendo um pouco o funcionamento de Odarin. É claro que ainda me falta muito, mas ao menos sinto que estou fazendo parte disso tudo. Eu não quero ter que me esconder atrás de outra pessoa ou virar uma marionete nas mãos de alguém. Sabe que sempre tive o desejo de melhorar as condições de vida do meu povo e agora finalmente tenho meios de fazê-lo. Por que é tão difícil para você aceitar e me apoiar nisso?

— Porque é um esforço inútil e desnecessário. Você não entende de política ou economia, tentar aprender agora apenas nos custará um tempo do qual não dispomos.

— Então esse é o problema? Acha que sou tão estúpida que não posso aprender? Acredita mesmo que eu preciso de um homem que decida tudo por mim?

— Eu não disse isso… — arriscou com uma voz incerta, mas não teve oportunidade de finalizar seu pensamento. Sua fala fora cortada por um vaso de flores, que fora vítima da ira de sua esposa e voou da escrivaninha de onde estava até a parede do outro lado do cômodo, estilhaçando-se em mil pedaços há poucos centímetros de onde o Duque se encontrava.

— Mas foi isso que pensou! — ela esbravejou com fúria, sentindo uma onda de revolta tomar conta de si. — Como ousa me subestimar dessa maneira? Acha mesmo que pode tomar a frente das minhas decisões? O que há de tão terrível em deixar que eu governe?

— Porque quando você toma a frente das coisas e decide por si só, acaba perdendo o controle e comete erros terríveis. Enquanto faz tudo à sua maneira e brinca de governar um reino em crise, eu sou responsável por reparar seus atos de imprudência. Diferentemente do que possa imaginar, não é o trabalho mais fácil ou gratificante do mundo.

— Eu sou a rainha! Eu sou responsável por governar Odarin, ouviu bem? — Seu grito desesperado ecoou por todo o cômodo e fez com que Edgar juntasse as sobrancelhas, seu semblante tornando-se sombrio, de um modo que jamais estivera. — Se porventura houverem erros, então serão os meus erros, e não os seus!

— Então continue — ele a desafiou, encarando-a de cima, já longe de preocupar com as boas maneiras na hora de se manifestar. — Proceda exatamente da maneira como tem feito e assista da torre mais alta do seu castelo o tormento do povo por conta da sua teimosia.

Naquele momento, palavras duras ou acusações diretas não eram mais eficientes em aliviar Sarah de sua raiva. Sentia-se frustrada e traída ao mesmo tempo, incapaz de acreditar que tudo aquilo que ouvia vinha sendo proferido por ninguém menos do Edgar. Incapaz de conter a si mesma, ela ergueu a mão direita num gesto irracional, na intenção de atingir o rosto do Duque e fazê-lo calar-se de uma vez por todas. No entanto, a agressão não aconteceu, pois ele segurou seu punho ainda no ar, centímetros antes de atingir-lhe o rosto. Tinha os dentes trincados e o rosto vermelho. Nem mesmo a revolta que sentia na ocasião seria capaz de fazê-lo levantar a mão contra a jovem à sua frente. Com isso em mente, ele apenas soltou seu punho de maneira indelicada, tornando-lhe as costas e abandonando o quarto da forma mais rápida que pôde empregar.

Suas mãos tremiam violentamente e sua garganta estava seca, como se não bebesse nada há dias. Enquanto afastava-se com pressa, no intuito de evitar qualquer atitude impensada que pudesse se arrepender depois, ele podia ouvir a voz de Allen martelando em sua mente. “Eu o alertei antes, você é mais parecido comigo do que imagina”, dizia-lhe em tom de deleite, certamente deslumbrado de vê-lo perder o controle.

Sequer prestava atenção em seus passos, apenas deixava que seus pés o conduzissem de maneira automática. Atrás de si, podia ouvir os passos, assim como o insistente chamado de Sarah. A menina jamais compreenderia, de modo que fazia sentido em compartilhar parte de sua loucura com ela. “Por que está fugindo assim? Não é como se alguém fosse sentir falta”, repetia a voz do antigo monarca, de modo quase sedutor. Já estava praticamente correndo, mas suas tentativas não surtiram o menor efeito. Era impossível fugir quando seu maior tormento habitava dentro de sua própria cabeça.

