The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 36
Capítulo XXXVI - 23 de Dezembro de 1872




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As taças de vidro chocavam-se desastrosamente contra o chão, enquanto que as cadeiras eram arrastadas pelo salão de forma ruidosa. Os gritos de puro pânico confundiam-se com as súplicas por um auxílio médico de urgência. O perfume proveniente do vinho misturava-se ao forte odor de sangue, banhando as mãos e vestes do Duque de Odarin, que tentava conter a hemorragia de seu soberano a qualquer custo.

Em meio ao tumulto, sua mente parecia estar estranhamente vazia. “Só mais um pouco, muito em breve seu tormento terá chegado ao fim”, era o único pensamento que vagava em sua consciência. Muito embora aquela voz distante transmitisse uma mensagem tentadora, ele ainda precisava demonstrar toda a sua lealdade enquanto o Rei vivesse, empregando reiteradas tentativas de salvá-lo, empenhando-se em evitar o que era inevitável.

O jovem Avelar mantinha um olhar apreensivo fixo no homem abaixo de si. A figura usualmente arrogante e vultosa de Allen se contorcia em espasmos violentos e ele percebeu o exato momento em que sua vista começava a perder o brilho astucioso. Àquela altura, o arsênico já deveria ter corroído boa parte de seus órgãos internos e pouco restava do homem austero que um dia fora. Com um suspiro sôfrego, ele expirou seu último sopro de vida, aquietando seu corpo e carregando aquela alma para longe.

Presenciar aquele momento fez com que Edgar fosse tomado por uma onda de calafrios, causando-lhe discretos tremores. Com uma de suas mãos hesitantes, ele dirigiu os dedos até a lateral do pescoço do rapaz, no intuito de auferir se ainda havia alguma manifestação de vida. À princípio, nada aconteceu. Suspirando pesadamente, estava prestes a anunciar a morte do monarca, quando uma mão gelada fechou-se ao redor de seu pulso. Faltaram palavras ao Duque para expressar seu pavor ao perceber que aquele corpo sem vida ainda respondia aos estímulos externos.

— Eu poderia esperar uma traição deste nível de qualquer pessoa, menos de você. A personificação da parábola do lobo disfarçado em pele de cordeiro — Allen proferiu com o mesmo tom ameaçador que lhe era característico. — Mas não se sinta vitorioso, meu caro. Pode ter se livrado de minha presença física, mas meu espírito o acompanhará até que chegue a sua vez.

Certo de que aquilo não passava de um delírio, o jovem tornou o olhar na direção dos nobres que se amontoavam num dos cantos do cômodo. Todos pareciam tensos e nervosos, mas nenhum deles aparentava perceber no discurso ameaçador de seu governante, muito menos a agitação incomum para alguém que já não deveria mais mover sequer as pestanas. A falta de uma reação mais ativa dos demais apenas confirmou suas desconfianças: estava delirando. No entanto, ele não sabia como reverter aquele quadro, levando-o a suar frio dado o terror que se abatia sobre si.

— Serei paciente e então terei o deleite de acompanhá-lo até os portões do inferno. — Mesmo depois da realização de que aquilo não passava de uma ilusão, criada por sua mente atormentada, a voz lhe soava tão realista e enfática quanto a do verdadeiro rei, fazendo-o engolir seco. — Não há espaço no paraíso para traidores e homicidas como eu e você. Somos mais semelhantes do que seu rudimentar senso de justiça pode imaginar. É a realidade, e não há como escapar dela: no fundo, somos todos iguais.

Tomado por uma angústia imensurável, o rapaz ergueu-se de sua cama num sobressalto. Olhava para os lados com assombro, seu corpo banhado de suor e sua alma dominada pelo pânico. Sentia um frio intenso, que lhe causava fortes tremores e por um instante achou que tivesse febre. No entanto, seus olhos assustados logo capturaram a imagem de uma vidraça aberta, provavelmente obra de uma forçosa corrente de ar invernal.

