Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 27
A Esposa do demônio


Notas iniciais do capítulo

Adam e Alice juntos novamente. É hora de ir do passado ao presente, para saber o que reserva o futuro para o nosso casal.

Já Paul e Andy prosseguem em sua jornada, cada vez mais interligados em uma tragédia anunciada.

Divirta-se.



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Antes daquela noite ela já previu o que viria. Viu fogo, ouviu gritos, sentiu a tempestade no ar. Mas guardou apenas para si. Ele estava feliz demais para ser perturbado pelo medo dela. Ele já tinha seus próprios demônios a atormentá-lo, ela sabia.

Aquela cidade era território de grandes alcateias de lobisomens, terra em que nenhum vampiro ousaria pisar. Adam era capaz de esconder sua natureza de qualquer um, mas foi apenas graças aos poderes dela que eles conseguiram se manter lá por tanto tempo sem chamar a atenção de homens ou lobos. Pensaram que aquilo os manteria protegidos. Uma ilusão.

Ela consultou outra vez as cartas, mas o resultado foi o mesmo. Um ciclo que se encerrava. A Roda da Fortuna. O Padre os descobriu, e se a Ordem do Dragão não pôde ir até eles, incitou o povo da cidade a fazê-lo.

E logo ela chegou: uma noite amaldiçoada, em que densas nuvens choravam sobre corpos de vivos e mortos. Diante da mansão, um espetáculo de sangue e morte que somente seu amado era capaz de proporcionar. O som de carroças e cavalos, disparos de mosquetes e de bestas, gritos de homens e animais em pânico. Se os lobisomens não avançarem contra eles lhes dava alguma chance, por outro lado, impedia qualquer tentativa de fuga da fúria do povo. Ela assistiu a tudo aquilo sem esperanças, com seu coração dizendo ser o fim. 

Outra carta foi tirada: A Torre. E como se dela caísse, Alice viu o povo antes gentil e amável com ela, gritar por sangue e morte. Adam partiu determinado a exterminar aqueles muitos homens que ameaçavam sua casa, e criando o inferno no meio deles, atraindo sua ira contra si, proteger a amada. Ela sabia que o vampiro fazia o impossível lá fora, mas também que as vezes, mesmo o impossível é insuficiente. Eles por fim chegaram ao seu lar.

Na defesa do casarão, apenas uma dúzia de homens. Homens de confiança de Willian Connor, único amigo do casal. Homens da própria região, muitos na verdade, maridos ou filhos das empregadas que o casal contratara há poucos anos. Foi um duro golpe para ela ver que dentre os doze guardas, cinco fugiram com parentes e espólios ao ver a aproximação dos inimigos, e os outros sete resolveram mudar de lado quando ouviram que seus patrões eram "uma bruxa e um vampiro". Bruxa, a desculpa perfeita para que aqueles homens "leais e obedientes" de antes, se achassem no direito não só de traí-la, mas também de tentar violá-la, para só depois entregá-la aos invasores. Infelizmente para eles, Alice Winnicott tinha uma espada, e sabia usá-la muito bem.

Mais uma carta: Nove de Espadas. Apenas desilusão e dor se seguiram. Foi com pesar que ela puxou a espada do peito do último dos traidores. Não esperava que o respeito e generosidade dela para com eles valesse tão pouco. Ainda assim, uma bruxa da sua categoria não tombaria daquela forma.

Sete corpos espalhados pela casa antes mesmo que os inimigos entrassem. Na verdade oito, pois uma das empregadas restantes não reagiu muito bem ao encontrar o corpo do marido pelo caminho, e decidiu que seria ela mesma a vingar seu amor. Não durou muito. Quando os inimigos chegaram, não houve resistência alguma para além de uma jovem com uma espada em mãos e um coração determinado.

— Vejam, a bruxa está matando seus próprios servos! — gritou um jovem ruivo e forte, para o irmão de lamparina e espada em mãos. Gêmeos idênticos aqueles que trezentos anos depois tentariam violentar Claire Winnicott.

Alice observou aquela dupla que subiu as escadas com olhos fanáticos, famintos por saciar seus instintos que pediam por sangue... e prazer. E olhando para eles, notou o quão mais monstruosos que o morto-vivo que amava eles lhe pareciam.

