Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 25
O Despertar do sonho


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo todo focado em nosso casal 20, com sangue, desmembramentos e muita dor.



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A garota observava a tudo, mas sem realmente acreditar no que via. Era tudo estranho demais, absurdo demais para ser real. Sua mente cética relutava em testemunhar seu amado brandindo uma espada medieval contra um desconhecido, ambos com dentes pontudos e olhos vermelhos. Ambos como... a palavra teimava em lhe fugir a mente. Eles também tinham "a doença" que o irmão lhe confessara ter. Parecia que todos ali partilhavam dessa praga, e Claire sentia que havia algo de muito ruim naquilo tudo. 

Haviam cadáveres por toda parte, uma verdadeira cena de pesadelos que a fazia desviar os olhos e sentir o estômago revirar. Tom a levou para lá, prometendo protegê-la de Adam Turner, junto a seus estranhos e sinistros amigos. Adam, que matou Evelyn. Adam, que queria matá-la. Mas era difícil para a garota se manter firme diante dele, em meio ao turbilhão de sentimentos que sua mera presença lhe despertava. Havia raiva, mágoa... mas amor também. Um sentimento forte, que parecia ainda suplantar a todos os outros. 

Era mentira, tinha que ser mentira o que o irmão lhe dissera! Mas Tom não mentiria, não era mesmo? Diferente do pai dela, diferente do Adam, Thomas jamais mentiria para ela. Ou mentiria?  Claire olhava aquele menino tão parecido consigo. Sua única família restante, seu esperto e corajoso irmãozinho. A jovem de vinte e um anos apertou firme a pequenina mão de Thomas quando confrontou Adam. Quando ouviu a voz gentil do homem que amava lhe fazendo promessas. Quando o viu erguer-se sobre todos como um deus mitológico, para em seguida desmembrar um homem, como um carniceiro. E gritou, no momento em que o viu diante de si, como um demônio saído do inferno cristão. Um belo e sedutor demônio. 

Sentiu o irmãozinho puxá-la de modo a ficar em sua altura, enquanto sentia os dentes pontiagudos dele sobre seu pescoço. Como se fosse uma ameaça da parte do menino. Como se ela fosse uma refém a ser usada contra Adam.  Claire ficou de joelhos, enquanto o circo de horrores com os dois espadachins prosseguiu. 

— Você diz que o Adam quer me matar — inquiriu a jovem, de joelhos ao lado do garoto. — Mas quem me usou como refém, foi você. 

O menino permaneceu algum tempo em silêncio, antes de finalmente responder: 

— É  como eu te falei, Alice, ele matou sua amiga Evelyn, e quer matar você também. Só confie em mim. 

Claire ergueu-se, limpando o vestido. Havia algo errado com aquelas palavras, ela entendia enfim. 

— Me lembro da ligação agora. A voz do agressor da Evy não era como a dele. Era grossa, rouca e gutural. E o nome... tenho certeza que ouvi minha amiga repetindo "Andy", não Adam. Tudo bem que ela me disse pra ficar longe dele... mas disse o mesmo sobre você.

Claire afastou-se a um passo do irmão, que evitou encará-la. Sua voz se elevando. 

— E... e por qual razão você insiste em me chamar de Alice? Como Adam fez uma vez. Como em meus sonhos. — Ela fechou os punhos, sua mente cada vez mais clara. — Já repeti um milhão de vezes: eu sou Claire. Claire! Me chame pelo meu nome! 

Thomas respondeu de imediato, elevando também a voz. 

— Fica quieta! Você é Alice, Alice Winnicott. Esse é o nome de quem você é! Minha irmã mais velha que me ama e  cuida de mim, e nada além dis...  

A resposta da garota foi na forma de um tapa. Gesto que atraiu a atenção de todos ali para o casal de irmãos. Tom, com a expressão confusa. 

— Fique quieto você, pirralho! Se sou sua irmã, trate de me obedecer.  

Ela sentiu os olhares sobre si. Viu Adam e o adversário cessando a violência, apenas para observá-la. 

— Adam Turner! — Claire gritou o nome, como uma mãe que chama o filho travesso para uma bronca. — Não tenho motivos para acreditar em uma palavra sua, mas vou te dar uma última chance de ser sincero comigo. 

Adam abaixou a espada, balançando a cabeça em concordância. 

