The Queen's Path escrita por Diamond


Capítulo 38
Capítulo XXXVIII - 27 de Dezembro de 1872




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As olheiras escuras marcavam o rosto de Sarah tão notoriamente que nem mesmo pinceladas de pó de arroz eram capazes de suavizar seu semblante apreensivo. Havia uma espécie de angústia instalada em seu peito que aumentava exponencialmente para cada minuto de silêncio que passava examinando o estado de Edgar. Desde o acidente com um cavalo assustado há dois dias, ela podia escutar com clareza seus gritos agoniados de dor no momento em que o médico realocou seu ombro todas as vezes que olhava para ele. A memória a manteve praticamente sem descanso, atenta ao menor sinal que seu consorte pudesse esboçar. No entanto, ele apenas dormia profundamente, alheio a qualquer estímulo externo.

— Bem, a condição dele tem se mantido estável, o que por si só é um bom sinal — afirmou o senhor que avaliava seu estado, após um breve momento de análise. — A febre, por outro lado, é um fator pelo qual não estávamos esperando. Certifique-se de mantê-lo hidratado, com o ombro completamente imobilizado, além de verificar a temperatura a cada hora.

— É só isso que tem para me dizer? — ela questionou, abruptamente. Estava perplexa com a indiferença demonstrada pelo clínico que servia a Família Avelar. — Meu marido tem dormido por dois dias seguidos, sem manifestar a menor reação e tudo que que pode me oferecer são algumas medidas inócuas? Se não se incomodar, eu gostaria de uma opinião um pouco mais robusta e fundamentada acerca da real situação dele.

— Sendo bastante honesto, Majestade, é a primeira vez que vejo algo assim em minha vida. Membros deslocados são uma ocorrência bastante comum em ambientes rurais como esse, mas jamais causariam um estado de inatividade tão prolongado — demonstrando tão somente um ligeiro embaraço com as duras palavras proferidas pela jovem à sua frente, que aparentava ingenuidade na mesma medida em que se mostrava firme em sua fala. — O Duque possuía alguma condição física adversa e anterior ao acidente?

— Acredito que não estivesse se alimentando da melhor maneira, além de estar ingerindo mais bebida alcoólica que o usual. É possível que esses hábitos estejam dificultando a recuperação dele?

— Imagino que não, mas creio não ser capaz de lhe conferir uma resposta mais precisa — respondeu com descrença, enquanto direcionava um último olhar ao rapaz convalescido. — Tudo que podemos fazer no momento é aguardar. Estarei à disposição caso precisem de algo.

Após uma polida reverência, o médico retirou-se do quarto debaixo do olhar feroz e revoltado de Sarah. Quando acreditava que sua vida não poderia seguir um rumo ainda mais trágico, a realidade se mostrava cruel e impiedosa. Sentia-se sem forças perante a sucessão de infortúnios que se abatia sobre sua família – ou o que havia restado dela –, mas não se permitiria fraquejar agora. Nesse momento, Edgar necessitava de seus cuidados.

Tomando um lenço em mãos, a menina sentou-se à beirada da cama e, de modo cuidadoso, deslizava o tecido sobre sua face, pescoço e flanco. Vê-lo inerte daquela maneira lhe causava arrepios. O rosto pálido e apático lhe remetia à memória de Beatrice, deitada pacificamente em seu caixão, momentos antes de ser enterrada. Consternada, ela chacoalhou a cabeça, na tentativa de afastar aquela linha de pensamento fúnebre. Tinha certeza de que ele despertaria, mais cedo ou mais tarde. E enquanto isso não acontecesse, ela permaneceria ao seu lado.



O cômodo ocupado pela jovem rainha encontrava-se situado bem acima da sala de música. Em função do clima morno de Hallbridge, a arquitetura local costumava dispensar divisórias espessas entre os aposentos, o que acabava por facilitar a passagem de som entre eles. Essa característica singular das moradas servia de estímulo para o falatório já habitual dos nobres, que preenchiam seus dias com comentários maldosos e especulações sem fundamento.

Naquela manhã, tanto Charlotte quanto Gilbert encaravam o teto primorosamente decorado em silêncio absoluto, atentos ao diálogo travado por Sarah e o médico da família. Os estalos baixos indicavam que a porta fora aberta e fechada logo em seguida. Então, tudo que se podia ouvir eram passos ansiosos que pareciam caminhar em círculos.

