Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 24
Minha razão para lutar


Notas iniciais do capítulo

Espero que esteja sentado, relaxado e com um bom copo de suco de maracujá. Não está? Então faça isso e depois leia. Não vai fazer? Por sua conta e risco, só não diga que não avisei.

Capítulo centrado no Paul, Mandy e Andy. Um dos mais longos, e também um dos que mais gostei de escrever. Divirtam-se e não saiam sem deixar sua opinião sobre ele, ok?



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A garota o encarou em silêncio. Ela sempre foi corajosa, mas despertar nua e algemada dentro de uma igreja sinistra, cercada por cadáveres de gente e morcegos, e ainda com um mascarado de preto olhando para si, não era algo para o qual estivesse preparada.

Com os braços tapando o que podia ela se levantou. Os braceletes de prata unidos por correntes dificultavam cada passo, isso fora sua função principal: impedir que ela se transformasse. O contato direto da prata sobre seus pulsos, tornozelos e pescoço, deixavam-na sentindo-se totalmente indefesa... isso fora a dor. Prata queimava, incomodava e enfraquecia.

Mandy se segurou numa grossa cortina de cor vinho, que depois puxou com toda força. Um pedaço do tecido se partiu, pedaço esse que serviu para tapar seu corpo. Olhando melhor para os cadáveres, pôde identificar entre eles o de um velho usando batina. Imagens do tal indivíduo surgiam em sua mente, o som da voz... mas era tudo confuso como um sonho semiesquecido. Mas uma coisa era certa: ele era o chefe dos vampiros, e agora parecia morto. Definitivamente mais morto do que um vampiro já era normalmente.

— Mandy Duncan, você virá comigo. Vou levá-la até seu irmão — afirmou o mascarado.

Seu traje preto, com colete e outras partes reforçadas sobre joelhos, coxas, ombros e braços, parecia muito avariado. Cortes por todo lado, assim como manchas de sangue.

— Você não cheira como eles — som dela fungando, já mais confiante. — Também não é como eu, ou não ia usar um treco desses. Você é o Golem, acertei?

O mascarado pegou uma segunda lâmina, caída alguns metros distante dos restos do vampiro explodido.

— Até que não é burra... para uma cachorra — concluiu.

A vontade da garota foi saltar sobre ele e fazer pior do que ele fez com o velho, mas sabia que não estava em condição de nada daquilo. E após engolir um pouco da raiva, pediu:

— Abre essas algemas, e eu deixo de ser um fardo. — Estendendo os pulsos. — Eu posso ser útil, cara, é só conseguir mudar de forma.

Ele pareceu ignorá-la, abrindo uma garrafa e derramando o líquido sobre o que sobrou do vampiro. Mandy se aproximou mais, balançando a corrente de modo irritante e repetitivo, até obter uma resposta:

— Prefiro assim. Cães devem ficar na coleira.

E após dizer aquilo, desceu a lâmina repetidamente sobre o pescoço do cadáver, segurando a cabeça com a outra mão. Ela recuou por instinto. Embora uma licantropo, a garota não estava acostumada aquele tipo de brutalidade. Jimmy cuidava muito bem dela, de modo que nunca tivesse que se sujar com sangue que não fosse de algum animal da floresta.

— Puxa, bacana você bancar o Batman sanguinário e gastar tempo pegando seu troféu invés de me soltar. Só queria te lembrar que você explodiu uma BOMBA dentro de uma igreja. Se não matou todos os vampiros, eles chegam rapidinho. — Mandy parou a um palmo dele, estendendo novamente os pulsos. — Me soltar é nossa única chance de sair daqui inteiros.

A resposta dele foi na forma de uma chave de metal lançada para o alto. A garota saltou para pegar, e depois se esforçou para não deixá-la cair, quente como estava. Por sorte a explosão não chegou a derreter o objeto, apenas escurecendo e deformando o cabo. Usando os dentes pra prendê-la, a garota conseguiu com certo esforço soltar o metal dos pulsos. Enquanto se sentava para alcançar as correntes nos tornozelos, sentiu um cheiro que não gostaria.