— Esses jovens mortos, aos pedaços... você fez isso? 

Ele desviou o olhar para a arma que carregava. E após respirar fundo, a encarou:  

— Sim. Sou o assassino de todos, e cada um deles. Não tenho qualquer orgulho ou prazer no que fiz, mas faria novamente se fosse preciso para salvá-la. 

Claire engoliu em seco, antes de prosseguir. 

— Minha amiga Evelyn está mesmo morta? Você a matou, também? 

— Eu seria incapaz de fazer mal a alguém importante para você, Claire. Não sei nada sobre Evelyn estar viva ou mor... 

A frase foi interrompida pelo avanço repentino de René. Claire sequer pôde discernir os movimentos, apenas viu o homem recuar tão rápido quanto avançou, aparentemente repelido por um chute. 

— Só mais alguns instantes e lhe darei a atenção que merece, mounsieur Chermont — disse Adam, para o adversário. 

O tal homem sentou-se então de volta na cadeira de metal, dois dos jovens com mantos indo até ele. Thomas permaneceu parado, com a mão onde recebeu o tapa. Olhar perdido. A jovem olhou para aqueles rostos sombrios, todos com dentes pontiagudos, todos lembrando personagens de filmes de terror ou romances adolescentes. Ela tentou, mas sua mente não conseguiu encontrar a palavra para defini-los. 

— Turner... o que vocês são? De verdade. 

— Somos monstros, Claire. Demônios condenados a noite e a roubar sangue humano. Monstros que queimam ao toque da prata e incineram sob a luz do sol. Mortos que caminham em um mundo de vivos, tão permanentes quanto amaldiçoados. — Ele se apoiou na espada, olhar pesado. — Somos vampiros, Claire. E essa é uma doença que nenhum bem ou ciência pode curar. 

Vampiros! Era essa a palavra que buscou quando Thomas mordeu seu pescoço. Quando viu aquelas pessoas com dentes pontudos, ou quando viu Adam enfrentando aquele sujeito. 

— Mais uma coisa — prosseguiu a jovem —, Tom é mesmo meu irmão? 

O garoto pareceu voltar a si ao ouvir o próprio nome, encarando Adam. 

— Sim, e não — Adam respondeu, sem jeito. — É difícil explicar, mas... de certo modo, ele já foi. 

Claire exibiu um sorriso debochado, por fim perguntando. 

— Imagino que isso tenha a ver com Alice, não é? Então me diz, Adam: quem é Alice!? 

Adam hesitou, sua face denunciando o quão difícil e doloroso parecia a ele tocar naquele assunto. Ficou em silêncio e sem encará-la. Thomas parecia apreensivo, enquanto René observava a tudo com ar divertido. Mas então, como uma resposta ao provável desejo de Adam em mudar de assunto, tudo estremeceu. O som de uma explosão ecoando no grande cômodo. 

A expressão de todos os vampiros mudou naquele instante. Thomas soltou um grito de dor, caindo de joelhos. René tinha os olhos arregalados, olhando para o nada. Os vampiros armados pareciam assustados, e só Adam reagiu de modo diferente. Exibiu um sutil sorriso, como quem recebeu uma boa notícia. 

Claire quis insistir no assunto, mas antes que conseguisse formular uma frase, ouviu a voz chorosa de Tom. 

— Vovô... não pode ser real. O mascarado não tinha como vencer. Ninguém tinha! 

— Quem poderia prever que, logo o Padre, o vampiro mais velho em atividade, seria derrotado por um mortal? — Adam os questionou, sorrindo. — Estou certo que sem ele, tudo isso se torna inútil. 

Todos os olhares se dirigiram a René, ao som das lamúrias do menino. 

— Recomponha-se, Thomas! — ele ordenou, fazendo o choro cessar. — Tenha fé no pai, não é hora de agir com fraqueza ou dar lugar a dúvidas. Apenas façamos o que nos foi confiado.  

Claire notou o olhar de Adam no seu, sentindo que ele estava a ponto de fazer algo arriscado, quando ouviu a voz: 

— Seu comparsa pode ter matado o vovô, Judas — disse Thomas, já segurando o pulso da jovem. — Mas não vai roubar minha irmã de mim. Não de novo. 

Em um instante ela estava novamente de joelhos, com o pequeno vampiro com a mão em sua nuca. 