— Ela está enlouquecendo bem mais rápido do que imaginei — pontuou a ruiva, em meio a um sussurro, enquanto encolhia as pernas sobre o estofado e apoiava a cabeça em seu antebraço, de modo preguiçoso.

— Uma pena, estou inteiramente compadecido de sua dor — retrucou o mais novo, com um misto de ironia e desinteresse. Não era o tipo de assunto que merecesse sua atenção e tratou de deixar isto claro ao retomar a análise cuidadosa dos papéis que tinha em mãos.

— De todo modo, é realmente estranho que ele ainda não tenha despertado. Creio que ela esteja se sentindo culpada de alguma forma pelo acidente, o que não é de todo uma inverdade. — Uma pequena, mas ainda assim perceptível nota de aborrecimento escapava pela voz de Charlotte. Não tinha dúvidas de que a vida de todos seria muito melhor se aquela menina petulante simplesmente não existisse. — Tudo isso é bastante perturbador. Gil, o que acontecerá se Edgar não tornar a despertar?

— Neste caso, teremos uma pessoa a menos com quem dividir nossa herança. — A possibilidade soou estranhamente natural em seus lábios, sendo dita o mesmo ar indiferente de antes. — Um cenário realmente animador, devo dizer.

— Que horror! — ela exclamou com irritação, enquanto empurrava o ombro do caçula com vigor e irritação, num claro gesto de retaliação pelas palavras insensíveis. — Como pode dizer uma coisa dessas, ainda mais de maneira tão casual? Edgar é nosso irmão, ou será que se esqueceu desse detalhe?

— Ora, Charlotte, não me venha com essa postura sensível e moralista justamente agora. Isso sequer combina com o seu instinto predador. Vai me dizer que nunca conjecturou sobre isso antes?

— De modo algum! Caso não saiba, eu tenho muito apreço por Edgar — proferiu, exprimindo uma espécie de orgulho fraternal em sua fala. — Sarah e Beatrice são as únicas a quem sou incapaz de suportar. Sinto muito pena dele por ter sido forçado a se casar com alguém tão intragável.

Se ele foi forçado a isso, então você deve ser Virgem Santíssima”, foi o que Gilbert pensou de imediato. No entanto, optou por permanecer calado e não contrariar a fala da mais velha, no intuito de retomar sua concentração.

Tudo estava caminhando conforme o planejado e suas projeções para o futuro não poderiam ser mais promissoras. Enquanto a princesa Sarah vivia absorta em seu mundo de fantasia, alheia as obrigações reais ou mesmo aos privilégios da nobreza, ele e Allen já estavam mutuamente de acordo com suas condições. Faltava pouco para que houvesse o anúncio oficial sobre o casamento, ocasião em que se tornaria Duque e finalmente teria a vida que sempre julgou merecer. Entretanto, o lado ambicioso de Edgar despertou bem a tempo de arruinar seus planos, passando-lhe a perna e clamando para si tudo aquilo que ele tivera tanto trabalho em arquitetar. “É, meu caro irmão, você deveria saber que em nosso meio traição se paga com traição e, algumas vezes, situações como essa terminam de maneira trágica. Será que está pronto para saldar suas dívidas?”.

Com uma risada discreta e ligeiramente amarga, o rapaz recordou-se como aquela linha de pensamento se assemelhava a do antigo monarca de Odarin. Eles poderiam ter sido ótimos amigos e aliados, se seu irmão não estivesse sempre um passo à sua frente. “Mas não por muito tempo. Quando falecer, me pergunto quem – senão eu – poderá consolar nossa pobre rainha?”, divagou com área de glória, mal conseguindo conter um sorriso ambicioso.

Tentando recobrar a concentração de antes, ele sentiu uma onda de aborrecimento lhe percorrer a coluna, alojando-se em sua face logo em seguida. Allen lhe fora muito útil enquanto vivo, mas agora, sua ausência lhe ocasionara tantos problemas que sequer o deixavam dormir com tranquilidade. Enquanto fundava o rosto numa das mãos, sua mente trabalhava incessantemente, até que uma ideia repentina lhe ocorreu de maneira tão natural, que ele se questionou como não pudera pensar nisso antes.