— Opa, opa. Sujou cara, melhor a gente correr agora, a não ser que você queira conversar com a torcida organizada da Transilvânia.

O tal Golem pareceu ter recuperado todas as armas caídas pelo caminho, e agora segurava um isqueiro em uma mão e a cabeça do vampiro padre na outra. Cabeça empapada em líquido inflamável.

— Não vamos a lugar algum, pirralha. Salvar você foi só uma parte do que vim fazer aqui hoje. A menor e mais dispensável das partes, na verdade. — Ela ouvia enquanto soltava os pés. — Vim aqui atrás de respostas, e só saio com elas. Então..."senta" ou "finge de morta", só não me atrapalhe.

Apesar de salvá-la, o sujeito era bem irritante. Já tinha outro motivo para não gostar dele, para além da perna quebrada da Emma quando a delegacia foi invadida e a prisioneira vampira levada.

Eles estavam próximos, ela sabia. Então recuou para trás da terceira fileira de bancos, e após finalmente se libertar do último grilhão, deu vazão a toda raiva e frustração que sentia. Seu corpo tremeu, o suor escorrendo enquanto uma dor insuportável tomava conta de seu corpo. A forma de loba era menor, mais rápida e menos dolorosa, por isso mesmo Mandy gostava tanto dela. Infelizmente naquele momento, a forma original era necessária.

Seu corpo crescia, se alongava. Os pelos brotando da pele enquanto os dentes e garras se impunham. Os cheiros, o ódio, a força... Mandy Duncan era um monstro que rosnava e ansiava por brutalidade. Seu lado bestial, tão controlado pelo irmão e por ela mesma, naquela noite poderia então se libertar contra monstros mais amaldiçoados que ela. Ela poderia ser enfim má, e parte de si ansiava por aquilo.

***

Lentamente os vultos espalharam-se pela igreja. Alguns vinham da porta por onde ele mesmo veio, outros vinham da sacada, acima. Em pouco tempo tomavam conta do cenário, dez deles pelo que pôde contar. Todos portando armas de fogo, todos tomados pelo ódio ao ver a cabeça do Padre sobre uma poça de álcool, ele com uma pistola em uma mão e um isqueiro acesso na outra.

Nenhuma palavra foi dita, apenar os sons animalescos e tristes emitidos involuntariamente pelos mortos-vivos. A garota já havia se transformado em monstro, mas por sorte não saíra de controle.

— Não vai sair daqui vivo, seu bosta — afirmou o vampiro que lhe apontava uma escopeta, uma lágrima rubra molhando seu rosto.

Ele chorava, vários deles choravam... pelo Padre.

— Seu Padre está morto. Eu o matei. — E estendeu a pistola em direção ao rapaz, sua máscara inexpressível o encarando. — Acha que pode fazer o que ele não pôde? Acha que pode ameaçar o Golem?

Rosnados e palavrões foi tudo que obteve como resposta, os olhos de todos passeando entre ele, a cabeça no chão, a licantropo que rosnava e eles mesmos.

—... o que quer? — perguntou por fim o vampiro.

— Kellen Davis. Sei que ela está aqui, que faz parte da Ordem do Dragão e exijo falar com ela. Agora.

A loba rosnava, agora mais perto. Encurtando aos poucos a distância entre si mesma e os vampiros que recuavam a sua aproximação. Ela parecia estar lutando para manter o controle e não pular sobre eles. "Monstros", pensou Paul Davis.

O vampiro fez uma expressão de desagrado, e enquanto mantinha o olhar e a arma apontados para a cabeça do Golem, cuspiu as ordens:

— Dois de vocês, avisem a mestra sobre o pedido do intruso. O resto, fiquem atentos ao mascarado e seu cachorro.

A resposta a ofensa foi rápida, a licantropo saltando sobre o vampiro em um instante. Os gritos dele abafados pelos sons de carne sendo arrancada a mordidas. Surpresos, os outros pareciam confusos sobre o que fazer, alguns atirando para o alto ou ameaçando atirar no invasor.

— Faça a loba parar! — gritou uma vampira, balançando suas pistolas em direção ao Golem.

Paul aproximou o isqueiro da cabeça decepada, forcando os vampiros a se controlarem.

