Filhos da Noite escrita por Rick Batista


Capítulo 14
A Face do Golem


Notas iniciais do capítulo

O que quer o professor Davis, afinal?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/738928/chapter/14

O sol nasceu com Paul entregue aos livros, sem ter dormido nada. Diante do espelho do banheiro, contemplou a si mesmo, lembrando-se dos olhos da mulher que matou. A água no rosto limpou o suor, mas não a culpa. E conforme a campainha não parou de tocar, secou-se e atendeu. O homem na porta era um velho conhecido que ele deixou entrar sem cerimônia.

— E então, como você está? — inquiriu Roger, pegando das torradas e chá que Paul serviu. — Não entrou em contato, não retornou minhas ligações, não tem ido ao trabalho... Para ser sincero, tive medo que estivesse morto.

— A "Ordem do Dragão". Os cavaleiros cristãos do qual dizem ter feito parte Vlad Dracul: o dragão. Pai de Vlad Drácula: o filho do dragão. — Paul folheava os textos do material que o vampiro Adam lhe entregou. — E quem diria, pai de Adam Tepes.

— Então você conversou com o vampiro de novo — afirmou Roger. — Mas que história é essa de "Drácula"? É como o dos filmes de terror? — O homem olhou com ceticismo para Davis. — E vampiro lá tem filho agora?

Paul se forçou a comer e beber, mesmo sem vontade.

— Tem, se fez o filho quando ainda era humano, e depois o transformou em vampiro. Aliás, preciso saber como se fala "neto" em romeno. Adam Tepes: neto do dragão. — E sorriu, olhos no livro. — Não soa lá muito imponente.

— Acredita mesmo que ele seja importante assim? Tudo bem que seja antigo, as evidências disso são fortes, como você mesmo explicou. Mas daí a "filho do Conde Drácula", são outros quinhentos!

— No nosso ramo é difícil falar em certezas, Roger. Mas digamos que o desgraçado mostrou coisas o suficiente para que eu leve a sério essa afirmação. E o melhor, ele quer uma parceria comigo.

— Só pode estar brincando. Parceria com um vampiro?

— Esse é o símbolo da Ordem — prosseguiu Paul, mostrando a imagem de uma cruz com um dragão enroscado nela. — Segundo Adam, são seus inimigos. Ele acredita que continuam por ai, mesmo após trezentos anos. Reconhece o símbolo, detetive?

— Essa é a tatuagem que os seguidores de vampiros fazem no pulso.

— Exato — confirmou o professor, comparando com uma foto da tatuagem em seu celular. — Eu já havia reconhecido a origem da figura antes, mas nunca imaginei que eles realmente tivessem surgido por volta do século 15. A Ordem do Dragão da qual Turner fala, é nada menos que nossa velha conhecida Irmandade Rubra.

Roger encarou o professor por um tempo antes de perguntar.

— Vampiros são nossos inimigos, Paul. Não foi essa uma das primeiras coisas que me ensinou? Como pode pensar em se aliar a um deles? Enlouqueceu!?

— É temporário, Roger, temporário — disse o professor, dando tapinhas no ombro do parceiro. — Ele nos levará até peixes maiores, e assim que pescarmos todos, será a vez dele.

Paul já esperava por uma reação como aquela, até por isso não teve pressa em contar. A parceria com o vampiro era algo indigesto, mas que Roger precisava saber. Ao contrário do que ele fez com Pietra... Isso seria algo que o homem jamais entenderia. Jamais aceitaria. Com eles dois sempre foi assim: Paul contava apenas aquilo que o homem podia aceitar, esse era o preço para que pudesse mantê-lo consigo. E isso já fazia um bom tempo.

***

Manchester, dois anos antes. Após ouvir sons vindos da sala, Roger Green, quarenta e cinco anos e detetive afastado, deixou a esposa dormindo sozinha para investigar a origem deles. O homem tinha altura mediana, cabelos levemente grisalhos e barba grossa em um rosto severo.