— Você não é meu irmão — disse ela, frustrada. — Um irmão de verdade não me trataria dessa forma. 

— Desculpe, Alice. Mas enquanto continuar se afastando de mim pra correr atrás dele, vou ser duro com você. 

Claire podia sentir o descontrole do vampiro, sua voz embargada e mão trêmula. Os olhos dela instintivamente buscaram os de Adam, se prendendo neles.  

***

René avançou. 

Com espada em uma mão e adaga na outra, utilizava todo conhecimento marcial acumulado nos seus séculos de existência. Seus movimentos eram rápidos e precisos, a espada cortando o ar, mas sem tocar a carne. Desde que Adam revelou seus verdadeiros poderes, se tornou intocável ao vampiro. 

— Desista. Já devia ter percebido que não é um adversário digno — Adam disse, após desviar de um ataque frontal e desferir um corte que pegou da parte superior do tronco até metade do rosto do adversário. 

René perdeu o equilíbrio e caiu. Sangue fluiu farto de seu olho e lábio esquerdos, agora cortados, encharcando sua blusa rasgada e o que restou de seu terno. Adam observou os vampiros, sempre atentos aos seus movimentos. Especialmente Thomas, que mantinha Claire de joelhos e sob ameaça. Claro, a adolescente de preto também continuava lá, a encará-lo como a um deus. 

O obstinado vampiro se ergueu novamente, apoiando-se na espada, com sua pele aos poucos curando todo dano sofrido. Sua capacidade regenerativa era mesmo invejável, Adam tinha que admitir.    

— Pardon, mas é difícil para mim parar quando estou no auge da diversão — e ao dizer aquilo, o corpo do vampiro começou a vibrar com intensidade. Seus músculos pulsando em reação ao próprio poder.  

René atacou, uma sequência de golpes dos quais Adam desviou... exceto pelo último. Um golpe repentinamente mais rápido que os demais, seu sabre penetrando no tronco do vampiro, pela primeira vez vencendo sua defesa. Adam saltou no ar, afastando-se. René correu pelas paredes e pegou impulso, o encontrando em pleno ar e atingindo outro golpe, agora no ombro da espada. 

— Está usando os dons do sangue para ganhar velocidade em momentos específicos. Uma estratégia astuta — disse Adam, segurando a lâmina encravada com a mão livre. — Xeque.  

— Não — disse René, em um sorriso. — Xeque mate! 

O braço do francês vibrou em uma onda cuja intensidade aumentou em velocidade impressionante! Sua espada retalhando a carne de Adam com facilidade brutal. Seu ombro seria completamente destroçado, não tivesse assumido a forma de um enxame, escapando assim do pior do ataque. Em forma de morcego Adam voou, reassumindo a forma ao pousar no extremo oposto do salão.  

Ainda assim, o estrago era visível. O ombro do vampiro foi destroçado, Tepes sabendo que se não houvesse interrompido o processo, não apenas seu braço seria separado do corpo, mas todo seu tronco seria dilacerado. 

— É uma técnica fascinante. É certo que muitos sucumbiriam diante dela, francês — Adam afirmou, concentrando-se em curar-se. — Lamento decepcioná-lo por não ser eu um desses. 

— É triste admitir que esse era o meu grande trunfo, Adam Tepes — confessou o vampiro, seu braço ainda levemente pulsante. — Ninguém, fosse humano, vampiro ou lobo, me venceu após sofrer esse ataque. Sua superioridade é um tanto irritante, Judas. 

Adam terminou de curar-se, seus olhos vermelhos encarando o adversário. Um sorriso sádico se desenhando em seu rosto. 

— Poucas coisas me deixam mais irritado que ser chamado assim. — Girou a espada prateada, segurando o cabo com ambas as mãos. — Agora é minha vez de me divertir.  

*** 

Novamente sem o braço da espada, e com sangue jorrando por toda a parte, o francês persistiu na luta. Adam estava cansado, com ferimentos superficiais que se acumulavam. Era surpreendente encontrar um vampiro capaz de resistir ao seu poder total, e mesmo que estivesse em vantagem, não entendia o motivo de René prosseguir arriscando o pescoço quando podia simplesmente exigir que Adam desse seu sangue para o ritual. Pela Claire, ele seria capaz de qualquer coisa, de pagar qualquer preço. Mesmo que isso exigisse o retorno dele. 