— Perdão, mas ela não é minha. Apenas resgatei e pensei em levar para uma ONG.

E após alguns tiros atingirem o corpo monstruoso de Mandy Duncan, ela recuou, o braço do vampiro entre os dentes. Ele gritava de dor, seu sangue morto aos poucos escorrendo pelo pedaço do braço restante. Seus gritos só cessaram quando um tiro alvejou sua cabeça, bala de prata proveniente da arma do Golem.

— Sem gritaria, mais respeito com o santo padre  zombou o Golem, seguro em sua posição de ameaça. — Apesar de tudo, estamos em um lugar santo.

Eles o olhavam com ódio, mas pareciam perdidos sobre como reagir sem fazer seu padre queimar até as cinzas.

— Golem! — o grito veio de uma voz conhecida, surgindo da parte superior do templo. A voz do ex-detetive Roger. — Me desculpe... eu lamento por isso. Acho que estou realmente enferrujado.

O velho detetive foi posto de joelhos, mãos para trás, visivelmente abatido. O pesar em sua voz, palpável, a ponto de nem mesmo mover os olhos na direção do aliado. Ao seu lado e de pé, um vampiro de manto cerimonial e capuz, arma apontada para a cabeça de Roger. Paul rilhou os dentes sob a máscara. Imaginara que o fim da comunicação com o aliado um pouco após sua entrada na igreja tivesse se dado por falhas, não pela captura dele. Roger, a única pessoa com quem já dividiu uma parte do seu fardo, que mesmo em meio a uma teia de mentiras, sabia mais da sua verdade que qualquer outra pessoa viva.

— Não pedi por nenhum humano. Tragam-me a Kellen, ou seu Padre será cremado!

— Já faz algum tempo... — ela falou, abaixando o capuz com a mão livre. —... pensei que já tinha superado, Paul.

Por um momento, toda a dor voltou. Não a dor física... a dor na alma.

— Kellen? — Paul gemeu o nome, como quem pergunta em sussurro.

Kellen Davis, a esposa desaparecida. Kellen Davis, a esposa morta. Kellen Davis, a ex-esposa vampira. Faziam quase três anos desde que ele a viu pela última vez, desde que sua vida esteve nas mãos dela, desde que ela o mandou jamais procurá-la novamente, sob risco de morte. Tanto tempo, tempo que Paul levou para se tornar o que era: um assassino bem treinado e equipado, capaz de matar tanto caçadores do sobrenatural quanto a própria caça. O tempo necessário para se tornar o Golem.

— Para que tudo isso, Paul? O teatro de máscaras, a alcunha de "Golem"? — ela perguntou, seus cabelos negros mais cumpridos que antes, seus olhos profundos parecendo sugar a alma do homem que ainda a amava. — Você era um acadêmico... quando foi que se entregou a esse mundo de violência e loucura?

Paul se preparou para esse reencontro por muito tempo. Planejou, sonhou com ele. Ainda assim, as palavras lhe fugiam, sua garganta secava e o coração apertava a ponto de fazê-lo fraquejar. Ele sentiu o mar de tristeza em que nadava tentando afogá-lo, já começava a sentir os olhares curiosos dos espíritos que o atormentavam obcecados pelo desfecho da sua história. Desejosos por sua alma.

— O Golem é quem eu sou, Kellen. Um matador de monstros. Caçador de caçadores — disse isso, ciente de que Roger o ouvia.  Matador de padres...

Ao dizer isso, pôde sentir a presença da madre Pietra ao seu lado. E então aproximou a chama da cabeça do Padre vampiro.

— Você me deixou para seguir esse messias demônio — continuou Paul, encarando a ex-esposa. — E agora ele está morto. E vai queimar, caso não venha comigo.

— Ir com você? Está dizendo que fez tudo isso na esperança de que eu seja sua novamente? Para me forçar a ser sua? Não entende que nossos votos morreram quando eu morri? Seu amigo humano me contou o que tem feito... o sangue dele me contou, para ser totalmente sincera. Pois apesar de tudo, ele é leal a você. Você será leal a ele, Paul? Está disposto a me entregar meu mestre para salvar seu amigo?