Com a beleza artística e precisão de uma bailarina, ela desviou da lâmina do primeiro, com duas estocadas rápidas ceifando a vida de ambos os irmãos. Seus corpos rolaram pelas escadas, em uma sequência capaz de perturbar os ânimos daqueles que invadiam e incendiavam seu lar.

— Sou uma só, rapazes, esperem sua vez de dançar, sim? — provocou ela, recuando para os corredores.

Os inimigos subiram por mais de um caminho, com espadas, bestas e mesmo armas de fogo. E ela os enfrentou, sem regras, sem auxílio, usando apenas sua habilidade superior, astúcia e domínio do terreno para diminuir a desvantagem. E claro, sua feitiçaria. Sons e vultos os confundiam, seus olhos muitas vezes incapazes de enxergar o alvo diante deles. Cada um deles tombou em meio àquela dança mortal, mas não sem deixar sua marca. Corte após corte, seu corpo foi perdendo as forças, tornando mais e mais difícil reagir a tempo.

Adam era um vampiro, seu corpo morto capaz de suportar e se curar de ferimentos capazes de matar a qualquer mortal, mas ela não. Sua humanidade, elemento que tanto fascinava seu amado, a limitava a cada novo ferimento.

E a última carta tirada foi... A Morte. Quando enfim eles deixaram de subir, ela tinha um corte profundo na altura do ventre, de onde o sangue jorrava abundante. Seu corpo já fraco caiu sobre a cama, buscando o descanso eterno... desejo ao qual ela não cedeu. Não sem vê-lo uma última vez, não sem olhar para os olhos que sobre ela exerciam uma força de atração para a qual não encontrava explicação.

E foi assim, cercada por corpos e armas de inimigos, em meio ao fogo que consumia seu lar, com um ferimento mortal, após um tempo que pareceu eterno, que ela o reencontrou. 
Um último encontro e uma última noite juntos. Ao menos até aquele momento.

***

Adam olhou para sua amada com visível espanto. Alice, sua Alice, de volta. De algum modo que desafiava a razão, sua alma tomou o controle do corpo da Claire, sua encarnação atual. Ele não se importou realmente com explicações, não quando podia tocá-la e sentir seus lábios, seu cheiro, sua voz e seu amor. Mas infelizmente para ele, ainda havia uma estaca em seu peito o impedindo de fazer isso.

Como que ouvindo sua súplica interior, Alice estendeu a mão, sussurrando e fechando o punho. Adam sentiu quando a madeira partiu-se por magia, aos poucos virando pó. Não havia mais estaca... nem nada impedindo que se tocassem.

Ele avançou até a amada o mais rápido que conseguiu, ainda debilitado. A abraçou com força, ignorando os inimigos e todo o inferno que os circundava. Ela se deixou abraçar, seus lábios retribuindo com o mesmo fervor e paixão os sentimentos que encontrou nele. Por um momento, um efêmero e singelo momento, eles foram um novamente.

—... eu ouvi sua voz me chamando. Eu voltei, voltei por você — disse ele, olhos nos olhos, enquanto os lábios se afastavam.

Ela sorriu, o conhecido sorriso que ele tanto amava, dizendo:

— Eu sei, meu amor. Eu sinto você através dela... através da minha nova eu. Desse vendaval de sentimentos que você desperta no coração da Claire, desse...

O momento foi interrompido por um disparo em direção a Alice, que Adam habilmente evitou, a puxando mais para si. O tiro veio da arma de um vampiro de origem latina, que os encarou com ar de tédio.

— Desculpem estragar seu momento, mas tamos no meio de algo importante, aqui — ele disse.

O casal sorriu, examinando a nova situação. Tom estava de joelhos, parecendo lutar contra as ordem do seu criador de matar Claire. René se alimentava de pacotes de sangue embalado, entregues por uma vampira. Como resultado, seu braço decepado foi regenerado, e alguns dos muitos ferimentos estavam em melhor estado. O Padre se ergueu, apoiado na bengala. Todo o sangue ainda fluindo rumo ao túmulo profano.

— Essas armas modernas são bem rápidas — Alice comentou, com um movimento a distância roubando das mãos da vampira a adaga de René. — Acho que prefiro algo mais familiar.

— Penso o mesmo. E quando voltei, levei alguns tiros também — Adam respondeu, sentindo-se revigorado pela presença dela, ainda que faminto.