— Charlotte, diga-me uma coisa — ele iniciou, tomando a atenção da mais velha para si, que ainda tentava decifrar os sons provenientes do quarto de sua hóspede especial. — Me ocorreu há pouco uma lembrança bastante singular de nossa infância. Creio que, certa vez, comentaram com nosso pai o quão semelhante a sua caligrafia era da de Allen, estou correto?

— Desde que veio morar conosco, compartilhávamos o mesmo tutor de caligrafia. Sim, eram bastante semelhantes, lembro-me bem — a ruiva respondeu, com um ar pensativo e até mesmo um tanto nostálgico. No entanto, seu semblante logo assumiu um quê de desconfiança, por conta do tom anormalmente afável empregado por seu irmão. — Por que está relembrando disso neste momento?

— Nada demais. Apenas gostaria que me fizesse um pequeno favor — Gilbert pontuou, com um misto de mistério e divertimento em torno de si. — Preciso que redija uma carta para mim.



— Quando tempo ainda pretende ficar aqui?

Delia reprimiu aquela pergunta nos últimos dias com todo o autocontrole que dispunha. Ainda que Phillip lhe conferisse a mesma atenção que daria a uma formiga em seu caminho, ela não poderia negar o incômodo que sentia em seu âmago, todas as vezes em que precisavam compartilhar um cômodo por qualquer razão que fosse.

De início, seus movimentos travavam por um instante, uma espécie de pânico paralisador, fazendo com que a ruiva precisasse de alguns segundos para se acalmar e continuar com suas tarefas, mal conseguindo disfarçar seu próprio desconforto. Suas reações, sem sombra de dúvidas, não passaram despercebidas pelo jovem Chevalier, e mesmo assim ele nada disse sobre o assunto. Com o passar dos dias, a convivência tornou-se um tanto menos sofrida, tendo em vista que sequer era importunada com os questionamentos invasivos e indelicados de outrora. Aquilo lhe gerou um sentimento de perda, e logo ela se viu apegada ao sabor da desconfiança que nutria em relação a ele. Já havia constatado que o caçula, apesar do modo estranho de agir, não era má pessoa, o que não queria dizer que estivesse inclinada a estabelecer qualquer tipo de laços ali.

— Falando dessa maneira, você quase se parece com a minha mãe — ele retrucou, sua voz soando entediada e até um tanto sonolenta. — Sarah ainda não retornou de Hallbridge e seria muitíssimo incômodo ter de levar todos esses livros para o castelo. Por isso, estou aproveitando a oportunidade para transcrever tudo que possa ser importante para nós nos próximos meses.

De fato, o Secretário havia gasto seus últimos dias sentado em sua larga poltrona de leitura, com um livro aberto do lado esquerdo e um pequeno caderno abarrotado de anotações posicionado à sua direita. Poucas coisas o faziam levantar-se dali, limitando-se às refeições diárias, os banhos e uma rápida caminhada pelo comércio ao pôr do sol. Às vezes, quando as pestanas tornavam-se pesadas e o cansaço parecia prestes a vencê-lo, ele apenas acomodava-se melhor antes de tirar um rápido cochilo.

— É verdade que já leu todos esses livros? — a camponesa questionou, com um ar de curiosidade infantil, e logo se arrependeu de tê-lo feito. Que diabos estava fazendo, tentando estabelecer um diálogo com ele?

— Alguns mais de uma vez — Phillip adicionou, sem sequer erguer os olhos de sua caderneta, aparentando estar absorto demais em seus escritos para sequer reparar no que se passava à sua volta.

Depois de tanto tempo operando sobre a mesma sistemática, não foi difícil para ela perceber que o rapaz apreciava rotinas e que sentia-se confortável diante da sensação de controle sobre o mundo à sua volta. A única coisa que não conseguia compreender era o que havia de tão especial naquelas páginas amareladas pelo tempo que praticamente o levavam para uma outra realidade. Por quê se esforçava tanto?

— Deve ser muito solitário para passar tanto tempo com o rosto enterrado nestes livros — comentou num murmúrio, mais consigo mesma do que com o rapaz, mas o silêncio no ambiente permitiu que sua fala fosse claramente escutada.

— Não é tão terrível quanto parece — ele retrucou, finalmente erguendo o rosto e encarando-a nos olhos. Havia algo em seu semblante que indicava certo desânimo, ao mesmo tempo que ele falasse com uma fraca convicção. Parecia tímido, mas ele não poderia estar envergonhado. Ou será que estava? — Até bem pouco tempo, eu não tinha amigos ou mesmo um emprego. Sarah foi quem me proporcionou os dois.