Roger enfim o encarou, com esperança em seus olhos. Apesar disso, disse:

— Eu não tenho importância, Paul. Salve a menina e destrua todos esses monstros. Cumpra a missão para a qual me recrutou.

Paul viu suas mãos tremerem, diante da nova realidade que se desenhou. O passado, o presente, o amigo, a esposa, a loba, os mortos... 

— Você virá comigo, Kellen. Isso não é negociável.

— Acho que o sr. Fantasia não se deu conta ainda que temos dois reféns contra um dele. A conta está super a nosso favor — era a vampira de dreads falando, apontando a arma para uma loba que rosnava e andava de um lado a outro.

— Não me importo com a loba — disse Paul, sentindo o olhar confuso da garota licantropo. — Não vim até aqui para matar seu padre vampiro ou impedir qualquer ritual, Kellen. Vim aqui pela minha esposa... e não saio sem ela. Não importa o preço que pague para conseguir o que quero.

— Então sou eu pelo mestre? — questionou a vampira Kellen Davis. — A matemática ainda não fecha, Paul. Para um intelectual, você deveria saber contar melhor.

O olhar do ex–detetive e amigo se encontrou com o de Paul Davis. Ainda que sob a máscara, Paul sentia como se suas lágrimas pudessem ser vistas, sua súplica muda ouvida. Seu pedido de perdão.

Um tiro, e Roger estava morto. Um tiro na cabeça, efetuado pelo homem a quem aquele pai de família e homem da lei seguiu cegamente pelo último um ano e meio. Um tiro que tornou Paul Davis menos humano, e mais próximo do Golem: da coisa sem alma.

— Agora, meu amor... a conta está correta — afirmou o Golem, sob os olhares surpresos dos presentes.

Olhares que ficaram ainda mais surpresos, após o som de algo surgindo por dentro do caminhão amassado que batera contra as portas da igreja.

***

Andy ouviu quando Malcom gritou seu nome, seu pelo eriçando-se em resposta. O gosto amargo do sangue e carne de suas últimas vítimas ainda escorrendo pelo queixo, enquanto tentava ignorar o que acabara de fazer a matilha. Eles mereceram, ele repetia a si mesmo.

Entre o interior da igreja e ele, havia o caminhão que jogou contra os portões, de modo que além de pisotear os muitos corpos que sua entrada brutal deixou no caminho, ainda teve que invadir o veículo — forçando entrada pela porta do motorista e depois atravessando os vidros com violência.

As consequências disso foram alertar todos os presentes naquela igreja sobre sua chegada, e iluminá-los com os faróis que acendeu por acidente. Sorte e azar, simultaneamente.

— Andy! — a voz veio dela, a licantropo de pelos marrons e olhos brilhantes.

A voz estava alterada pela forma monstruosa, mas ele não deixaria de reconhecê-la nem se estivesse surdo. Mandy Duncan. Ele sentia o cheiro dela, um cheiro que o confortava e trazia um principio de lágrimas aos seus olhos vermelhos.

— Desculpa ai a demora — disse ele, ignorando o mundo a sua volta. — Sabe como é... trânsito ruim.

Havia um sorriso na face da loba. Ou ao menos ele achava que sim, pois era difícil discernir expressões mais sutis em um lobisomem. Ao entrar naquele lugar escuro, iluminado apenas parcialmente pelos fachos de luz dos faróis, ele que não podia se guiar totalmente pela visão, buscava respostas pelo faro. Cheiros, muitos cheiros. A morte ali era onipresente. Corpos em decomposição se uniam aos de quem morrera naquela noite. Morcegos caídos, e um forte cheiro como aquele que sentira na mulher sendo levada na viatura da policial Emma. Cheiro de morte e algo além. Cheiro de vampiro.

Haviam muitos deles, e todos armados. Também havia um sujeito todo de preto segurando uma cabeça... e uma mulher bonita ao lado dele, prendendo o próprio pulso com uma algema. E foi ela a primeira deles a falar:

— Não deixem a loba sair daqui. O Pai precisará do sangue dela para prosseguir com o ritual. — Ela os olhava enquanto prendia o outro pulso com as algemas de prata, uma breve pausa na fala para sufocar a dor. — O lobo não tem qualquer valor. Atirem mirando a cabeça, essas coisas são difíceis de matar.

