Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 30
Quando dizemos adeus


Notas iniciais do capítulo

Capítulo final. Deu trabalho mas ai está, cheio de sangue, lágrimas e tudo aquilo que você já espera do meu texto. Espero que goste do fim tanto ou mais do que gostou da jornada até ele.

Boa leitura.



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Lá estava ele novamente, lutando para preservar aquilo que lhe era importante: sua liberdade e amada. Ambas, a um passo de serem perdidas para sempre. 

 René o fitava a distância, ou melhor, o pai o fitava através dos olhos do francês. O homem que o abandonou quando ele era ainda um menino que acabara de perder a mãe. Que o entregou nas mãos de estranhos por quinze longos anos, sem dar qualquer sinal de vida ou preocupação enquanto aquele menino assustado se tornava um homem. O monstro que o transformou em monstro semelhante, contra sua vontade, e que o manteve sempre como servo submisso e sem poder de decisão.  

Ao lado de Vlad, o Padre Nicolae manteve-se apoiado na bengala, fraco como todos ali estavam, além de cego. Outrora um homem da Igreja, bom mestre e ser humano, posteriormente transformado em um demônio fanático e cruel, líder de uma seita de imortais bebedores de sangue. O homem que dobrou Adam, que o adestrou até torná-lo um cão leal. Era hora de livrar-se deles, para sempre. 

Adam avançou contra o homem de pele escura, e ao ter seu ataque bloqueado, aproveitou a proximidade para focar no verdadeiro alvo. Sua espada atingindo superficialmente o pescoço do velho vampiro, a potência do ataque diminuída por uma mão que o puxou pela canela em pleno ar. 

— Mas que vergonhoso, Adam. Onde está a honra em atacar um velho cego? — zombou o pai, o jogando contra uma coluna. 

Nicolae afastou-se, levando a mão ao pescoço ferido e dizendo: 

— Não é chegada ainda minha hora, jovem Adam.  

Adam sentiu a frustração de falhar novamente. Falhou por duas vezes em matar René, o que teria impedido essa última cartada do Padre. Agora falhou em matá-lo, e sabia, não teria outra chance. Mas mesmo em meio a decepção, ele não pôde evitar sorrir com o que viu erguer-se em seguida, logo atrás do velho padre. Algo novo, forte... e faminto! 

— Mas que cheiro gostoso é esse, hein, vozinho? — perguntou Elisabeth, abraçando o velho vampiro pelas costas. — Não vai negar bebida a essa pecadora sedenta, né?   

E dito aquilo, encravou as presas no pescoço ferido do velho vampiro.  

— Então meu filho finalmente gerou uma cria das trevas? — disse Vlad, vendo a cena inusitada. — Nicolae, subjugue-a sem matá-la. Afinal, ela será útil para ensinar meu filho a ter responsabilidade. 

Adam olhou para uma Alice que pareceu concentrada, enquanto o vampirinho se colocava a frente da irmã, tanto a protegendo quanto tapando o campo de visão do Drácula até ela.  

— Elisabeth foi o preço para impedir seu retorno completo. E assim como eu quando despertei, é uma criança forte. 

Nicolae gemeu de dor quando caiu de joelhos, parecia totalmente dominado pela vampira que dele sugava com sofreguidão. René fechou o semblante, parecendo dar-se conta de que o velho sucumbiria nas mãos da vampira recém desperta. Como única cria de Adam em séculos, ela herdou grande força. 

— Sua criança parece esfomeada, Adam. Mas precisa aprender a se comportar, como boa menina — afirmou, indo em direção ao Padre que lhe estendia a mão, em súplica muda. 

E foi quando a voz da bruxa se fez ouvir. 

— VladDraculea, eu, AliceWinnicott, lhe ordeno que deixe esse corpo!

O vampiro parou, Adam não sabia se por uma força maior ou por pura curiosidade. A face de René encarou sua amada com um sorriso sinistro, antes de dizer: 

— É melhor domar sua amante, filho, ou terei que ensinar boas maneiras a ela também. 