— Você gosta dela, não é mesmo? — A pergunta saiu de maneira despretensiosa e Delia portava um sorriso tímido, mas amável em direção ao rapaz. Ele era uma pessoa bastante estranha, precisava admitir, mas começava a achar que talvez sua personalidade peculiar fosse uma mera consequência de anos de isolamento, aliados a um núcleo familiar pouco afetuoso.

— Eu a admiro. É uma pessoa que possui uma maneira muito singular de pensar e agir — o jovem Chevalier respondeu, de modo quase carinhoso. Então, seus olhos se estreitaram e ele passou a exibir um sorriso zombeteiro em direção a empregada. — Por acaso este fato a incomoda?

— Não, nenhum pouco! E você é um abusado, sabia disso?

Afastando-se para o outro lado do cômodo, a ruiva voltou a concentrar-se em sua tarefa de varrer o chão, portando em seu rosto uma expressão de pura irritação. Justamente quando começava a vê-lo com olhos um pouco melhores, ele tornava a agir daquela maneira insuportável. “Sou mesmo uma tola, a mais irretratável de todas”, pensou com raiva de si mesma, batendo a vassoura contra o assoalho com muito mais vigor que o necessário.

— Uma carta, endereçada ao senhor — afirmou a esbaforida Emma, que segurava a saia de seu vestido com uma das mãos, enquanto balançava um papel com a outra. — Pediram-me para entregá-la imediatamente.

Phillip recebeu a carta sem esboçar qualquer reação. A interrupção havia arruinado sua intenção de importunar a ruiva. Rompendo o já conhecido lacre da Família Real, seus olhos percorreram pelo papel e logo o semblante indiferente se transformou num espanto que o deixou sem fôlego. A notícia do acidente, cuja a vítima era ninguém menos que o Duque Avelar, datava de dois dias atrás. A rainha lhe informava que não sabia ao certo quando poderia regressar a Odarin, mas que não o faria enquanto seu consorte não tivesse restabelecido sua saúde. Depois de ter certeza de que tinha decorado todas as palavras apressadamente dispostas ali, ele atirou a mensagem na lareira acesa, assustando a empregada que se ocupava em limpar o cômodo.

— Talvez essa seja a chance que eu estive esperando — ele murmurou consigo mesmo, erguendo-se de sua poltrona num salto. — O que quer dizer que não posso desperdiçar um minuto sequer.

— Do que diabos está falando? — Delia parou de varrer o chão por um momento, apenas observando com o cenho franzido os movimentos apressados, e até mesmo um tanto desastrados do filho do Barão. Ao vê-lo tomar um cachecol da cor de musgo em mãos e vestir-se com o um pesado sobretudo, não pôde conter sua genuína curiosidade. — Aonde pensa que vai?

— Procurar uns documentos — Phillip pontuou, de modo vago e nenhum pouco elucidativo, enquanto cruzava a porta de sua casa, deixando-a para trás e rumando em direção ao castelo.



Edgar conhecia aquele penhasco com a palma de sua mão. Desde pequeno, estava habituado a explorar os campos largos de Hallbridge, que quase sempre terminavam na praia ou em rochedos como aquele que separavam a terra do mar. Estava sentado ali, à beira do precipício há tanto tempo que sequer conseguia mensurar mais.

Aquilo não era o mundo real. O tempo não passava, o dia não escurecia, ninguém aparecia para procurá-lo e Anya encontrava-se muitos metros abaixo de seus pés, sentada na praia. Definitivamente aquilo não era real.

Embora muito distantes um do outro, podia reconhecer com clareza os traços de seu rosto. O cabelo loiro balançava com vigor pela força do vento, mas ela jamais havia se incomodado com isso. Sobre a saia de seu vestido amarelo, coletava conchas e as analisava com todo o cuidado do mundo, como se aquilo fosse o tesouro mais precioso da Terra.