Os dois lobos se atiraram atrás dos bancos, cada um para um lado. A quantidade de tiros contra o grande lobo branco era muito maior que contra a loba, e Andy ficou satisfeito por isso. Um ou dois pegaram de raspão, mas nada que impedisse seu movimento rápido sob a cobertura dos bancos, rumo a Mandy Duncan. Os dois se encontraram agachados, após a garota criar uma distração jogando uma garrafa caída no ponto oposto ao que foram. Quando seus olhos se encontraram, uma lambida dela em seu focinho deixou o lobo branco emudecido. Se estivesse como humano, estaria vermelho como um tomate.

— Achei que a Matilha tinha te matado, Scooby. Sonhei com o Jimmy vindo... ele tá vivo?

Os olhos da loba demonstravam bem o medo da resposta.

— Tá vivão, no hospital com a Emma de guarda. — Andy olhou em volta, sabendo que alguns dos vampiros se espalhavam para cercá-los. — Se prepara pra correr pelo meio deles e passar lá por dentro. E isso, antes que ele chegue.

Antes que a loba pudesse perguntar quem era "ele", o grande lobo branco derrubou um dos vampiros mais próximos pelos pés. Os gritos dele, logo abafados pelo som dos muitos dentes que estraçalhavam seu pescoço. A carne e sangue deles era diferente, Andy notou. Mas morriam igual.

— Valentine! — o grito ecoou por todo templo, a voz gutural parecendo saída da garganta de um antigo e terrível demônio.

E então Andy o viu. O grande lobo negro nunca pareceu tão grande e assustador quanto naquele momento. De corpo ereto, com saliva escorrendo pela boca, ele encarou Andy Valentine. O jovem que não quis se unir a sua matilha. O sujeito que matou Jeff, que matou Evelyn, que matou Peg... que matou seu filho. Andy sabia, não havia mais lugar para palavras entre eles.

— Hello Kitty, eu vou parar ele. Só... vai. — Ele achou que a garota discutiria, mas não, ela apenas fez que sim com a cabeça.

— Não morre, Scooby. Você ainda deve muita comida ao meu irmão.

Ela começou a se afastar. O garoto se perguntava se foi o medo em seus olhos que a convenceu. Pois jamais admitiria, mas naquele momento Malcom parecera a ele tão assustador quanto Jimmy na primeira vez que o viu como lobisomem. Um monstro... e ele só um garoto.

— Deixem o lobo albino com Malcom — voz da vampira para seus subordinados. — Formem dois grupos: quatro para levar o corpo do pai, quatro para capturar a menina-loba.

Andy queria muito proteger a garota, mas sabia que precisava manter o foco no Malcom se quisesse sobreviver. Ao menos não queriam matá-la, o que permitiria que ele a resgatasse se fosse preciso. Malcom avançou como uma locomotiva desgovernada, derrubando tudo que encontrou pelo caminho. Andy firmou bem os pés no chão, aguardando, esperando para pará-lo... inutilmente.

O lobo branco foi jogado com violência contra os bancos da igreja, agarrado pelo Malcom, que aproveitou para encravar suas presas com força no ombro do garoto. Andy suportou uma dor lancinante enquanto sentia pedaços de madeira quebrada cortando suas costas. Tentou reagir, mais a força do seu atacante era muito superior, não lhe dando tempo para fazer nada que não envolvesse rilhar os dentes e tentar afastar as presas que se encravavam cada vez mais fundo em sua carne.

A pele rasgada queimava, Malcom iniciando uma sucessão de mordidas ferozes, cada uma capaz de matar um homem comum. Arrancando grandes tiras de carne dos ombros, braços e tronco de um inimigo subjugado. O garoto foi empurrado de uma lado para o outro, sendo devorado aos poucos, como a carcaça de uma presa abatida. Em meio ao massacre, Andy conseguiu enfim posicionar suas pernas (a parte de seu corpo menos afetada no momento) contra o corpo do seu atacante, e com grande esforço arremessá-lo para longe de si. Malcom bateu contra o altar do templo, derrubando sobre si alguns dos corpos bizarramente presos, mas não parecendo nem um pouco afetado.