Ainda em choque devido ao pesadelo que vinha perseguindo-o durante os últimos meses, Edgar abraçou os joelhos, sentindo uma intensa vontade de chorar. Ainda que nenhuma lágrima tenha chegado a transbordar, um misto de angústia e remorso queimava ardentemente em seu peito, como se estivesse em chamas. Sua respiração regulava-se aos poucos e por mais que tivesse a consciência de estar acordado, tal fato não representava qualquer alívio para sua aflição.

Mesmo depois de desperto, a voz de antes continuava ali. Baixa — às vezes tímida até — mas inconfundivelmente presente. Os sussurros lhe davam a impressão de que Allen o acompanhava aonde quer que fosse, importunando-o com sua presença inquietante, obrigando-o a reviver reiteradamente as piores sensações que já tivera o desprazer de experimentar.

Numa dessas noites repletas de pesadelos, após despertar de maneira semelhante, a sensação de pânico parecia apossar-se de seus ossos, intensa demais para permitir que ele voltasse a dormir. Na ocasião, não precisou de mais que um rápido exame visual dos móveis do quarto para reparar na presença de uma de suas bebidas favoritas, esquecida displicentemente ao lado da cabeceira, iluminada pelo luar. A garrafa reluzia, como uma luz de esperança ao fim do túnel. Anos atrás, aquele recurso havia sido efetivo em silenciar a voz de Anya em sua mente. Se seu palpite estivesse certo, era possível que o álcool conseguisse aquietar os praguejos de Allen.

Sua teoria se confirmou na prática, ainda que com efeitos de baixa duração, o que o obrigava a utilizar aquele recurso repetidas vezes durante o dia, mantendo sempre uma das garrafas ao alcance de suas mãos. Não era como se não percebesse os olhares descontentes e reprovadores de Sarah sempre que o encontrava naquele estado, mas não havia muito que pudesse ser feito. A rainha não estava em posição de fazer-lhe exigências e não tinha ideia do peso que era obrigado a suportar sozinho. Seu refúgio costumava ter notas adocicadas e um aroma agradável, além de cumprir bem com o papel de lhe aquecer o corpo naquelas terras friamente rigorosas.

Agora, finalmente mais calmo, o Duque desenterrou o rosto de seus joelhos, passando a avaliar as condições do cômodo. Estava sozinho, o que não era de se espantar. Já deveria ter ultrapassado o horário do desjejum há muito tempo, e Sarah certamente o deixara para trás, no intuito de dar início às suas tarefas diárias. A jovem empenhava-se ao máximo para superar as expectativas de todos, enquanto Phillip fora astuto o suficiente para aproveitar-se desse entusiasmo inicial para usurpar seu cargo, além de tentar a todo custo seduzir sua consorte com discursos eloquentes e falas de alto impacto. Em outras palavras, estava convicto de que não passava de um aproveitador barato.

Muito embora a menina tivesse se desculpado por sua escolha precipitada, ainda assim estava resoluta em deixá-lo encarregado de seus compromissos e atos oficiais. A Edgar não restava muito o que fazer senão acatar sua decisão, pois recusava-se a permanecer trancafiado naquele cômodo repleto de lembranças desagradáveis do antigo monarca. Passava agora boa parte de seus dias vagueando pelos cômodos do castelo. Algumas vezes atreveu-se a uma caminhada pelo jardim, mas a aproximação do inverno não era nada convidativa e o manteve afastado da área externa.

Com isso, as horas se arrastavam, os dias passavam lentamente, ao passo de que o rapaz se isolava cada vez mais. Sentia uma intensa saudade abster-se sobre si, mas era incapaz de precisar do quê ou de quem exatamente sentia falta. De sua terra natal, Hallbridge? Ou então de sua família? Talvez Anya? Ou então da própria Sarah? Não tinha uma resposta para a pergunta que o importunava e, consequentemente, não havia nenhuma solução à vista que o aliviasse daquele tribulação.