Ele já estivera ali antes. Poucos dias antes de seu desaparecimento, em meio a uma caminhada despretensiosa, encontrou-a ali tão distraída que se permitiu parar por alguns instantes apenas para admirá-la. Era linda, por dentro e por fora. Tinha a voz mais bonita que já ouvira em toda sua vida e trazia consigo um espírito tão energético que seria impossível não se envolver com alguém que trouxesse tamanho brilho em sua alma. Anya o completava de muitas maneiras, e sua partida inesperada e inexplicável deixaram um vazio quase irreparável.

Sarah trouxera alguma alegria para seus dias sombrios, aquilo era bem verdade. No entanto, havia tantas outras questões ocupando sua mente que por vezes ele não conferia a ela a atenção que realmente merecia. Nos últimos tempos, tinha falhado naquela tarefa muito mais que o habitual, fazendo-o sentir-se o pior tipo de fracassado que já tinha pisado naquelas terras. Allen e os demais nobres com quem era obrigado a conviver não demoraram em tornar sua rotina sofrível e sem qualquer esperança de melhora. O antigo monarca mostrava-se cada dia mais louco e ousado em seus planos, e quando esteve perto de perder a última centelha de prazer que ainda possuía, ele se viu obrigado a fazer algo que jamais havia sequer cogitado em toda sua vida.

Foi uma surpresa agradável perceber que ali, preso naquela memória de seu passado, a voz sussurrada e odiosa de Allen não poderia alcançá-lo. O silêncio, cortado apenas pelo som ritmado do mar, trazia uma paz inigualável à sua alma. Poderia ficar ali para sempre, ele não se incomodaria com isso.

Seus olhos abaixaram-se novamente, recaindo sobre a imagem de sua antiga noiva. Mais adiante, sabia de um caminho que poderia levar até ela. E depois? Seria aquele o tão sonhado feliz para sempre, como costumava ver nos livros? Ou então o Paraíso, indicando que os dois estavam mortos? Ele não saberia dizer.

— Se quer tanto falar com ela, por que não desce de uma vez? — Uma voz brincalhona brotou ao seu lado, fazendo-o assustar-se ao ver uma moça de fios negros sentada ao lado, lhe direcionando um sorriso sedutor. — Por que hesita tanto?

— Porque não tenho certeza do que sinto por ela, se é que ainda sou capaz de sentir alguma coisa.

— Está mentindo — cantarolou a mulher misteriosa, ainda portando o mesmo sorriso zombeteiro no rosto. Trajava um vestido vermelho vivo, que contrastava com sua pele pálida e o cabelo escuro como a noite.  — Sabe exatamente o que sente, assim como o que não sente, mas tem medo de admitir para si mesmo. De onde vem o medo?

— Talvez do receio de falhar ainda mais com as pessoas que amo.

— E diante disso, você prefere não fazer nada ao invés de fazer algo que possa magoar alguém?

— Precisamente.

A moça misteriosa lhe direcionou um olhar descrente. Erguendo-se do local onde estava sentada, ela esticou uma das mãos, indicando que o rapaz deveria fazer o mesmo. Edgar tinha uma estranha sensação em relação a ela. Seu rosto lhe parecia estranhamente familiar, ainda que tivesse certeza de nunca tê-la visto antes. Ele imitou seus movimentos e logo se pôs de pé, passando a acompanhá-la numa caminhada lenta.

— Sabe, eu sempre julguei que as pessoas eram inseguras demais — ela pontuou, segurando seu braço enquanto andavam sem um rumo definido. Apenas seguiam por uma estradinha de terra, enquanto a moça prosseguia com sua divagação. — Qual o sentido da vida, senão viver todas as sensações e sentimentos da forma mais intensa possível? Não há graça alguma numa de existência pacífica, sem nuances ou intempéries.

— Sinto muito discordar, mas acho que minha vida já tem infortúnios suficientes — o rapaz confessou, com certo pesar.

— Isso porque está sempre pensando nas consequências, sem aproveitar os momentos em si. — Inclinando seu rosto para frente, fazendo com que a cascada de ondas escuras oscilasse em movimentos graciosos. — Você já não a ama mais, pois se assim fosse, já teria ido encontrá-la há muito tempo. Tem consciência de que esse sentimento se perdeu em algum ponto do passado e, ainda assim, sente-se culpado em deixar essa memória para trás, o que o impede de virar esta página e seguir em frente. E não me diga que estou errada, pois sabe que é verdade.