— Lamento desapontá-lo, mas essa mulher não é domável — respondeu Adam, usando do poder do sangue roubado do pai para fortalecer-se. — Meu conselho é não contrariá-la. 

— A carne e sangue de René Chermont o rejeitam. A alma dele o rejeita. Eu o esconjuro, espírito perverso, lhe nego o direito de possuir esse corpo imortal.

Vlad tremeu, parecendo ter dificuldade de mover-se. Como se lutasse para manter o controle sobre o corpo de René.  

—... meu Príncipe — suplicou o Padre, cada vez mais pálido e magro. —... ajude-me, mestre. 

Vlad urrou de pura revolta, sua face como a de uma animal selvagem, tentando inutilmente aproximar-se do seu mais fiel servidor. 

— Fui generoso com você, filho. Mas se o santo Padre morrer, prometo fazer sua cadela ganir bastante antes do abate! 

— Não devia ter dito isso, alteza — disse Adam, avançando contra o pai, usando o máximo da velocidade que o sangue lhe permitiu. 

Um golpe rápido, e sangue espirrou do ombro de Vlad, seus reflexos mais lentos para bloquear. 

— A carne é espinho. O sangue é fogo! Todo o corpo que agora lhe serve de abrigo se converte em inferno! — Alice dizia as palavras, enquanto o próprio sangue vertia da ferida aberta. — Eu anulo seu domínio sobre este corpo morto, a Bruxa de Prata ordena que vá!

Vlad rilhou os dentes ao sentir aquele corte profundo no ombro. Moveu a espada repetidamente contra o filho, golpes dos quais Adam esquivou e bloqueou, sem dificuldade. Drácula arfafa, com o corpo trêmulo e parecendo pesado. Seus olhos vermelhos fitando Alice, enquanto Adam avançou com outro ataque certeiro, dessa vez visando a perna de apoio. 

Vlad gritou, caindo sobre um joelho. 

— Então novamente trairá seu próprio sangue por uma reles mulher? — questionou Vlad Tepes, com visível esforço para resistir ao estranho exorcismo. — Ainda não entende que no final, a família sempre vem antes dos outros?  

— Eu compreendo bem, pai. Alice é minha esposa, e é toda família que preciso — disse Adam Tepes, com lágrimas vermelhas na face.  

— Sem estacas, dessa vez? — questionou Drácula, diante da lâmina erguida. 

Adam balançou a cabeça em negativa, antes de responder. 

— Não é hora de morrer como monstro, Vlad Tepes. É hora de morrer como príncipe — o pai o encarou com seriedade, suspirando diante do fim iminente. — Adeus, meu pai, príncipe e criador. Que através desse último pecado, eu seja enfim livre. 

A espada passou pelo corpo de René com velocidade, a lâmina afiada do sabre decapitando um alvo com as forças reprimidas pelo poder da Bruxa de Prata. A cabeça rolou pelo chão, enquanto o corpo do morto-vivo tombava inerte. 

Alice recitou mais algumas palavras em língua desconhecida, e logo tanto a cabeça quanto o corpo decapitado começaram a fumegar. Um último gemido foi ouvido do velho Nicolae, seu corpo já cadavérico, e olhos queimados incapazes de converter tristeza em lágrimas ao assistir o fim de suas esperanças. Logo também desfaleceu, enquanto a vampira sedenta saciava seu desejo por sangue. 

Thomas amparou a irmã, após ela perder as forças. E Adam foi até ela, enquanto o corpo de René começava a queimar.  

— Irmã... tem um jeito de salvá-la, eu vou fazer você imortal — disse Thomas, ferindo o pulso com as presas. 

Alice sorriu tristemente, acariciando a face do irmão vampiro. 

— Perdão, irmãozinho, mas eu rejeito sua oferta. Mesmo sabendo que ela revela seu amor por mim. 