Tornando o rosto para o lado oposto, seus olhos se fixaram na vidraça equivocadamente aberta, permitindo que a brisa glacial invadisse o quarto. O frio fez com que se aconchegasse preguiçosamente debaixo das muitas camadas de cobertores. Tinha consciência de que a melhor forma de manter-se aquecido seria levantar e fechar a janela que permitia a entrada do ar gelado, mas o desânimo que o acompanhava nos últimos dias o dominava com mais força que o próprio frio. Há muito perdera o apetite e as doses exorbitantes de bebida alcoólica o preveniam de sentir sede. Seu único desejo era de permanecer ali, inerte, deixando que os ponteiros do relógio corressem em círculos até indicar o início de um novo dia.

Estava quase adormecendo novamente, quando três vigorosas batidas junto a porta o despertaram de seu estado de latência absoluta.

— Por céus, por acaso está tentando congelar a si mesmo com essa janela aberta? — Evangeline repousou a larga bandeja que trazia consigo sem muita delicadeza sobre a cabeceira e apressou-se em fechar a vidraça. — É incomum encontrá-lo deitado ainda essa hora. Aconteceu alguma coisa?

O jovem Avelar suspirou profundamente, como se estivesse bastante esgotado daquela realidade pífia e aparentemente sem propósito. Muito havia acontecido, mas que diferença faria revelar todas as suas preocupações e insatisfações para a governanta? Não havia nada que ela pudesse fazer para ajudá-lo, de modo que limitou-se em responder:

— Apenas não estou me sentindo muito disposto nesta manhã.

Evangeline crispou os lábios, em um mudo gesto de inconformidade. Reconhecia uma mentira óbvia como aquela a milhas de distância, mas sabia também que de nada adiantava tentar forçar uma intimidade inexistente com o Duque. Esperava apenas que pudesse atender às suas necessidades mesmo diante de todo esse distanciamento formal.

— Fui informada de que ainda não havia comparecido à sala de jantar para tomar seu desjejum, então tomei a liberdade de trazê-lo até aqui — a governanta mencionou, enquanto tomava em mãos a bandeja repleta de petiscos sortidos. Desconhecia as preferências do rapaz, de modo que trazer uma grande variedade de opções lhe pareceu o caminho correto a seguir.

— Você não deveria estar cuidando das necessidades de Sarah ao invés das minhas? — ele questionou, tomando um rápido gole da xícara de chá fumegante. Não sentia fome, mas seria bastante descortês devolver tudo intacto.

— Estou sempre à disposição para auxiliá-los em tudo aquilo que precisarem. Estar encarregada de um necessariamente implica em cuidar do outro. Estão juntos agora e não serei eu a dissociá-los desse vínculo. — Evangeline sorriu de maneira comedida, numa tentativa de inspirar-lhe alguma confiança. O rapaz continuava a encará-la com o semblante inexpressivo, enquanto forçava-se a mordiscar um dos biscoitos amanteigados trazidos por ela. — O que me faz lembrar de algo. Recebi há pouco uma carta de Hallbridge, endereçada a você.

Sacando do bolso a correspondência, a senhora repassou-lhe o papel. Edgar encarava a folha delicadamente dobrada e lacrada com o símbolo de sua família, sem saber ao certo o que esperar das palavras contidas ali. Não tinha muito tempo desde que sua irmã deixara o castelo, totalmente à contragosto, e a expulsão não fora vista com bons olhos por seu pai.

Era com certo saudosismo que se recordava da figura silenciosa do Conde Avelar, das conversas intermitentes de Charlotte ou das propostas invariavelmente indecentes de Gilbert. Poucas eram as lembranças de sua mãe, mas nada podia ser feito quanto a isso. Por um instante, sua memória afetiva falou mais alto e ele se recordou da brisa fresca acompanhada do cheiro de mar que costumeiramente invadia seu quarto durante a tarde. O clima morno, com o Sol sempre bastante presente e o ar rural de Hallbridge lhe causavam certa nostalgia. “Talvez vir para Odarin tenha sido um erro”, pensou com certa amargura, enquanto alisava a carta ainda lacrada.