Caminhou de pijama pelo sala, com a pistola em mãos, se aproximando da cozinha de forma cautelosa. Roger deixou os olhos se acostumarem a escuridão, avançando lentamente. Só que mal entrou na cozinha, se viu desarmado! Na escuridão ele só notou um vulto, sentindo o braço torcido para trás e o cano gelado da própria arma contra sua cabeça.

— Não grite — disse o homem, tom intimidador. — Quero apenas respostas, senhor Green.

Ele tentou se manter frio diante do invasor misterioso. Em meio a sensação de total impotência, temeu especialmente pela esposa, que dormia profundamente no quarto. Seu único consolo era saber que o filho adolescente não estava em casa, e torcia para que tudo se resolvesse antes que ele chegasse.

— Entendido, vou cooperar — respondeu.

Minutos depois, o homem estava revirando pilhas de arquivos em seu escritório particular, um pequeno cômodo onde ia quando procurava paz ou nostalgia. A única luz vinha de um abajur em cima da mesa, e o estranho se manteve sempre atrás, longe do seu campo de visão. Após reunir uma pasta cheia de arquivos, fotos e jornais, colocou tudo sobre a mesa, e olhando para a parede, disse:

— Isso é tudo que tenho sobre os casos que investiguei. — Um período de silêncio, tom de frustração. — Casos incomuns, assustadores, sem explicação, e que me custaram toda a credibilidade que tive. Poderia ter descoberto mais, se homens poderosos não interferissem.

— Tem certeza de que está tudo aqui?

— Sim, os trabalhos mais desafiadores da minha carreira, e os únicos que não pude solucionar.

Longo silêncio. Roger meditou sobre o porquê de virem atrás disso após tantos anos. Temeu a morte, mas se daria por satisfeito se sua esposa fosse poupada. Só então percebeu a própria arma posta sobre a mesa à sua frente, assim como a pasta sendo puxada pela figura atrás de si.

— Não tenha medo, detetive, não desejo fazer qualquer mal a você. Eu descobrirei a verdade, os culpados serão punidos.

Roger ficou confuso com o que ouviu, percebendo que aquilo não se tratava de uma queima de arquivo.

— Ainda pensa neles, Roger? Ainda deseja saber a resposta para as perguntas que fez?

Um certo brilho há muito apagado retornou aos olhos do homem naquele momento. Uma euforia perceptível na voz que respondeu:

—... Mais do que tudo na vida, eu quero.

— Então aguarde meu contato — disse o mascarado, se afastando de um homem ainda de costas. — Se estiver mesmo disposto a descobrir a resposta, ela será sua. Mas tudo tem um preço... Esteja disposto a pagá-lo.

Não demorou muito até o contato ser feito. Roger caminhou pelo casarão abandonado em que o estranho marcou com ele. Seus olhos estudando o local, seu olfato discernindo o cheiro de mofo e bebida, e o tato sentindo a poeira onipresente. Estantes com livros de História, Psicologia, Teologia, Antropologia, Filosofia, Ciência da Religião... Naqueles que abriu, encontrou anotações e páginas marcadas. Em um quadro branco preso na parede, fotos de diversos indivíduos. Algumas eram recortes de jornais, outras foram tiradas em circunstâncias típicas de perseguição a um alvo.

Já fazia um mês desde que o ex–investigador de polícia recebeu a visita do intruso em sua casa. Um mês aguardando, conferindo a caixa de e-mail e o registro do celular com frequência, até que finalmente o momento chegou. O som de passos descendo a escada atraíram Roger para o estranho homem que se revelou a ele. O sujeito usava um terno totalmente preto, o que não teria nada demais se não fosse pelas luvas e máscara negra que usava. Um estranho óculos cobria os olhos, e na testa havia uma palavra em língua desconhecida.

— Boa noite, detetive — disse o mascarado, mãos nos bolsos.

— Imagino que não me dirá seu nome, então como devo chamá-lo?