Adam se abaixou, segurando na mão da amada. Olhou fundo naqueles olhos, vendo neles uma chama prestes a se apagar, enquanto ela dizia: 

— Foi... maravilhoso estar com você novamente. Sentir você, lutar ao seu lado — as palavras saiam com dificuldade, sua mão na dele. — Parece que nosso tempo juntos é sempre tão breve. O paraíso realmente não foi feito para durar.

Lágrimas abundantes molhavam o rosto dele, mais do que até aquele momento haviam escorrido naquela dolorosa e longa noite. Adam manteve o olhar no dela, sem qualquer desejo de esconder sua dor.  

— Você sabe o que posso fazer — ele disse, mostrando as presas. — Sabe que posso transformá-la. Uma maldição, mas a única forma de mantê-la conosco, de sermos enfim uma família com seu irmão. 

— E você sabe como sou teimosa, não? — Ela sorriu, beijando a mão dele. — E que apesar de tudo, eu prefiro assim. 

Ele beijou a face dela, suavemente, até chegar aos lábios. 

— Não me deixe de novo, Alice. Como posso prosseguir sem você? 

A respiração dela ficou mais acelerada, sua mão apertando mais forte a dele. 

— Uma parte minha estará sempre com você, meu querido, seja nessa vida ou na outra. Só peço que cuide do Thomas, e que ele cuide de você.  

E ela uniu as mãos dos dois nas suas.  A voz dela cessou, seus olhos se fechando em um último espasmo de dor. Adam ficou estático, ainda sem acreditar no que ocorreu, em como o destino o punia novamente de forma tão cruel! Seu olhar perdido vagou pelo lugar, sentindo o calor e fumaça que emanavam do cadáver do francês, do qual só ossos restavam, que já se desfaziam em pó. Do corpo do Padre Nicolae, lançado igualmente ao fogo, provavelmente por sua cria Elisabeth, que agora assistia sua dor. 

Viu Thomas tomar o corpo da irmã nos braços, chorando por ela. E viu vultos surgindo pela escada que descia do altar. Homens e mulheres com uniformes da polícia, armas e lanternas em mãos. Eles diziam coisas, repetiam palavras de ordem que Adam sequer conseguiu entender. Viu Elisabeth erguer-se, com um sorriso maldoso para aqueles humanos e olhando para Adam como quem esperasse uma permissão. Viu Thomas olhando para ele, ao segurar o corpo da irmã. O corpo da jovem Claire Winnicott. 

Não entendeu as palavras, nem mesmo os gritos humanos e sons de tiros. Estava cansado de tudo aquilo, de toda dor e tristeza que o consumiam. Sua presença emanou como uma força terrível, a ponto de cada humano e vampiro senti-la. Então invocou uma centena de morcegos, capazes de protegê-lo e deter as armas de seus adversários, que foram jogados para longe. Ele a tomou nos braços enquanto ouvia o som de gritos e tiros, sentia o calor do fogo e da fumaça. Enquanto sentia a dor de viver tudo de novo, de perder Alice novamente. De perder a Claire. 

E se mesclando ao enxame de morcegos ele voou, e ignorando as limitações de seu dom das trevas, carregou o corpo de sua amada consigo. Seu poder maior do que nunca. Sua dor também. Atravessando corredores e escadas o sombrio enxame alcançou o céu de uma noite fria, e que começava lentamente a derramar sua chuva sobre ele. 

*** 

Paul sentiu a cabeça latejar, antes mesmo de abrir os olhos. Levou alguns segundos olhando a rua a partir do chão, até se lembrar do motivo daquilo. Derrota. O gosto era amargo, nem tanto pelo sangue, quanto pela humilhação. Levou a mão a face, onde sentiu o corte que o lobisomem lhe fez como aviso. Ardia. Queimava. Todo seu corpo doía, de modo que erguer-se do chão pareceu a ele um esforço hercúleo. 