René bloqueou com dificuldade o chute do adversário, que ainda assim teve força para lançá-lo a muitos metros de distância. Antes que tivesse tempo de se recompor, foi obrigado a desviar de uma sequência de estocadas do inimigo, falhando em ao menos metade das tentativas. Por fim ele encontrou uma oportunidade e recuou, pegando a espada caída com o braço ainda operante. 

— Vejo que não curou seu braço ainda, o que significa que não tem mais forças para repetir seu truque. — Adam esmagou com o pé o braço largado, enquanto apontava a espada em direção ao adversário ainda mais ensanguentado que antes. — Escute meu generoso e último conselho, desista agora e serei piedoso. Não é tarde demais. 

René balançou a cabeça em negativa, com um sorriso de canto de boca. 

—... ainda não. Ainda temos tempo. Vamos aproveitá-lo. 

— Eu lhe dei a chance. Agora é tarde demais. 

Era visível que Chermont não apenas usava o que ainda possuía de sangue para regenerar seu corpo, mas também para ampliar seus atributos físicos. Força e velocidade elevadas pelo dom das trevas que desenvolvera, para usar em momentos chave. Algo que Adam desejou encerrar.  Assumindo a forma de um enxame de morcegos, o filho do Drácula partiu para cima de seu adversário. O som de centenas de pequenos demônios alados confundiam os sentidos do alvo, para em um último momento Adam assumir sua forma real, sua espada a um tris de atingir o francês! 

E foi ai que tudo aconteceu, em um piscar de olhos.

Dois jovens vampiros se colocaram entre os dois, a lâmina de Adam decapitando um e cortando o outro apenas para abrir caminho até René. Adam rilhou os dentes, suprimindo um grito de dor quando sentiu a lâmina de uma adaga arremessada perfurar seu olho direito, em um ataque surpresa do francês, tão astuto quanto rápido. 

Ele pôde sentir o avanço de outros vampiros saltando sobre ele, mas isso não o fez parar. Ignorando a dor e surpresa, avançou com um movimento rápido e preciso, a lâmina prateada cortando a carne que unia a cabeça ao tronco, quase até a completa decapitação! E foi ai que sentiu as mãos dos inimigos sobre si. 

Adam suportou calado a dor da lâmina presa ao crânio, assim como a frustração de ver o inimigo ainda de pé, mesmo que com noventa por cento do pescoço cortado. Isso até seu grito forçar saída, devido a um novo e inesperado ataque: do seu ponto cego, uma estaca surgiu, e encravou-se em seu peito. O responsável foi a criança loira, surgida das sombras através do dom de a elas mesclar-se.  

Tepes foi derrubado por aquelas muitas mãos sobre si. A espada logo caiu, com ele contemplando a haste de madeira firmemente encravada em seu peito. Um grito se seguiu. Veio da jovem ruiva, contemplando a cena com olhos arregalados. O olho surpreso do filho do Drácula se encontrou com os da Claire, que o encarava tão assustada quanto confusa. 

***

Ela fechou os olhos enquanto seu amado era subjugado. Tudo aquilo era tão irreal, tão absurdo, talvez simplesmente alucinações de uma mente que de tão traumatizada, cedia a um mundo de fantasias psicóticas. Claire cerrou os olhos, forçando a mente a fugir de tudo aquilo. Daquele mundo de pesadelo que a assombrava.

Confortava-se na esperança de logo acordar. E uma vez desperta, voltar a segura rotina de uma estagiária prestes a se formar. Sorrir e sofrer no mundo real, um mundo sem vampiros, espadas ou desmembramentos.

"Mas é isso mesmo que você deseja, Claire?" — perguntou uma voz em seu coração. Uma voz antiga e familiar. 

— Quem é você, afinal? — a jovem sussurrou. 

"Eu sou o passado, Claire Winnicott. Sou o nome que você teme."

— Eu não compreendo... 

 "Sou a esposa morta do homem que você ama. Sou a irmã falecida do garoto que te força a amá-lo"

—... Alice?

"Você vê, Claire, o que ele é realmente? Consegue enxergar para além da máscara, a beleza e o terror que esse homem representa?"