Quando finalmente ergueu os olhos, percebeu que estava do meio do jardim, ao lado de fora da extensa morada. A chuva estava intensa e era impossível enxergar mais que um palmo de distância. No entanto, crescera naquela propriedade e como um estalo, recordou-se de que os estábulos ficavam localizados ao lado esquerdo. A súbita memória o fez concluir que não havia forma melhor de sair daquele ambiente enlouquecedor do que a cavalo.

— Edgar, volte para dentro imediatamente! — proferiu a rainha no auge de seu desespero, sem compreender o que fizera com que ele começasse a correr de maneira insana, ainda mais expondo-se à uma tempestade como aquela.

Apesar de suas tentativas, o Duque não lhe deu ouvidos e ao vê-lo caminhar em direção à área destinada aos cavalos fez com que uma flecha de angústia praticamente perfurasse seu peito. Havia algo terrivelmente errado com ele e sabia que deixá-lo sair em meio a um temporal como aquele seria como implorar por uma tragédia.

Tomando uma luminária à óleo em mãos, ela o seguiu com pressa, ignorando até mesmo as barras de seu vestido que rapidamente se tornaram enlameadas por conta da terra molhada. O chão afundava debaixo de seus pés e era difícil se locomover quando mal conseguia enxergar nada à sua frente. Demorou muito mais do que gostaria até que conseguisse atingir a entrada dos estábulos.

— Que pensa que está fazendo? — ela questionou assim que adentrou no ambiente escuro, vendo-o abrir uma das baias no intuito de tomar um cavalo para si. Tinha de gritar, pois o som da chuva acompanhado pelos trovões tornava qualquer fala inaudível naquele local. — Não pode sair com um tempo desses, seria loucura!

— Apenas fique longe de mim! — o rapaz esbravejou com certo desespero, como se estivesse vendo um fantasma diante de si. Ao seu lado, os cavalos se agitavam cada vez mais, devido a tempestade que parecia piorar cada vez mais. A gritaria, por sua vez, não ajudava em nada a acalmar os equinos.

— De jeito nenhum. Não quando você está claramente longe da sua razão — Sarah tentou argumentar, mas antes que pudesse prosseguir uma sombra escura acobertou a figura dos dois, fazendo com que ela gritasse com toda a força de seu peito: — Edgar, cuidado!

Tudo aconteceu rápido demais para que ela conseguisse processar com clareza. Sabia apenas que fora empurrada contra uma das baias com tanta força que sua barriga encontrava-se dolorida por conta da colisão, ao passo de que sentia o ar faltar em seus pulmões. Sua vista estava turva e a última coisa que se recordava de ter visto era um imenso cavalo negro, equilibrando-se sobre as duas patas traseiras e agitando as dianteiras, relinchando vigorosamente.

Afastando-se da porteira enquanto tentava recuperar o fôlego e o controle sobre as pernas, a visão tornou-se clara aos poucos e somente quando teve confiança suficiente na firmeza de seus pés foi que ela tornou o rosto, em busca de seu consorte.

Jogado sobre o chão, o jovem Avelar segurava fortemente o ombro direito, enquanto trincava os dentes e juntava as sobrancelhas numa clara manifestação de dor. De início, Sarah não havia compreendido o que acontecera ali, mas depois que de perceber o ângulo disforme em que seu braço se encontrava, foi impossível conter um grito de pânico que se encontrava preso em sua garganta.

Olhando para os lados, ela não sabia se deveria ficar e tentar socorrê-lo ou se corria para buscar alguém que fosse mais capacitado para ajudar Edgar a se levantar. As lágrimas tomavam conta de seu rosto e ela se encontrava paralisada pelo medo. Não podia perdê-lo, pois simplesmente não lhe restava mais ninguém. Os gemidos angustiados do rapaz fizeram com que ela voltasse a si e, por fim, decidisse correr em busca de ajuda.

A chuva não havia cedido nem mesmo um pouco. O pátio era iluminado pelos relâmpagos a todo instante e o som ostensivo dos trovões lhe ensurdeciam momentaneamente. Seus soluços desesperados roubavam-lhe o fôlego e enquanto corria, tudo que conseguia pensar era na pergunta que martelava em sua cabeça, servindo-lhe como uma autopunição.

O que foi que eu fiz?


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