Os vampiros pareciam aguardar ordens para agir. Adam atento a tudo, incluindo a aproximação da jovem ruiva diante de si, que disse:

— Adam Tepes, eu, Elisabeth, ofereço meu sangue a você. — E dizendo aquelas palavras, a garota afastou os cabelos do pescoço, inclinando-se para o vampiro.

Adam sorriu sem graça para a jovem e então para Alice, que suspirou e desviou o olhar. Ele a tomou nos braços, afundando as presas no pescoço da garota, que gemeu de prazer.

— Thomas, minha criança... mate a bruxa — o Padre ordenou, o vampirinho erguendo-se por fim. — Ela precisa morrer, e não há muito tempo. O Grande Mestre precisa da vida da bruxa para retornar, então, todos vocês... façam o que tem que ser feito.

***

Paul cortava a cidade em seu carro negro como a noite e blindado como sua armadura. No banco de trás, uma adolescente nua e acorrentada com prata, se encontrava inconsciente. No da frente, uma vampira também amarrada com prata, mas vestida e consciente o olhava. Duas mulheres que lhe deram muito trabalho para serem capturadas, até o último minuto. Paul dirigia o mais rápido que podia, focado na estrada deserta, tentando não pensar no que aconteceu minutos atrás. Tentando não pensar na morte de Roger Green.

— Então é ela, Paul? A súcubo que te enfeitiçou, que te transformou nisso? — perguntou uma voz que não ouvia há algum tempo, a voz da madre Pietra, sentada atrás de si.

Paul segurou mais firme no volante, tentando ignorar a figura que o assombrava.

— O quão mais fundo deseja afundar, não vê no que está se tornando? Feriu e matou inocentes em nome de uma vampira que nem sequer o reconhece, um demônio incapaz de amá-lo! Sacrificou não só a mim, mas também aquele bom homem apenas para chegar a ela. Está servindo de capacho não só para bebedores de sangue, mas agora, até para lobisomens, os cães do inferno — ela prosseguiu, seus olhos ternos. — Não sente o peso do fardo? Não sente as correntes que o puxam para o fundo?

O carro parou bruscamente, Kellen sendo jogada contra a frente do veículo.

— Parou, enfim. Se deu conta da loucura que cometeu? — sua ex–esposa perguntou, encarando o mascarado.

—... não sou capacho de ninguém — ele sussurrou, para uma mulher morta.

— Nem de Adam Tepes? — perguntou a vampira, imaginando que ele falou com ela.

— O Tepes é minha ferramenta, não eu a dele. Precisava de poder para chegar até sua seita, e é isso o que ele é: uma arma poderosa.

— E acredita realmente que ele pode destruir a Ordem do Dragão?

— Minha esperança, meu amor, é que eles se destruam.

A vampira testou as correntes, gemendo baixo ao sentir a pele queimar. Paul retirou a Máscara quebrada, sua face não conseguindo disfarçar seu estado de espírito perturbado.

— Pegue logo a estaca, Paul. Sabemos como isso vai terminar de qualquer jeito. O que realmente quer com todo esse teatro.

Paul a encarou, mudo. Então se aproximou dela, dizendo:

— E o que eu quero, Kellen? Me diga então o que eu quero, pois agora nem eu tenho certeza. Mas sei que quero respostas.

Kellen riu, balançando a cabeça em negativa.

— Não, Paul. O que você quer é poder sobre mim. Quer que eu seja sua, como eu fui um dia. Mas isso você não pode ter.

O Golem pegou o celular, logo virando para ela a tela exibindo uma foto dos dois juntos. Pareciam apaixonados nela.

— Isso, Kellen, foi o que o Padre maldito nos roubou. Éramos felizes, felizes de verdade! Você pode não enxergar isso agora por conta daquilo em que ele te transformou. Mas tenho certeza que seu lado humano ainda sente o mesmo que eu. Então me diga, meu amor: o que ele te prometeu que te fez abrir mão disso? Ele te deu realmente alguma escolha?

— Inacreditável. Você mudou em muitos aspectos, Paul Davis, mas nesse continua o mesmo: é incapaz de enxergar a realidade! Estávamos separados, Paul, um ano morando em casas diferentes antes da minha transformação. Antes que o Padre Nicolae me desse a imortalidade e sentido que sempre busquei no conhecimento, romance ou religião.