Atenta à figura melancólica de Edgar, a governanta não pôde deixar de reparar em como ele hesitava. Podia quase visualizar uma nuvem cinzenta de incerteza pairando sobre sua cabeça, embora não conseguisse imaginar com precisão quais pensamentos vinham atribulando-o. Tinha ânsia em ajudá-lo — era o mínimo que poderia fazer— ainda que não soubesse como. O Duque era uma pessoa complexa por natureza, e os últimos acontecimentos contribuíram para que ele se tornasse recluso e introspectivo. Naquela ocasião, a senhora julgou que talvez deixá-lo à sós fosse a melhor opção.

— Me chame se precisar de alguma coisa.

De maneira silenciosa, Evangeline deixou o quarto. Nem bem a porta fora fechada e os dedos ligeiramente trêmulos do rapaz se ocuparam em romper o lacre de cera, enquanto seus olhos ansiosos praticamente devoravam as palavras ali escritas.



Fazia alguns minutos desde que os olhos castanhos de Sarah desviaram-se do livro à sua frente, que agora encontrava-se repousado sobre seu colo. A obra era elucidativa, mas tinha uma linguagem cansativa e ela já havia perdido o foco de sua leitura muitas vezes nas últimas horas. Ao invés disso, observava com bastante atenção quaisquer movimentos realizados pelo Secretário Real.

Não era como se tivessem se conhecido há pouco tempo, mas somente agora havia se dado conta de muitos detalhes acerca do jovem Chevalier. Seus apontamentos eram casuais e esparsos, sendo formulado sempre que se recordava de algo importante, além de cortar o silêncio absoluto que poderia perdurar por horas. Isolava-se do mundo ao seu redor com uma destreza ímpar, de modo que um olhar desatencioso seria incapaz de perceber suas tímidas mudanças. Uma sobrancelha arqueada, os lábios levemente torcidos ou uma risada discreta, todas as peculiaridades tornavam o filho do Barão uma pessoa interessante de se ter por perto.

Naquele momento, ele se ocupava em responder ao amontoado de cartas, provenientes dos nobres nacionais e estrangeiros. O sentimento de apreensão era evidente e unânime, pois nenhum deles tinha certeza do que esperar da mais jovem e inexperiente rainha que o pequeno reino já tivera. Embora a economia de Odarin não fosse tão expressiva quanto das nações vizinhas, seu território estava estrategicamente localizado ao centro do continente, de tal forma que todos precisavam de autorização para adentrar em suas terras constantemente. Um desgaste político àquela altura seria absolutamente desnecessário e danoso, sendo necessário cautela e maestria para lidar com a situação de modo geral.

Ao finalizar uma das correspondências, seus olhos involuntariamente se ergueram e encontraram a rainha observando-o com um ar contemplativo, ao mesmo tempo que distante. De modo ágil, ele buscou qualquer coisa incomum que pudesse haver atrás de si que motivasse aquele olhar penetrante, mas nada encontrou.

— Tem alguma coisa errada com o meu rosto que justifique o fato de você está olhando para mim tão fixamente? — ele questionou, fazendo com que ela soltasse uma discreta risada.

— Eu gostaria de ser mais como você — a menina admitiu, com a voz baixa e um tímido sorriso confidente. O rapaz não pareceu compreender a dimensão de suas palavras, razão pela qual ela apressou-se em esclarecer. — Centrada, objetiva e elegante. Tenho certeza de que seria uma governante melhor se dispusesse desses atributos.

— Você não precisa de nada disso — Phillip retrucou, com o cenho franzido e um ar de descrença. — Eu não desgosto do meu estilo de vida, mas estou certo de que possui lembranças memoráveis e experiências que não vivi, graças a sua personalidade. Isso é mais valioso do que qualquer cargo.

— Acho que é a primeira pessoa a apontar algo de positivo na minha personalidade — Sarah comentou, apoiando o queixo sobre as costas de sua mão, adquirindo uma postura pensativa. — Só consigo me recordar das pessoas dizendo que eu tinha um gênio terrível.

— Terrível aos interesses deles, muito provavelmente — rebateu de imediato, direcionando sua atenção momentaneamente para um servente que acabara de adentrar na sala, trazendo consigo uma carta com lacre esverdeado, que ele reconheceria a muitos quilômetros de distância. Tomando-a em mãos, não precisou de mais que uns segundos para abri-la, conhecer seu conteúdo e jogá-la de lado sem muito interesse.