Após alguns instantes de reflexão, Edgar foi obrigado a reconhecer que mulher misteriosa estava certa. Era inacreditável como tantos anos depois, e mesmo sem nutrir nenhum sentimento específico, a mera memória de Anya exercia uma influência tão grande em sua vida. Sentia-se um tanto tolo por permitir algo assim. Mas se não tivesse ouvido aquelas palavras pela boca de outra pessoa, continuaria relutando em deixar aquele parte de sua história para trás.

Olhando para frente, percebeu que haviam atingido uma bifurcação. À esquerda, uma estreita trilha acompanhava o rochedo até atingir a praia, bem no ponto onde sua antiga noiva se encontrava. Já o caminho à direita, ondulava pelos vastos campos na direção exata do reino de Odarin. A visão o confundiu inicialmente, mas a voz da estranha moça chamou-lhe a atenção.

— Sei que não pediu por nenhum conselho, mas meu tempo aqui está acabando, então lhe direi mesmo assim: você está apenas existindo, sem realmente viver o que este mundo pode lhe oferecer. Permita-se viver um pouco mais e talvez as coisas comecem a acontecer de uma maneira diferente.

Ainda portando o sorriso sedutor de antes, ela soltou-lhe o braço e tornou a caminhar na direção oposta, de onde tinham vindo. Estava na hora de retornar, ao passo que ele deveria seguir em frente, por um caminho ou outro.

— Espere um pouco! — ele exclamou, ao vê-la se afastando sem nenhuma explicação. — Eu tenho a impressão de que já a conheço, mas não sei dizer de onde. Quem é você, afinal de contas?

— Responder isso não fará nenhuma diferença em nada do que eu disse — respondeu em meio a uma piscadela. No entanto, sabia bem que ele não desistiria de sua pergunta com tanta facilidade assim, o que a fez soltar uma risada infantil, do tipo que contagia somente de ouvir. — Pense em mim como uma amiga. Você pode até não me ver, mas saiba que estou sempre por perto.

Ele devia estar ficando louco, o que não era de todo improvável. Se não fosse assim, a moça não teria simplesmente desaparecido diante de seus olhos quando ele piscou de modo involuntário. Ainda assim, ele precisava continuar. Pela esquerda, ou pela direita. Tinha de escolher um caminho e ambos significavam abdicar de alguma coisa muito importante em detrimento de outro. Optar por um deles não ia ser fácil, mas ele sabia que precisava fazê-lo.

Iria, finalmente, tomar a decisão mais importante de sua vida.



Sentada numa poltrona, do lado oposto do quarto, Sarah mantinha seus olhos castanhos fixos na figura inerte de Edgar, buscando algo que pudesse lhe dar a menor esperança de vê-lo acordado novamente. Uma reação. Um movimento. Uma palavra balbuciada em meio ao sono. Qualquer coisa. Mas a despeito de toda sua atenção, ela nada via.

O sol já estava próximo de desaparecer junto ao horizonte, indicando que já estavam chegando ao final do segundo dia desde o acidente. Manter-se há metros de distância de seu consorte era quase uma tortura, principalmente quando ela desejava sentar-se ao seu lado, velando seu sono e garantindo-lhe, assim que acordasse, que tudo ficaria bem. No entanto, aquilo não lhe parecia certo. Não quando sua aproximação parecia trazer infortúnio a todas as pessoas que ousassem conviver com ela. Sentia-se como um amuleto de má sorte em escala real e talvez o melhor que pudesse fazer por ele, naquele momento, seria manter-se afastada, ainda que vigilante.

O som característico do trinco roubou-lhe a atenção, e ver a odiosa Charlotte ingressando no cômodo fez com que todos os pelos de seu corpo se eriçarem, tal como um gato arisco faria.

— Que pensa que está fazendo aqui? — Sarah questionou de maneira sombria, e um tanto ameaçadora. Aquela mulher ocupava umas das últimas posições em sua lista de pessoas confiáveis, o que tornava a situação ainda mais tensa.

— Vim ver o estado de Edgar, que mais poderia ser? — rebateu, de imediato e sem qualquer delicadeza em sua fala. — Não preciso lhe lembrar que, antes mesmo de virar seu consorte, ele é meu irmão. Você não vai querer se meter no meio disto, não é?