Quanto a Andy, com carne exposta e metade do pelo tingido de sangue de origens variadas (e cada vez mais de si próprio), usou todo autocontrole que tinha para não correr com tudo para longe daquele monstro. Finalmente entendia o que Jeff devia sentir ao olhar para ele.

Seus olhos buscaram a loba. Dos quatro vampiros destacados para capturá-la, um estava morto, e outro sem uma das mãos. Infelizmente, ela foi vencida... uma adolescente nua caída ao chão e cheia de hematomas. Outros vampiros levavam um corpo destroçado, um deles com uma cabeça decepada nas mãos. A vampira já estava totalmente dominada, mãos algemadas para trás e um cano de arma contra a cabeça. Malcom se ergueu, e parando diante deles, farejava algo.

— Seu cheiro... você é o assassino do Boris — disse Malcom, encarando o mascarado. — Depois de matar o garoto, mato você.

— Então é melhor que eu não esteja aqui, não é mesmo, senhor Malcom? — respondeu ele, segurando a vampira acorrentada com um braço e disparando um arpão no teto com o outro. Estilo Batman ou outro personagem dos quadrinhos que Andy lia quando mais novo, sua mãe comprando aos montes na esperança de mantê-lo longe de confusão. — Aliás, temos algo em comum: ambos nos divertimos muito com uma certa Evelyn. Isso antes do pirralho aí arrancar a cabeça dela fora, no início da noite.

A frase terminou com ele já no ar, Andy ciente que o mascarado também conhecia a Evelyn, fosse ele quem fosse. E pior, sabia do que ele lhe fizera. Malcom rosnou, mas se manteve sob controle. O ódio pelo garoto devia ter ficado ainda maior após ouvir aquilo.

O corpo doía, doía muito. Mas regenerava também. Parecia que o corpo de um lobisomem tinha uma enorme capacidade de reparar qualquer dano, e ao menos uns cinquenta porcento dos ferimentos mais graves já estavam fechados. Andy fechou os olhos, inspirou e expirou.

— Foco na luta... foco na luta... — percebendo que seu adversário era um monstro muito mais forte, decidiu que não podia vencer sendo monstro. Andy era um lutador, e só assim teria chance de vitória.

Assumiu postura de muay thai, suas mãos de garras erguidas a frente do corpo. Joelho flexionado e passos lentos para frente. Ver aquilo pareceu deixar Malcom com ainda mais raiva, soltando um urro que fez os vampiros ainda presentes desistirem dos corpos dos companheiros e se limitarem a colocar Mandy nas costas.

— Vou te fazer chorar como uma mulherzinha — Malcom provocou, braços a frente do corpo apoiados no chão, como um gorila. — Vai chorar mais que a Mandy, quando os vampiros rasgarem o peito e sugarem ela até secar.

— Jeff chorou. Evelyn também — Andy devolveu, sem olhar para a Mandy, sem pensar na Mandy. Sem pensar na culpa. — Sua mulher não teve tempo.

— Isso é pelo meu filho, seu filho da puta. — E Malcon desceu em fúria sobre o garoto.

As garras acertaram o vazio, as pesadas e jabs do lobo branco mantendo o inimigo afastado. Malcon parecia frustrado, não devia estar acostumado a lidar com lobisomens lutando como humanos treinados. Quando tentava morder, recebia uma joelhada no focinho. Os socos rápidos de punho fechado e os chutes de sola aberta no tronco impediam sua aproximação para o abate. Além disso, Andy castigava repetidamente suas canelas, diminuindo o ritmo do adversário. Cansado e frustrado, o grande lobo negro recuou alguns passos, rodeando o adversário.

Malcom enfiou as garras em um banco, jogando contra o lobo rival. Andy tentou desviar, mas não havia espaço para isso. Suportou o que pôde do impacto, para logo em seguida receber outro. Uma força descomunal era necessária para erguer aquelas fileiras de bancos e arremessá-las contra alguém daquela forma, e o impacto do segundo cuidou de derrubar o garoto-lobo.