Seu corpo foi castigado de mais por uma única noite. O Padre por si só já lhe deixou a beira da morte, para então ter que enfrentar um lobisomem daquele porte, de surpresa em sua própria casa. Isso, fora o efeito da bebida. Mal pensou no álcool, pôs parte dele para fora. Como a situação pôde ter mudado tão rápido? Era deprimente assistir sua vitória ser tirada dele tão facilmente. Ao pensar naquilo, o professor acelerou para dentro, seguindo o corredor até a porta entreaberta, apenas para constatar o que temia: Jeanne Hillton também sumiu. 

— Monstros malditos! — gritou ele, sabendo que a vampira conseguiu escapar de suas mãos, junto da loba. Pegou o arpão e munição na gaveta, disposto a arriscar a chance de encontrá-la antes de decidir o que fazer. Pareceu a ele que os monstros de Bleak Hill resolveram se unir, afinal. 

E só então se deu conta do maior de todos os riscos, do maior de todos os seus medos. 

—... Kellen. 

Paul voltou em disparada, seu coração acelerado temendo tê-la perdido para sempre. Que importava Jeanne Hilton diante da mulher que amava? Que importavam os lobos, diante do valor de Kellen Davis? Paul bateu a porta do quarto com violência, ao perceber que as correntes foram rompidas. Não foi o lobo, sem dúvidas foi a Jeanne, ele sabia. Ela deveria aproveitar bem seu tempo livre, pois as coisas que Paul começava a imaginar fazer com ela, transformariam as lembranças de sua tortura até então parecerem com férias na Disney.  

Ele viu as marcas de sangue, perto das correntes e pelo caminho. Deixando um rastro até a porta de saída. Um rastro que o levou até ela. 

— Kellen, fique onde está! — ordenou o caçador para a ex-esposa, que se afastava com dificuldade. 

Kellen tinha marcas de tiro nas pernas, das quais escorria aquele sangue. Coisa da Jeanne, sem dúvidas, pensou ele. Uma isca para encobrir sua fuga.

— Não fui até o inferno buscá-la, só para assistir sua partida — disse ele, apontando a pistola. — Você fica comigo! 

Kellen estava de costas, até virar-se repentinamente. Seu movimento escondendo uma faca de cozinha, que foi arremessada mirando a cabeça dele! Paul se viu obrigado a bloquear a lâmina com o braço da arma, a dor, o fazendo soltá-la.

— Já disse como isso acaba, Paul — disse ela, escorando-se na cerca da casa. — Não serei sua. Nunca serei sua de novo! Isso é um adeus, Davis. 

Os olhos do professor começaram a embaçar, a dor e álcool deixando seu corpo pesado. Ela estava a um passo de sair de seu terreno. Um passo de deixá-lo para sempre. E ele já perdera tanto, sacrificara tanto por ela!  

Não, ela não podia deixá-lo. Não iria!

— Faça, Paul — disse a madre ao seu lado, apontando para a vampira. — Mate a súcubo que te enfeitiçou. Mate todos os demônios!  

Paul disparou o gancho com sua mão boa, vendo a ponta prateada atravessar o tronco daquela que novamente tentava abandoná-lo. Que ignorava sua dor, que cuspia em seus sentimentos. A vampira gritou, caindo de joelhos. Levou as mãos ao ventre, de onde a coisa atravessou seu corpo para prendê-la pela frente.  

O professor então acionou a opção de puxar, segurando com ajuda do outro braço, enquanto a vampira era arrastada até seus pés. 

— Des... gra... çado... — Kellen cuspiu sangue, com aquela coisa aberta do lado de fora do tronco, queimando sua carne e exalando fumaça. 

Ele levou a mão boa as costas, de onde tirou uma estaca.  

— Você é um demônio que bebe sangue, uma sociopata sobrenatural que parasita a minha raça — disse ele, com olhos frios para a mulher que amou. — Não posso permitir que mate de novo. 

Kellen falava com dificuldade, por conta do sangue na garganta. 

— Não... é esse... o motivo. Você sabe que não é. 

— Estou cansado de todos vocês, de todos os monstros! 