A vampira o encarou, Paul desviando os olhos.

— Um ano, Paul. Ano durante o qual meu advogado tentou te fazer assinar o divórcio, inutilmente. Um ano em que mesmo assim você me seguiu, ligou, insistindo para que voltássemos.

Paul pressionou os olhos com os dedos, tentando ignorar aquelas palavras sem sentido.

— Você está dizendo bobagens. Sabe que nada disso muda o fato de que ainda me ama, que mesmo que essa seita de monstros tenha te levado a ceder ao seu lado bestial, ainda há aí dentro a mulher que eu amo. Kellen Davis, a acadêmica apaixonada e cheia de vida. A Ordem te matou, te corrompeu, te iludiu... mas o que nós temos é algo capaz de sobreviver a qualquer coisa, meu amor. Até a isso.

— Você continua tapando os ouvidos para aquilo que não quer ouvir, mas vou deixar o mais claro que consigo, ex-marido: eu não te amo mais, Paul. Acho que amei um dia, mas foi algo que acabou quando deixei sua casa. Você me perdeu como humana. Eu deixei de te amar, Paul, quando ainda era humana. Não culpe o vampirismo ou a Ordem do Dragão por nada disso.

Paul ficou em silêncio enquanto as lágrimas molhavam seu rosto. Foi tão longe, arriscou tanto, sacrificou tanto por ela... que não podia acabar daquela forma. Não, ele não permitiria que acabasse daquela forma!

— Acredito que seja agora que você me mata, estou correta? — Kellen perguntou, o rosto também molhado de lágrimas, só que feitas de sangue.

Ele olhou para a pistola com balas de prata. Para as espadas e a estaca. E para o retrovisor, nele encontrando Pietra.

— É essa, mestre Davis, a hora de se redimir diante de Deus e dos homens. A hora de começar uma jornada de expiação por seus muitos pecados — disse Pietra, a mão sobre seu ombro. — Mate a vampira. Mate a loba. Faça o que precisa ser feito.

***

Andy abriu os olhos. Todo seu corpo doía, mas foi de sua perna que veio a dor que lhe fez gritar. Arrancada, do joelho para baixo, e caída próxima a si. Caído também estava o cadáver de Malcom, sua cabeça encravada em uma haste de madeira do banco quebrado, e o resto do corpo caído abaixo. Em sua forma humana, muito menos impressionante.

Malcom morreu, enfim. Andy o matou, quase morrendo no processo. Mas a dor era muito grande! Era difícil raciocinar sem a parte de baixo da perna, por isso ele arriscou sua única esperança de ajeitar aquilo: virar lobisomem. E ele transformou-se, só cadáveres testemunhando a cena.

Então se lembrou da Mandy. Por quanto tempo teria apagado? Não importava, o garoto precisava de foco, depois pensaria naquilo. E foi com o máximo de concentração que conseguiu, que se arrastou até a perna arrancada e a pegou com a as garras.

— Gruda. Vamos... gruda! — ordenou o monstro para a parte bestial e a humana, forçando uma fusão que nem sabia se era possível.

Mas era. Sua carne de lobo começou a crescer em direção a humana, os vasos sanguíneos fazendo a carne branca pulsar, com nova vida transformando tudo em uma coisa só. Logo ele teve a perna restaurada, e conseguiu se pôr de pé.

— Mandy.

O lobo se pôs a farejar, buscando o cheiro da garota que ele esperava não encontrar morta. Seguiu o cheiro que acompanhava o dos vampiros que a carregavam quando a viu pela ultima vez. O faro o levou até os cadáveres da dupla, ambos com estacas no peito e buracos na cabeça. Devia ser coisa do homem de preto, pensou.

Voltou a farejar, trabalho difícil quando haviam tantos corpos e cheiros diferentes no mesmo local. Sentiu o odor de outros vampiros pelos corredores. No fim, deu de cara com quatro cadáveres dos vampiros que carregavam o tal Padre de quem a vampira falou. Estavam completamente secos. Depois daquilo, apenas o cheiro do velho vampiro, as pegadas sujas de sangue mostrando que ele resolveu jantar seus capangas para colar a cabeça de volta. Mas nada de Mandy Duncan.