— Algo importante? — a moça inquiriu, com uma curiosidade infantil, como há muito não se permitia demonstrar. A rápida exibição de seus antigos trejeitos quase fez com que o Secretário esboçasse um sorriso afável.

— Apenas mais uma das mensagens de minha mãe, questionando pela oitava vez se pretendo comparecer à ceia de Natal. — Seu desinteresse era quase palpável, e ele logo tornou sua atenção de volta ao trabalho.

O esclarecimento fez com que os olhos de Sarah se fixassem no papel que fora displicentemente jogado para longe com tanta indiferença. Não tinha a intenção de intrometer-se na vida pessoal de Phillip, mas a singularidade da situação lhe causava certo incômodo, até que ela se rendeu ao ímpeto de importuná-lo um pouco mais com o assunto.

— Você não vai confirmar sua presença?

— Não tenho nenhum apelo por comemorações natalinas. Também nunca compreendi porque ganhava tantos relógios de bolso, sempre imaginei que um era mais do que suficiente.

— Phillip, você ama a sua família? — O questionamento surgiu enquanto mordia levemente o lábio inferior, receosa de que talvez estivesse indo longe demais com sua intervenção.

— A Igreja não permite responder outra coisa senão “sim” — o rapaz pontuou à contragosto, sem compreender onde a menina queria chegar com todas aquelas perguntas inusitadas e sem qualquer relação com o amontoado de trabalho que tinham em mãos.

— Você deve saber que minha mãe faleceu pouco tempo após meu nascimento. Meu pai sempre foi ocupado demais com seus deveres reais para me dar qualquer atenção. Allen cresceu em Hallbridge e por muitos anos nosso contato se limitou na troca de correspondências e suas esporádicas visitas ao castelo.  Eu gostaria de ter tido a chance de conhecer melhor cada um dos membros da minha família. — As palavras foram proferidas com uma serenidade e maturidade incomuns, o que imediatamente chamou a atenção de Phillip. A jovem direcionava-lhe uma expressão tenra e compreensiva, quase maternal, ele ousaria dizer. — Talvez sua família não haja exatamente da maneira como gostaria, mas isso não necessariamente diminui o vínculo entre vocês. Tudo que somos depende daqueles que nos criaram. “Uma flor não escolhe onde nasce, mas é invariavelmente afetada pelo jardim que a cerca”, era isso que nosso jardineiro costumava me dizer quando era mais nova.

— É admirável tudo o que disse, mas confesso que não consigo perceber aonde pretende chegar com esse discurso? — questionou o jovem Chevalier, pela primeira vez genuinamente curioso acerca das reais intenções ocultas por trás daquele assunto inesperado.

— Em lugar algum, apenas gostaria que refletisse sobre isso — ela respondeu, de modo alegre, aparentando estar satisfeita consigo mesma quando retomou a leitura do livro que jazia em seu colo.

Mesmo que não quisesse, seria impossível resistir ao impulso involuntário de ponderar aquelas palavras. Jamais havia presenciado tamanha eloquência por parte da menina, ainda mais de forma tão súbita e natural. A situação causou-lhe um estranho misto de admiração e orgulho. Se aquela simples, mas significativa mudança, tinha alguma influência sua, ele não saberia dizer. No entanto, precisava admitir, ainda que somente para si mesmo, que a presença da jovem rainha era aconchegante e o fazia sentir-se confortável. Era uma sensação agradável e que o levava a crer que fazia parte de algo muito maior do que seus olhos seriam capazes de enxergar. Ele não desgostava daquilo.

Tomado por um repentino e incomum sentimento, ele apanhou a carta de sua mãe em mãos novamente. Após ponderar por breves instantes, ele pôs a escrever uma resposta afirmativa.