Engraçado que não teve a mesma cortesia comigo. Parecia estar disposta a estragar nossa relação, até que finalmente conseguiu”, a menina pensou, com azedume, mas nada disse. Ainda assim, seus olhos não se desviaram por nenhum instante sequer. Se a ruiva esboçasse a menor reação que julgasse inadequada, ela estaria pronta para voar em seu pescoço.

Entretanto, para sua surpresa, Charlotte parecia sincera em suas palavras, talvez pela primeira vez na vida. Caminhando com notável receio, ela sentou-se à beirada da cama, passando a empregar uma delicada carícia nos fios dourados do mais velho. Tanto ele quanto Gilbert haviam herdado os traços de seu pai, no que dizia respeito ao cabelo claro, o porte atlético e a inconfundível elegância no modo de agir. Já ela não passava de uma reprodução fiel de sua mãe, com o corpo marcado pelas curvas acentuadas, as mechas alaranjadas e uma ambição maior que qualquer coisa. O ressentimento em relação à sua genitora pouco havia amenizado com o passar dos anos. O que antes lhe parecia injustificado e irracional passou a fazer todo o sentido, principalmente depois da morte de Allen. Tão logo se viu imersa numa rotina infeliz e sem maiores emoções, Clarisse Avelar não hesitou em deixar tudo que havia construído para buscar aquilo que jamais encontraria enquanto estivesse trancada dentro de uma enorme propriedade, rodeada de criados e afazeres domésticos. “Embora eu a odeie por ter nos deixado para trás, preciso admitir que precisou de muita coragem para abandonar tudo que tinha e partir em busca da felicidade”, pensou, enquanto afagava o rosto de Edgar.

Horas mais cedo, ela não havia mentido. Tinha consciência de que seu irmão era possivelmente a pessoa mais decente com quem já tivera o privilégio de conviver. Seu senso de justiça e preocupação com àqueles à sua volta eram características invejáveis, de certa forma. Lhe partia o coração vê-lo naquele estado tão deplorável, com arranhões no rosto, o braço direito enfaixado e imobilizado, além de restar tão profundamente desacordado, sem qualquer perspectiva de se levantar novamente.

— Se existe algo que jamais falta ao espírito de um Avelar é sua coragem e ambição — a ruiva sussurrou, enquanto abaixava o rosto para agraciá-lo com um beijo carinhoso em sua testa. — Não permita que esse obstáculo se mostre mais forte do que você. Continue lutando.

Apesar de não vislumbrar nenhuma reação física, a mais nova sabia que sua mensagem havia atingido seu destinatário. Com essa certeza em mente, ela afastou-se da cama, desta vez caminhando em direção à jovem rainha, que ainda a encarava com uma expressão banhada em desconfiança.

— Não seja hipócrita e não direcione esse seu olhar para mim. Você nem mesmo o ama, ao menos não da forma como ele merece — Charlotte pontuou com bastante propriedade, sentindo-se pessoalmente afetada pelo sofrimento de seu irmão.

— E ainda assim, eu não consigo suportar a ideia de viver sem ele — Sarah rebateu de imediato, sem abaixar a cabeça ou suavizar o tom autoritário de antes.

— Você é egoísta, e está apenas se aproveitando da personalidade dele para conseguir o que quer. Ele nunca irá deixá-la e, ao mesmo tempo, nunca será realmente feliz. Siga seu plano, Sarah, e conseguirá destruir mais uma vida.

As palavras ecoaram pelo quarto e não perderam seu impacto mesmo após ela se retirar. Sabia que os discursos de Charlotte eram sempre recheados de veneno e malícia, mas… E se, naquela ocasião, ela estivesse apenas fazendo uma análise sensata? E se ela realmente estivesse prestes a destruir a vida de Edgar, se é que já não o tinha feito?

Sua linha de pensamento nebulosa foi interrompida por um gemido baixo, aliado ao característico som do farfalhar dos lençóis. Seus olhos rapidamente buscaram a figura de seu consorte e o que se passava ali poderia ser um ótimo exemplo de um milagre.

Apoiando a palma da mão esquerda, o Duque tentou impulsionar a si mesmo para cima, de modo que pudesse sentar, mas a dor em seu ombro o impediu de prosseguir em tal intento. Tinha o cenho franzido e os dentes trincados, enquanto era atingido pela realização de que tentar levantar-se havia sido uma péssima ideia.