—... você continua um grande mentiroso.

A voz da vampira se transformou em um grito, quando o caçador enfiou a estaca em seu coração. A vida imortal logo abandonou aqueles olhos, com o corpo apodrecendo pelos anos em que enganou a morte. Paul desviou o olhar, se arrastando para o interior da casa. Se deixou cair enfim no cômodo secreto, seus olhos fitando o nada, vermelhos de choro e bebida. 

— Vê, Paul, no que dá brincar de Deus? — perguntou a madre, novamente. — Você deveria matá-los, não brincar com eles. Exterminá-los, não fazer experiências! 

Ele não a encarou, apenas continuou catatônico. 

— Você perdeu tudo, cara. Você é um lixo — afirmou um antigo caçador morto por ele. — E sua mulher, hein? Acho que ela preferia fuder  com o Drácula! 

Os mortos riam, zombavam. Paul levou as mãos à cabeça, caído, desamparado. Corpo e mente em ruínas.

— Lamento por ter falhado, Paul. Mas prometo que não vou te deixar sozinho — a voz era de Roger, o ex-detetive. Paul contemplou com pesar a face do pobre homem, que exibia um buraco na testa, de onde jorrava sangue. O homem que ele sacrificou para chegar até  Kellen. 

Ele se arrastou até sua mesa de trabalho. Sob o som dos risos, das críticas, dos sermões e das promessas. Abriu a gaveta, retirando de lá duas coisas: uma foto, dele junto da Kellen... de uma época feliz. E uma pistola, dessa vez carregada. 

—... o lobo sabe sobre mim agora. A garota também, e claro... a puta vampira. — Um sorriso nervoso no rosto suado. — Minha vida aqui acabou. 

Ele sentiu os olhares sobre si, a expectativa. 

— Quem sabe no outro mundo possamos viver juntos no inferno... Kellen. 

E do lado de fora da casa, um tiro pôde ser ouvido. 

*** 

— Agora você tá livre — o garoto disse, após abrir com um arame a última corrente que prendia a menina. 

— Até que você não é de todo inútil, Scooby — disse Mandy, vestindo apenas a camisa que ele lhe deu quando a libertou. — Já serve pra arrombador, além de mau exemplo. 

— Não enche, Hello Kitty! — respondeu ele, jogando fora arame e correntes. — Se ficar de graça, vou ter que te mostrar outra coisa em que sou fodão. 

 A garota riu, se aproximando de modo provocativo. 

— Mas é um tarado mesmo! Até parece que eu ia querer algo com um marginal que nem você, melhor se enxer... 

Ela foi interrompida por um beijo do garoto, que a puxou pela nuca e cintura. A jovem retribuiu automaticamente, e com ainda mais vontade que ele. As mãos dele a apertaram com força, ela mordendo seu lábio enquanto se beijavam com desejo e selvageria, derrubando coisas pela sala e fazendo barulho suficiente para acordar os moradores da casa que invadiram. 

— Alguém é bem safadinha, né? — disse ele, recuperando o ar. 

— Viu nada, ainda — respondeu ela, lambendo seu pescoço. 

Então ouviram barulho próximo, e o cheiro de alguém tão indesejado quanto familiar. 

— Quem quer que esteja aí, é melhor sair de fininho e com as mãos para o alto. Eu tenho uma arma e sei usá-la. Sei sim senhor.

— Tá de sacanagem que com tanto lugar pra entrar, a gente veio logo na pensão do velho Fremman? 

Mandy riu, se afastando dele e fazendo que sim.  

— Viu só? Quem mandou pensar só com a cabeça de baixo? 

E dito aquilo, a garota assumiu a forma de loba, saindo pela porta da pensão. Andy decidiu que o melhor era fazer o mesmo, e um lobo branco se uniu a loba de pelo escuro. Ambos correndo pelas ruas enquanto brincavam de empurrar ou morder um ao outro. Quando já se tornava visível o hospital onde Jimmy estava internado e sendo vigiado pela Emma, Andy parou. Assumiu forma humana, e disse aquilo que não queria dizer, mas que precisava. 