Frustrado por não encontrá-la, o lobo voltou pelo caminho para confirmar o que já imaginava: o mascarado pegou a loba. Com esforço Andy distinguiu os cheiros dele, da vampira e da Mandy, todos juntos. Saiu da igreja, logo se dando conta que o odor continuou até o lado de fora dos muros.

— O Malcom dançou, né? — a voz era do lobo chamado Rickon, em forma humana e com olhar abatido. — Se você saiu vivo, é sinal disso.

— Vai tentar vingar o cara? — Andy questionou, o olhando com desdém. — Bom que assim eu fecho o serviço.

— Eu era o mascote, Valentine. O mais fraco e bobo do bando. Incapaz de vingar qualquer um... e tão inútil que você nem se deu ao trabalho de me matar.

Andy o encarou, surpreso pela forma que o garoto falava. Seu corpo tremendo de medo conforme o lobo se aproximava, mas sem sequer ter tentado fugir. Conforme se aproximou, sentiu o cheiro do sangue da loba Peg, e do bebê que ele matou e jogou sobre Rickon. Seu estômago embrulhou com a lembrança da sua brutalidade, e Andy logo desviou o olhar do jovem suicida.

Som de sirenes se fizeram ouvir. Era a polícia de York, e parecia vir aos montes. O som de um helicóptero também era audível.

— Eu vi quando o mascarado levou a Mandy — afirmou o jovem, chamando a atenção do lobo. — Ele apontava uma arma para a Kellen, uma vampira importante, algemada e carregando a Mandy nas costas. Atravessaram o portão arrombado e entraram em um carro, parado pra lá.

Rickon apontou a direção, guiando Andy até a entrada arrombada. Ao longe, ele viu a primeira viatura.

— Tá me ajudando por que?

Ele deu de ombros, enxugando uma lágrima.

— Eu, você, a alcateia... todos fomos bem filhos da puta, né? — respondeu, olhando em volta. — Só que a Duncan não. Ela é a única limpa nessa história, e não merece pagar pelos nossos erros, então... vai e salva ela.

E após dizer aquilo, o garoto assumiu a forma de um lobo comum. Cruzou os portões e passou pela viatura, já mais próxima que antes.

— Ela consegue, todos da matilha conseguiam... até você — Andy disse, olhando para o lobo já distante. — Então eu também consigo.

O grande lobo branco fechou os olhos, se concentrando e forçando seu corpo a mudar. Em um momento assumindo a forma de um lobo de porte comum, seu pelo ainda sujo de sangue e seus olhos vermelhos. O lobo enfim cruzou os portões, ignorando as viaturas e gritos dos policiais que apontavam pra ele. Concentrado em sentir o rastro do carro, com o cheiro da Mandy nele.

"Aguenta firme, Chapeuzinho" — pensou ele, incapaz de falar. — O lobo mau já tá chegando.

***

Adam terminou de beber da garota, a deixando fraca, porém ainda consciente.

— Deixe-a comigo, Adam. Faça aquilo que tão belamente faz — disse Alice, abaixando-se diante de Elisabeth, enquanto o esposo se colocava entre ela e os inimigos.

— Confio em você, Alice. Não vou falhar novamente.

Ela sorriu em resposta, enquanto os muitos inimigos os cercavam. O casal se posicionou de modo que a bruxa tivesse uma coluna que a protegesse dos atiradores por um lado, e Adam a protegê-la pelo outro, com apenas a parede as suas costas. Nove vampiros dentre os mais fracos ainda estavam de pé, embora um ficou gravemente ferido ao proteger René. Outros dois se viam fracos, pelo sangue que cederam também a ele, mas ainda apontavam armas contra o casal. Só que nenhum deles ousou atirar, enquanto os grandes predadores não se movimentaram.

Tanto René quanto Thomas passaram a encurtar a distância, cada um por um lado, mas ambos visando Alice. Adam se viu sem a espada, mas disposto a protegê-la como fosse preciso. A voz da bruxa pôde ser ouvida, em uma língua que sabia, apenas o Padre seria capaz de entender.

René avançou, a lâmina sendo detida pelas mãos de Adam, ainda que sangrando no processo. Thomas avançou de igual modo, um chute de Adam o jogando em direção a um Padre que esquivou da criança arremessada. Ele ganhava tempo, e ela não o desperdiçaria.