A água morna e perfumada alcançava-lhe os ombros, ao passo que uma fina espuma tomava conta de toda a superfície da banheira. Distraidamente, Sarah observava as bolhas de sabão estourarem ao atingir a superfície, exalando assim um agradável aroma de lavanda que se impregnava nas paredes de sua casa de banho, enquanto mantinha-se absorta em pensamentos. Ao fim do dia, Phillip lhe informara de que deixaria o castelo na manhã seguinte para passar os próximos três dias na companhia de sua família. Intimamente, ela estava feliz de tê-lo convencido a dedicar-se um pouco mais àquela pequena entidade familiar que, apesar de não ser dotada das melhores personalidades, ainda lhe causava certa inveja.

As comemorações natalinas se aproximavam e ela não pôde deixar de sentir-se abandonada naquele momento. Há exatamente um ano atrás, Evangeline e Beatrice estavam empenhadas em ajudá-la com todos os preparativos para a ceia de Natal. Os dias antecedentes foram agitados e preenchidos por um sentimento ilusório de plenitude. Parecia que sua família, antes tão estilhaçada e distante, enfim adquiria uma forma concreta, onde ela desempenhava um papel essencial. Sua infância fora guarnecida de criadas e empregados, que proviam todas as suas necessidades, materiais e afetivas. Tinha um carinho especial por todas aquelas pessoas, e jamais se esqueceria da atenção e lealdade que lhe fora despendida durante todos aqueles anos. No entanto, a jovem sempre ansiara por mais. E agora, já não havia nada.

Encolhendo-se ainda mais, a menina afundou seu corpo, até encostar o topo da cabeça na beirada da banheira, suspirando longamente. Em menos de um ano, sua tola ilusão se desfez e, novamente, ela se viu sozinha. Perdera Elliot, Delia, Beatrice e Allen, quase com um estalar de dedos. Há muito já não tinha ascendentes e não ousaria sonhar com um descendente tão cedo, principalmente agora que Edgar não lhe oferecia nada além de olhares indiferentes e vazios, acompanhados de um silêncio incômodo e pesado. Todas as suas tentativas de aproximação acabavam frustradas, ao ponto de sentir-se constrangida até mesmo em dirigir-lhe a palavra. Estava sem rumo e, com isso, via-se obrigada a observar o abismo entre eles aumentar ainda mais, não lhe ocorrendo nada que pudesse fazer para impedir a situação de torna-se irreversível, se é que já não o era.

— Por céus, Sarah, há quanto tempo está aí dentro?

O tom altivo de Evangeline foi responsável por trazê-la de volta à realidade. Somente então a menina se deu conta de que a água havia esfriado de maneira considerável e que seus dedos já começavam a enrugar.

— O que há de errado com vocês, afinal de contas? — a governanta ralhou, enquanto cruzava a casa de banho com um felpudo robe em mãos, para secar e aquecê-la o quanto antes. — Parecem estar empenhados em adquirirem um resfriado, às vésperas das comemorações de Natal.

— Eu apenas me distraí — ela justificou, enquanto colocava-se de pé e deixava a água perfumada para trás. — Além disso, não vislumbro nada que justifique uma celebração aqui.

— Você está viva e saudável, minha criança — a senhora pontuou, enquanto empenhava-se em secar o rosto e as mãos ensopadas da jovem com uma toalha. — Esse é um ótimo motivo para ser celebrado todos os dias.

Sarah limitou-se em sorrir fracamente como resposta, logo retornando ao seu estado introspectivo, enquanto a governanta ocupava-se em pentear-lhe os cabelos castanhos e ajudá-la a vestir seus trajes de dormir.

Não tardou muito para que ela retornasse aos seus aposentos, finalmente sentindo o cansaço do dia abater-se sobre seus ombros. Estava convicta de que não precisaria mais que alguns minutos para adormecer, tão logo estivesse debaixo de suas cobertas aconchegantes. Não tinha nada que justificasse manter-se acordada, uma vez que excepcionando-se as companhias habituais de sua governanta e seu Secretário Real, encontrava-se sozinha em todo o tempo restante. Seu consorte adquirira o hábito de realizar suas refeições em horários distintos, assim como parecia empenhado em manter-se afastado de si, mesmo no período da noite. Sarah começava a se acostumar com a rotina de deitar-se sozinha e acordar no meio da noite, ao vê-lo retornar com o enjoativo odor de álcool impregnado nas vestes.