O líder da matilha saltou sobre ele, o impacto do seu peso sobre as costelas fazendo Andy cuspir sangue. As garras desceram sobre o lobo albino em velocidade, seu peito retalhado antes que tivesse tempo de erguer a guarda. Andy tentava mudar de posição, tirar as costas do chão, mas toda aquela madeira, sangue, farpas e capsulas de balas não ajudavam. Tentou usar as pernas, sua anatomia monstruosa tornando difícil aplicar suas lições de jiu-jitsu brasileiro com eficiência, já que nada era familiar com uma luta entre humanos.

E em meio a essas tentativas, o pior aconteceu: Malcom segurou sua perna. Segurou, para logo encravar os grossos dentes fundo na carne abaixo do joelho, forçando com as mãos e os dentes em direções opostas. Andy gritou, urrou de dor, enquanto metade de sua perna era arrancada por aquele lobisomem terrível de quem Jimmy tanto pediu que ficasse afastado. Lágrimas de dor e ódio brotavam de seus olhos vermelhos. Ganidos animalescos enquanto se afastava do monstro erguido que brincava com aquele pedaço dele.

— Esse foi pelo Jeff. — Malcom sorriu com dentes vermelhos de sangue, jogando o membro destroçado para longe. — O próximo, será pela Evy.

Foi por um segundo. Uma lembrança esquecida que voltou a mente de um lobo derrotado. Uma imagem, uma voz, uma sensação. Foi há muito tempo, quando ele era uma criança correndo até a mãe. Machucado, triste e inseguro.

"Quando eles baterem, filho" — disse a mãe, olhando fundo nos olhos do menino, sorriso no rosto. "Você bate de volta. E bate mais forte."

Um momento, e ele estava novamente focado. Novamente sem medo. Desviando de uma mordida que visava seu braço exposto, aproveitou o descuido de um atacante que já se considerava vitorioso para enlaçá-lo pelo pescoço! Em um giro, Andy ficou nas costas do ex-líder de matilha, aplicando um mata-leão com toda a força de que dispunha. Malcom sacudiu o corpo, balançando o lobo branco que não tinha a segunda perna para travá-lo de forma adequada e facilitar o estrangulamento.

Malcom rasgava os braços do garoto, mas não era o suficiente para fazê-lo desistir da posição favorável. Fosse uma luta entre humanos, seria questão de poucos instantes para o lobo negro apagar. Se tratando de um lobisomem daquele porte, ninguém sabia o quanto aquilo podia durar.

— O quanto... aguenta? — questionou o Alfa, com grande esforço.

— Só o suficiente, cuzão.

E então Malcom viu, mas era tarde. Andy usou seu peso e posição para forçar o monstro contra um pedaço de banco quebrado, um estilhaço pontudo como uma estaca, e bem abaixo dele. A parte dianteira da cabeçorra encravou na madeira. Não atingiu o cérebro, mas prendeu a cabeça. E isso era o suficiente. Mantendo a cabeça do líder presa e ganindo, Andy encravou os dentes no grosso pescoço do lobo negro. Mordeu e rasgou. Uma, duas, três vezes. Na primeira, Malcom emitiu um ganido triste. Na segunda, perdeu a voz. Na terceira, seu corpo desabou no chão, separado da cabeça presa na haste.

Andy viu o corpo do monstro tombar, quase sem acreditar que foi capaz de matar o lobo negro. Tentou apoiar-se em um banco para ficar de pé, pra então cair, se dando conta da falta da metade abaixo do joelho de sua perna esquerda. Caído, com a visão turva e sentindo as forças se extinguirem, começou a notar tudo ficando escuro e distante.

Só um nome em sua mente.

—... me desculpa, Hello Kitty.


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Notas finais do capítulo

E então, já tomou o calmante? Espero que tenha curtido e sofrido um pouquinho, pois nossos personagens sofreram bastante.

Vou ficar muito feliz se você se manifestar nos comentários, mesmo que apenas com um "oi, tô aqui".

Grande abraço, e até o próximo.



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