— Você... você não pode tá falando sério — Mandy respondeu, dando um soco no ombro dele. — Depois de tudo que fez por mim, depois de tudo que a gente viveu lá em casa. 

Ele desviou o olhar, sem jeito, ao que ela suspirou tristemente. Então o abraçou, o beijando com desejo. Um beijo longo, cheio de vontade, esperanças e medos. Quando terminaram, foi Andy quem se afastou primeiro, enquanto a ouvia perguntar: 

— E o que eu digo pra o Jimmy? Ou pra Emma?  

Diz que eu preciso de um tempo sozinho. Que eu fiz coisas que não me orgulho, mas que faria de novo se precisasse. — Ele sorriu pra ela, que estava corada pela situação. — E diz que eu sei onde vocês moram, que se precisarem eu chego ai em um pulo. E que quebro a cara do Jimmy se ele der meu sótão fedido pra alguém.  

Ele estava nu. Dessa vez, tinha ainda menos do que quando chegou aquela pequena cidade, refletiu. Um ladrão que viajou para ganhar dinheiro, e voltava de lá sem nenhum centavo.

— Não é bem um adeus, Hello Kitty. É só um até logo. 

Dito isso, ele assumiu novamente a forma de um lobo branco, uivando alto.  

— Até logo, Scooby — ela respondeu, com um sorriso meigo no rosto. — Não esquece de voltar pra sua matilha.  

Ele tinha uma nova família. De certa forma, pareceu a ele ter feito um grande negócio.

*** 

Adam chegou a sua casa, sob uma chuva fria que molhou a ele e ao corpo de sua amada. Ele a colocou na cama, semelhante àquela sobre a qual ela morrera trezentos anos atrás. O pesar em seu olhar era grande, sentindo aquela noite amaldiçoada repetir-se.  

— Tente ser forte, senhor Adam — Teresa disse, após abraçá-lo forte. — Não é culpa sua.  

Adam tentou buscar conforto naquelas palavras, mas ele sabia o quão inútil era. Alice morreu por sua culpa, trezentos anos atrás, ele sabia. E agora Claire morria, tendo a vida interrompida por que um certo vampiro despertou em seu mundo e cidade, arrastando a doce e esperta universitária para um mar de sangue e morte. Para o reino dos filhos da noite. 

— Claire... eu lamento tanto, tanto por isso — chamou ele, tocando levemente a face fria da jovem que amava. — Prometo que não importa quantas vezes sua essência reencarne a partir de hoje. Jamais cruzarei seu caminho de novo. 

Segurou na mão sem pulso, força ou vida. Beijou seus dedos com ternura, cobrindo seu corpo com o lençol da cama. Adam deixou-se cair, toda dor do mundo sobre ele. As lágrimas rubras molharam seu rosto, ao mesmo tempo em que ele abraçava o próprio corpo, como se buscasse desesperadamente conforto. Teresa consolou-o da única forma que pôde, cedendo seu ombro e abraço. Acariciando os cabelos daquele homem acabado, que chorava de modo convulsivo uma perda que ela não poderia remediar.

Adam deu vazão a sua dor, tanto nova quanto antiga, sabendo que dessa vez não poderia fugir para o sono eterno em nome da esperança de reencontrá-la. Não. Ele tinha que honrar a vontade da amada, tinha que cuidar do pequeno Tom. Tinha que se responsabilizar por Elisabeth, seu sangue. Tinha que encontrar um modo de suportar aquela dor enquanto permanecia de pé naquele mundo, sem sequer a esperança de reencontrá-la. 