— Pelo sangue que ofereço, meu sangue, rogo proteção contra os filhos da noite — disse Alice, cortando a mão com a adaga e derramando seu sangue sobre o chão e também a ruiva. — Meu corpo é sagrado, o corpo dela é sagrado. Somos protegidas dos espíritos. Somos santuário de vida e paz.

Adam avançou contra René, se afastando da esposa com ele. Tom aproveitou a chance para avançar, os demais vampiros para apontar suas armas... mas para a surpresa deles, não conseguiram apertar o gatilho.

Alice enxergava com dificuldade, tentando perceber de onde viria o ataque do pequeno vampiro. De seu irmão, não só amaldiçoado com o vampirismo, mas também controlado para matá-la. Era algo tão triste quanto revoltante. Ele moveu-se pelo teto, silencioso como um predador; letal como um assassino experiente. E saltou, como um filhote de tigre caindo sobre o alvo... mas sem ânimo para cravar suas presas.

— Você é muito boa pra uma humana, irmã — ele disse, pousando inofensivamente ao seu lado, e com lágrimas rubras no rosto. — Mas se o vovô exigiu sua morte, seu destino já foi traçado.

— É mesmo, diabinho? — perguntou ela, exibindo um sorriso sapeca. — Eu te amo, irmãozinho, e o amor é uma arma mais poderosa que o olhar de um velho vampiro.

Dito aquilo, a jovem tocou suavemente no rosto do garoto, por fim dizendo:

— Eu te liberto, irmãozinho— E soprou sobre ele.

O vampiro recuou, caindo de joelhos diante dela, entre lágrimas. Alice sentiu um calafrio, a presença do Padre repentinamente ao seu lado.

— Não pode me tocar, demônio decrépito — afirmou uma irmã furiosa, pensando no que fizeram ao irmão menor. — Adam é livre, meu irmãozinho é livre. Seu poder é nada!

O Padre deu um passo na direção dela, para surpresa de Alice.

— Uma bruxa capaz do mais alto círculo de feitiçaria, pelo que vejo. — Outro passo dele, fazendo-a recuar, assustada. — Mas sou um velho deveras teimoso, menina.

E dito aquilo, ele estendeu a mão ao pescoço da bruxa. O esforço do velho era evidente em sua face, a mão a prendendo, mais incapaz de se fechar por completo. Adam tentou chegar até ela, mas René e os tiros dos demais vampiros tornaram seu objetivo inalcançável.

Alice segurou o pulso do velho com ambas as mãos, sem saber o que fazer. Seu feitiço de proteção foi o que impediu os vampiros de atacarem, e era o que impedia que seu pescoço fosse quebrado naquele momento. Mas era apenas questão de tempo até a força daquela mão lhe tirar todo ar e condená-la a morte. Por outro lado, usar um feitiço ofensivo anularia a proteção, com cinquenta porcento de chance de que ela morresse antes do Padre ser afastado. Novamente o destino era perverso com ela.

— Deixa minha irmã! — o grito foi de Thomas, saltando nas costas do velho e puxando-o para trás, pelos cabelo brancos. — Não, vovô! Minha irmã vale mais que qualquer coisa... qualquer um!

O ataque fez a mão do monstro afrouxar, tornando a escolha dela mais simples. E sussurrando palavras que Thomas não entenderia, a garota levou a mão aberta a face do velho, seguida de um brilho prateado que aumentou de intensidade em ritmo acelerado. Um medo instintivo deve ter tomado conta do menino, enquanto saltou para longe deles. O Padre igualmente saltando, porém não antes do brilho prateado queimar sua face.

Ele gritou de dor, caindo no chão e levando as mãos aos olhos. Fumaça saia dele, com cheiro de queimado.

— A maldita me cegou! Matem a bruxa! — berrou ele.

Adam gargalhou, desviando de outra série de ataques de René, assim como dos tiros.

— Oras, não a escolhi como esposa só pelo rosto bonito. A Bruxa de Prata, era assim que a chamavam em nossa época. — Adam desceu em forma de morcego sobre o francês, com sua mão afundando a cabeça do adversário no chão. — Deviam ter feito melhor o dever de casa.

Alice se viu forçada a desviar de uma série de tiros, usando a coluna como cobertura. A vampira de quem ela roubou a adaga se aproximou furtivamente pela outra ponta, e desarmada, quis terminar tudo com as garras.