A menina já não sustentava qualquer esperança de encontrá-lo ali, de modo que empurrou a porta de seu quarto sem qualquer delicadeza ou discrição, surpreendendo-se ao erguer o rosto cansado e encontrá-lo de pé, escorado ao lado de sua penteadeira, com uma carta aberta em mãos.

— Edgar! — A exclamação de surpresa saiu de forma involuntária e foi recepcionada da mesma forma como toda e qualquer manifestação sua: com um olhar apático e um silêncio perturbador. De imediato, segurou os cotovelos com as mãos, adquirindo uma postura defensiva, como se protegesse a si mesma de uma ameaça invisível. — Perdoe-me pelo barulho, eu não esperava encontrá-lo agora…

Sua voz soou baixa, não passando de um fio tímido, muito diferente de quando se portara a Phillip naquela manhã. Seu relacionamento havia chegado a um ponto em que não sabia sequer como deveria se portar em sua presença. A incerteza era perceptível através do distanciamento físico e dos diálogos vagos. Seus encontros esporádicos quase sempre deixavam uma sensação desagradável como resquício.

Cruzando o quarto com passos vacilantes, o pequeno trajeto empregado por Sarah fora prontamente acompanhado pelos olhos de Edgar. Ele não queria que ela se aproximasse. Já não confiava em si mesmo. Sabia que a jovem rainha, a despeito de sua ingenuidade, era atenciosa com aqueles que a cercavam. Quanto mais exposto ele estivesse, maior seria a probabilidade dela descobrir tudo, da atrocidade que cometera, das mentiras que contara. Muito embora a voz em sua mente não passasse de uma ilusão, sabia que suas palavras eram recheadas de verdade. Mesmo que tentasse justificar seus atos para si mesmo utilizando-se de um motivo nobre, sabia que era tão assassino quanto Allen e que merecia um final tão infeliz quanto o do antigo monarca.

Com um movimento discreto e um tanto constrangido, a menina ergueu a mão direita, no intuito de capturar os dedos de seu consorte. No entanto, uma onda de pânico apossou-se do rapaz, levando-o a esquivar-se do gesto com certa urgência. Seus olhos se arregalaram e ela sentiu como se um objeto mortalmente perfurante tivesse atravessado seu corpo pequeno, pois a sensação que teve naquele instante era de devastação.

— Você costumava compartilhar seus pensamentos comigo, mas agora está cada vez mais recluso e distante. — As palavras foram proferidas com uma voz embargada e chorosa, mas ela não se permitiria fraquejar naquela situação. Respirando fundo, ela prosseguiu com seu apelo desesperado. — Por que não me diz o que está acontecendo? Por que não me deixa te ajudar?

— Meu pai nos convida para passar os próximos dias em sua companhia em Hallbridge — Edgar afirmou casualmente, fingindo como se nada tivesse acontecido. Não podia contar, não fazia sentido revelar certas coisas. “Ela não precisa saber”, sua consciência martelava aquilo como um mantra. — O que devo responder?

Estava ali, bem diante de seus olhos. Phillip tivera audácia e sagacidade o suficiente para reparar naquilo muito antes de si mesma, pois ela recusava-se a crer em algo que estava claro como a luz do dia. Edgar não confiava nela e agora tinha certeza disso. Tomada por um misto de decepção e revolta, ela suspirou profundamente, finalmente disposta a desistir daquela batalha.

— Faça o que desejar, Edgar. Confirme, se é isso que gostaria de fazer — Sarah respondeu com descaso, enquanto tornava-lhe as costas e seguia em direção à sua cama, exausta demais para prosseguir com aquilo. — Eu irei dormir agora.

Em instantes, ela se escondeu debaixo das pesadas camadas de lençóis, encolhendo-se como uma criança, enquanto abraçava com força um dos muitos travesseiros disponíveis ali. O Duque retirou-se do quarto em silêncio, logo em seguida, e só então a jovem permitiu que um soluço escapasse por seus lábios, assim como as lágrimas que havia reprimido até então.


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