— Não me importa o que ele é, nem o que fez. Eu o amo! — Claire respondeu. — Não escolhi isso, não escolhi amá-lo. Lutei contra esse sentimento o quanto pude, mas no fim, a verdade é essa e estou cansada de negar. Você sabe disso, não é? 

E ao confessar-se, ela sentiu uma paz profunda. Um sentimento que aqueceu seu coração tão machucado. 

"Sim, Claire, eu sei disso melhor que ninguém. Afinal, eu sou você, ou melhor: você foi eu, há muito, muito tempo atrás. Você foi feliz com ele, você o amou com todas as forças... e aí, você morreu. Nós morremos. Mas ele ficou, dormiu e voltou por nós. Então Claire, minha outra eu, eu preciso que você me ajude agora. Adam precisa. Você pode fazer isso?"

*** 

Adam foi vencido. Os vampiros o rodeavam como abutres, desejosos de seu sangue. Ele estava de joelhos, com força suficiente apenas para não tombar de vez e se entregar ao sono. A estaca de madeira transpassando sua carne morta o tornando indefeso como uma presa abatida. A adaga continuava enfiada em seu olho, causando uma dor só superada pela humilhação da derrota.  

— Eu espero por essa sensação faz mais de trezentos anos — Thomas disse, eufórico. — Minha irmã ao meu lado, e Adam Tepes de joelhos. 

O garoto tocou o cabo da adaga, fazendo o vampiro sofrer. Então a arrancou, com brutalidade. 

— Devia furar seu outro olho, Judas — o vampirinho disse, passando a lâmina pela face de um Adam vencido. — Assim, nunca mais poderá olhar pra ela.  

René estava sentado na cadeira de metal, três vampiros lhes dando do próprio sangue para que seu corpo se recuperasse. Um deles, mantendo sua cabeça presa ao tronco. 

— Não vá... perder a cabeça... Thomas. — a voz saía com dificuldade da boca do francês. — Kellen logo deve nos trazer o pai. É certo que mesmo morto, ele voltará a nós, monpetit.  

Um som ecoou pelos corredores. Som de uma bengala contra o chão, avançando em passos lentos. Um som que trouxe um sorriso para os rostos de todos os vampiros ali, com exceção de Adam. 

—... vovô! — Thomas gritou, correndo até o velho vampiro em trapos.  

O Padre estava em péssimo estado. Com a maior parte do corpo queimada, caminhou em passos trôpegos, com o pescoço exibindo um corte precariamente fechado. 

— Essa é uma noite abençoada, minha criança — disse o Padre, afagando Thomas. — Hoje Deus quis ensinar-me humildade, antes de cumprir minha missão. 

Adam não pôde evitar um urro de revolta ao se dar conta de estar diante daquele homem.  

— Você morreu, ele o matou! — Adam gritou, o encarando com seu único olho bom. — Um mortal o matou... por que simplesmente não permaneceu morto!? 

O velho aproximou-se de Adam, com seu sorriso de avô bonachão. 

— Sempre o mesmo menino rebelde e respondão. — o Padre sorriu, olhando em volta. — Meus filhos o trataram bem, príncipe Adam? 

— Chega disso — Adam respondeu. — Se é meu sangue que quer para seu ritual, pegue-o de uma vez. Se é minha vida... mate-me logo. Só não toque na Claire, pois Thomas se importa com ela também. 

— Não, meu príncipe, tirar sua vida não faz parte de minha missão. Não. Foi seu pai quem lhe deu a imortalidade, e só a ele cabe tirá-la. 

Após proferir as palavras, o velho se pôs de joelhos. Com as próprias presas feriu as palmas das mãos, as unindo e fechando os olhos. Todos podiam ouvir sua voz entoando um cântico incompreensível, antes de apoiar suas mãos ensanguentadas no chão. Então o sangue começou a fluir sobrenaturalmente pelas frestas do piso. 

— Seu sangue? Que ingênuo! — zombou René, ainda ferido. — Seu sangue já foi oferecido há muito tempo, você só não se deu conta disso. 

Então Adam percebeu os próprios ferimentos, e de todos os outros. Um verdadeiro rio de sangue. Um rio que agora fluía, lenta e continuamente em direção ao túmulo do homem à quem chamaram "Filho do Dragão": o Drácula. O Padre então encerrou seu canto, e ergueu os olhos em direção a ele: 

— Tudo o que é exigido, é hoje entregue. Seu sangue; o sangue do filho, herdeiro e executor. O sangue de um vampiro antigo. — Apontando para René. — É bem verdade que o humano chamado Golem impediu que oferecêssemos o sangue de uma loba ainda pura. Porém, o destino ofereceu em troca o sangue de um lobo ainda bebê... O que é equivalente. 