— Perdão, mas eu e a Claire estamos bem furiosas com mulheres que tentam nos separar do Adam — afirmou a bruxa, encravando a lâmina no tronco da vampira.

A morta-viva tentou reagir, mas logo sentiu as entranhas queimarem, a adaga brilhando de forma sobrenatural. Ela recuou, entre gritos, chamas surgindo de seu ventre até lentamente lamberem sua carne amaldiçoada.

Adam passou por entre os atiradores, matando um e tirando outro de combate. Tom saltou sobre outro, derrubou e drenou de seu sangue. Com René ainda caído, dois dos vampiros foram proteger o velho, enquanto o restante recuava, assustados com o caminho que aquilo tomava.

Ela estava cansada, aqueles feitiços exigiram demais de si, mas não havia tempo para descansar. A noite parecia não ter fim. Dois deles avançaram contra ela, dois vampiros dispostos a encará-la de frente, a mando do Padre. Ela não podia morrer, não bastasse perder tudo, seu amado ainda teria de testemunhar o retorno do pai... e tudo de aterrador que aquilo representaria para ele, e todos. Não, ela não sucumbiria de novo. Claire não poderia morrer.

Alice se afastou da coluna, rolando e depois estendendo a mão na direção do vampiro mais perigoso, o repelindo para longe. Quando buscou o outro, descobriu que ele não foi atrás dela, seu objetivo era outro, e ele o tinha nas mãos. A jovem ruiva sendo levada ao Padre.

***

Após derrubar René temporariamente, Adam focou em matar os últimos atiradores, agora com a ajuda de Thomas, do lado da irmã. E embora teve sucesso em eliminá-los enquanto René se reerguia, só percebeu tarde demais o que ocorreu. O Padre estava muito ferido, cego, mas segurando a garota pelo braço.

Era Elizabeth, a jovem mortal que ficou fascinada por ele, a ponto de trair seus colegas, dar seu sangue e jurar-lhe a vida. Mas o que o Padre queria com ela? Não seria tolo pensando que Adam arriscaria o retorno do Drácula só por causa dela. Ou seria?

— A vida da Bruxa de Prata seria o ideal para completar o ritual e trazê-lo até nós em seu poder total — disse o Padre, segurando a jovem. — Ainda assim, a alma de uma virgem bastará. 

—... não, qual é, Padre? — protestou Elisabeth, mais acordada do que parecia. — Eu tenho dezoito, acha mesmo que ainda sou virgem, cara?

— Há um modo simples de saber — falou, puxando seu pulso e sugando dele.

Adam não esperava por aquilo. Teresa deixou bem claro a ele como os jovens desse tempo eram promíscuos desde antes da maioridade. Mas pelo jeito, o destino continuava a lhe pregar peças, pois após Nicolae sentir o gosto, lambeu os lábios, dizendo:

— O sangue não mente. Ainda é pura, ao menos no corpo.

Adam olhou para Alice, que parecia abatida. Com certeza fruto do muito poder que conjurou naquela noite. Thomas aproveitou para colocar-se a frente da irmã. Menos uma preocupação para Adam, que só precisava descobrir como impedir aquela reviravolta do destino.

—... não acredito que me guardei tanto pra isso — reclamou a ruiva, olhando para Adam, frustrada. — Eu estava esperando por um cara como você, Adam Tepes.

— Não chore, menina — disse o Padre, a puxando para si. — Seu sacrifício trará o grande Dragão de volta a esse mundo. Bendita és tu, entre as mulheres.

Adam tentou correr em direção ao Padre, sendo detido por René, que o atingiu na perna com sua espada arremessada a distância.

— Basta disso, mon amie. Seu pai voltará, de um jeito ou de outro.

Adam gritou, vendo as presas do Padre rasgando o pescoço da mortal. O sangue dela escorrendo enquanto seus olhos se fechavam. E o velho Padre ajoelhou-se, novamente entoando o cântico profano que traria o Drácula de volta ao mundo.

Seu pai estava as portas, Adam podia sentir. E quando a atravessasse... toda a esperança acabaria.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha se emocionado com o capítulo. Mas diga aí o que acha: Drácula volta? Paul executa a ex e a Mandy? Andy e Paul se matam?

Deixo aqui meus agradecimentos a Kagomechan, pela bela recomendação que deixou na história.



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