E foi com essa dor e decisão que ele permaneceu pelas horas seguintes, e assim adormeceu, ao amanhecer. Cessada a luz do sol, seus olhos se abriram, no mesmo instante trazendo toda dor de volta com eles. Ele estava deitado sobre a cama, provavelmente graças a Mendes. Se entristeceu ao perceber que ela não estava mais lá, que o corpo dela foi levado a outro local.  Adam se levantou sem vontade alguma, como passaria os próximos anos a partir daquele momento. Seguindo em frente, ainda que sem esperança, ambição ou vontade. Uma coisa era certa: partiria de Bleak Hill tão logo fosse possível. Aquele casarão amaldiçoado lhe trazia lembranças demais, dor demais. Tudo ali o lembraria daquilo que perdeu, de modo que quanto mais longe fosse, menos física a memória seria. Daria o casarão a Teresa, assim como metade de seus bens. Ela merecia paz e alguma felicidade... isso estava decidido. 

Quem sabe após cumprir sua missão para com Thomas e Elisabeth, poderia enfim descansar pela eternidade. Voltar ao túmulo de onde jamais deveria ter saído. Desejava encontrar seu fim pelo nascer do sol, forma mais bela para um vampiro morrer, em sua opinião. E enquanto estava imerso por esses pensamentos, não percebeu a presença de outra pessoa ali. 

—... olá — disse uma voz familiar. 

Adam olhou confuso para a direção da sacada, de onde surgiu a pessoa que o aguardava. 

— Eu estava meio entediada já de esperar você acordar. Sabe, não estou acostumada a namorar um homem que acorda após as seis da noite. — Era ela, Alice... Claire Winnicott! 

Viva, com roupas limpas e radiante. Um sorriso no rosto e uma xícara de chá nas mãos. Ele ficou atordoado, por um momento cético sobre aquela visão.  

—... é você? — sussurrou a pergunta, timidamente. 

Claire se aproximou mais, parando a sua frente. 

— Parece que viu um fantasma — brincou, seu sorriso único e olhos profundos o quebrando por completo. 

Ele a puxou para si, segurando seu rosto com olhos brilhando, admirando sua face como se fosse a primeira vez. 

— Como pode ser. Você se foi, Alice se foi... eu vi. 

Ela acariciou seu rosto, sentindo seu cheiro. 

— Sim, ela se foi. Alice Winnicott, sua antiga esposa, se foi para sempre. Ela me disse isso, ao me trazer de volta. Sem mais reencarnações ou possessões, esse foi o preço pra me manter nesse mundo — e dito aquilo, ela se afastou. 

— Sobrou apenas eu: Claire Winnicott. — Fez uma mesura exagerada ao estilo antigo. — Espero que seja o bastante, alteza. 

Ele sorriu, gargalhou diante dela, a fazendo rir também. 

— Então, Claire Winnicott, o que acha de recomeçarmos? — ele perguntou, estendendo a mão para ela. — Me chamo Adam Tepes, senhor dessa casa, filho do Drácula, viúvo e irremediavelmente apaixonado por você. 

— Prazer, Adam. Sou Claire Winnicott, estudante de psicologia, humana, filha de um pai ingrato, irmã de um vampirinho e patologicamente apaixonada por um certo homem charmoso. — Ela respondeu, segurando firme a mão dele. 

E eles sorriram, e se beijaram. Um beijo suave, cheio de esperanças e amor. Então olharam juntos para aquela linda lua no céu estrelado, iluminando aos dois, e a cidade de Bleak Hill. Adam Tepes sentindo-se enfim feliz, feliz como nunca pensou que poderia voltar a ser um dia. 


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Notas finais do capítulo

E assim termina essa história. Espero que tenha valido a pena o tempo dedicado a leitura dela. Mas me diz: o que sentiu ao fim de tudo? Algo desapontou? Surpreendeu? Deixou com raiva? Rs, seja o que for, quero saber.

Então aproveite esse capítulo final para deixar um comentário dizendo o que gostou ou não nos personagens e na trama, ou mesmo um simples "oi", já me fará saber que leu minha história.

Esse foi o fim, mas em seguida vem um epílogo, uma cena extra para dar um gostinho a mais ao encerramento. Aproveito ela para falar mais um pouco, então não esqueça de ler.



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