O Padre então apoiou-se na bengala para erguer-se. Caminhando lentamente em direção a Thomas e Claire. 

— Ora, quase esqueço de dizer, há de ser coisa da idade. É verdade que falta ainda algo a ser oferecido. — O Padre olhou então para a reencarnação da esposa de Adam. — A vida dela. 

Adam gritou, em um esforço inútil para mover-se. Sua obstinação não sendo capaz de superar a maldição vampírica de uma haste de madeira no coração. Thomas arregalou os olhos, surpreso. 

— Mas vovô! — Thomas falou, tenso. — Ela é minha irmã. A irmã que busquei na imagem das minhas vítimas, por tanto e tanto tempo. O senhor sabe o quanto isso é importante pra mim. Por favor. 

— Minha linda criança, sua irmã o abandonou há trezentos anos, e graças a isso eu lhe dei a imortalidade. — O velho pousou a mão em sua cabeça. — Nosso criador precisa do sangue dela para retornar ao nosso mundo. Seria egoísta a esse ponto? Trairia o propósito maior dessa sagrada Ordem? 

Thomas olhou para Claire, cuja expressão parecia distante. 

— Vovô... me perdoe pela insistência, mas posso trazer qualquer outra pessoa pra cumprir esse papel. Minha irmã renasceu para ser uma de nós, herdar o novo mundo que o Drácula nos trará. 

Som da batida da bengala no chão, repetidamente. A face do sacerdote parecia menos amigável então. 

— Esta mulher é a raiz do pecado do nosso Judas. É também sua grande fraqueza, menino Thomas. — A ponta da bengala tocou o peito de Claire. — O mal, se arranca pela raiz. 

Lágrimas verteram dos olhos do pequeno vampiro. Envolvendo a irmã nos braços. Tudo ao som dos protestos de Adam: 

— Não! Não, Thomas, não ceda a vontade dele! Você a ama, lembre-se disso. 

Claire parecia em paz. Como quem dorme. Como um anjo. E foi como um demônio que o Padre Vampiro segurou a face de Thomas, seus olhos vermelhos refletidos nos dele. 

— Criança... amado Thomas. Como seu mestre, criador, tutor e sacerdote eu lhe peço: mate Claire Winnicott. 

O pequeno vampiro chorou copiosamente ao ouvir as palavras. 

— Pare! — a voz de Adam  chamou a atenção do menino, seus olhos fixos nos dele. Era uma ordem imbuída de autoridade. Um poder capaz de dominar uma mente menos poderosa como a da criança. — Afaste-se dela agora. Você não quer fazer isso... ela é importante, você não pode fazer isso.  

Tom hesitou. A voz do vampiro Adam era uma ordem que não podia ser desobedecida, por mais difícil que fosse contrariar o Padre. 

Thomas, minha criança, faça o que ordenei — dessa vez foi a voz do Padre. Calma, baixa, reassumindo um controle natural de quem não só era o líder, mas também o criador do pequeno vampiro. 

Adam percebeu que perdeu, completamente derrotado por seus inimigos. Thomas levou as mãos a face da irmã, beijando-a na testa.  

— Me perdoe Alice. Perdão, minha irmã. 

*** 

 "Você pode fazer isso, Claire? Me deixará fazer o que ele precisa e que você não tem força para fazer? Somente por hoje, ao menos essa única vez? Por amor a ele?"

Um movimento das mãos, e tanto a criança quanto o velho foram lançados a vários metros de distância! Todos olharam estupefatos enquanto a garota de olhos verdes e cabelos loiros se ergueu, com olhar seguro e confiante. 

— Acho que precisa de mim essa noite, meu amor — disse Claire, ou melhor, Alice Winnicott. — Temos monstros para sepultar. 

— Alice... — ele disse. E superando a dor, sorriu, como não fazia há muito tempo. 


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Notas finais do capítulo

Um comentário sobre o que sentiu nesse capítulo vai me deixar bem satisfeito, please?
Até o próximo, dessa vez sobre nossos 3 protagonistas.



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