Pulando de sua poltrona com pressa, a jovem correu em direção à cama, sentindo a urgente necessidade de tocá-lo com suas mãos, pois não tinha certeza de que seus olhos não lhe pregavam peças de terrível mal gosto.

— Edgar, você está acordado, eu mal posso acreditar nisso! — Enquanto falava apressadamente, ela reunia todas as almofadas que estavam ao alcance de suas mãos, formando uma pequena pilha acolchoada atrás das costas de seu consorte, permitindo assim que ele ficasse meio sentado. — Não tem ideia do quão preocupada estivesse nos últimos dias. Tive tanto medo de não poder mais vê-lo acordado. Eu jamais me perdoaria se você partisse sem que eu tivesse a chance de me desculpar por tudo… Mas isso não importa, pois vai ficar tudo bem agora, isso eu lhe garanto.

Ainda um tanto confuso, o rapaz apenas assentiu positivamente, pois sua tentativa de concordar verbalmente se mostrou frustrada. Sua garganta estava seca e, se já não bastasse, ele não tinha muita certeza do que poderia acrescentar à sua fala. Não sabia quanto tempo havia permanecido desacordado, mas a julgar pela reação exagerada de Sarah, tinha sido muito além do habitual. Talvez isso justificasse seus pés dormentes e a vontade crescente de tomar um banho.

Recordava-se dos eventos daquela noite chuvosa, estando inclusive envergonhado por ter se comportado de maneira tão covardemente rude. No entanto, suas desculpas teriam de esperar um pouco mais, já que a menina não parava de falar um instante sequer.

— O que deseja fazer agora, comer? Deve estar faminto! Ou talvez prefira tomar um banho. Você teve febre, mas estive tão receosa de machucá-lo, que não permiti que o deslocassem daqui. — Sua fala estava mais acelerada do que nunca, em parte pelo entusiasmo de vê-lo acordado e em parte por não saber ao certo como proceder a partir dali. — O médico! Isso mesmo, ele deve examiná-lo imediatamente! Não me inspirou muito confiança, mas é melhor que temos. Eu mesma irei chamá-lo.

A jovem já havia saltado da cama e estava prestes a sair em busca do clínico, mas parou subitamente ao sentir seus dedos serem fracamente segurados. Foi por sorte que Edgar conseguiu capturar aquela pequenina mão, antes que a euforia exacerbada a levassem para longe. Sabia que Sarah era carinhosa por natureza, mas jamais a viu sendo tão enfática em suas demonstrações de afeto. A cena era um tanto engraçada e fez com que ele sentisse vontade de rir, mas o receio de que a tentativa lhe causasse ainda mais dor desfez qualquer humor presente na ocasião.

— Por favor... fique... — ele afirmou, de maneira sôfrega. Não restando mais que um fio de voz e não tinha força suficiente para segurá-la ali, caso ela realmente decidisse partir.

Aquele pedido, tão simples, mas tão cheio de significado, lhe desarmou completamente. Dias atrás, ele esbravejava para que ela se mantivesse longe. Ainda que não tivesse dado a devida importância, lembrar daquelas palavras traziam à tona o enorme peso da culpa. A jovem rainha tinha muitos defeitos e não os negaria, mas jamais poderia desejar algo de ruim a ninguém. E de todos a quem conhecia, Edgar merecia ser feliz mais que qualquer outro.

— Eu não quero machucá-lo novamente — confessou, em voz baixa e de maneira tímida. Tinha muito o que dizer, mas aquela pequena frase talvez fosse capaz de traduzir o embaralhado de coisas que ocuparam sua mente nos últimos dias.

— Sei que não vai — o Duque respondeu, sendo interrompido por um acesso de tosse, que causou pequenos espasmos de dor em toda a extensão do lado direito de seu torso.

Sarah correu no mesmo instante, auxiliando-o a tomar um copo d'água que encontrava-se sobre a cabeceira. Ela sabia que eventualmente precisaria sair, mas naquele breve instante, tentou não se preocupar com isso. Sentou-se novamente na cama, acomodando-se melhor ao lado de seu consorte. Passou a afagar-lhe os fios, envoltos num silêncio que preenchia o ambiente de maneira confortável, sem o constrangimento de outrora. Não tardou até que enterrasse o rosto seu ombro sadio, sentindo que ali estaria segura.

Tinha certeza de que, enquanto estivessem juntos, tudo terminaria bem.


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