— Me chame de Golem — respondeu ele. — Sei que está cheio de perguntas, Roger Green — continuou, puxando uma cadeira ao lado da mesa com uma pasta fechada, ao que Roger fez o mesmo.

— É da minha natureza, sou um investigador. A gente se aposenta, mas os instintos não — respondeu o homem, apontando em seguida para o quadro com fotos. — Uma em especial está martelando na minha cabeça nesse exato momento: quem são eles?

O mascarado se virou na direção do quadro.

— Assassinos. Todos ali eram bem diferentes, mas sem exceção: assassinos.

— "Eram", você disse. Imagino que estejam todos mortos agora. Então é isso que o Golem é? Um "justiceiro" que vai atrás de assassinos para pôr um fim em seus crimes? Parece coisa de quadrinhos, concorda?

— Não sou nenhum justiceiro. Meu tipo de alvo é bem mais perigoso que sociopatas ou seriais killers. — O homem de preto ligou o notebook. — São como os criminosos dos casos que investigou: não envelhecem, misteriosos, assassinos... Monstros.

— Não há monstros, não no sentido literal. — Roger encarou o mascarado, pela primeira vez esboçando um sorriso. — Fora dos filmes e livros de terror, só existem os bons e velhos homens fazendo esse papel, e que sabem fazer muito bem, diga-se de passagem. Não sei qual a explicação para os crimes que investiguei, para os corpos sem sangue, os testemunhos invalidados, os corpos desaparecidos dos túmulos, mas seguramente há uma explicação lógica para eles.

— Será mesmo? Talvez a verdade seja um pouco mais cinzenta que esses tons de branco e preto, investigador.

O Golem abriu a pasta, uma série de documentos diante de Roger, com fotos e cópias de arquivos sobre vítimas de vampiros e eles próprios. Enquanto o homem passou os olhos por aquele mar de informações, e escolheu alguns dos casos mais interessantes para ler, ele mostrou um vídeo no computador. Nele, se viu um homem se arrastando pelo chão. Ele aparentava algo em torno dos trinta anos, seu rosto estava banhado em lágrimas vermelhas e começava a urrar de dor quando os primeiros raios de sol tocaram sua pele — queimando-a. As presas eram visíveis, e o sujeito buscava escapar da luz ao subir pelas paredes, de um modo que não deveria ser possível fazê-lo. O espetáculo todo durou cerca de três minutos, indo das súplicas da criatura buscando uma fuga do sol que se expandia, até só restarem suas cinzas. Nada foi dito, mas era óbvio que se tratava de um vampiro como o das lendas.

Roger assistiu a tudo tenso, mas sem emitir palavra.

— Material interessante, mas como posso saber que é real? O Youtube está cheio de montagens e filmes amadores capazes de enganar quem não seja especialista em edição. Não acha que é pedir demais para um homem que aprendeu a desconfiar de tudo, acreditar em vampiros?

— Não peço que acredite nesse vídeo, nos arquivos ou fotos, investigador. Só peço que abra sua mente. Há monstros de verdade entre nós, e o meu trabalho é acabar com eles. Até porque, sei que acreditará quando estiver diante de um deles. Então todas as suas perguntas terão resposta.

Passaram-se dois meses, até Roger ter sua resposta.

Era um homem baixo e acima do peso aquele diante deles. Seu cabelo calvo e rosto rechonchudo lhe emprestavam um ar amigável, o que contrastou com os olhos vermelhos e as presas expostas como as de um animal. Ele estava acorrentado na coluna, apenas de calças e fora de si.

 Geralmente escolhem gente jovem e bonita, mas parece que com esse ai foram menos seletivos — disse o Golem, sobretudo por cima de um colete de kevlar e roupa de couro preta, luvas e máscara com uma pistola em mãos.

— Ele parece doente, o que é tudo isso? — Roger suava, sem conseguir acreditar no que seus olhos viam, preferindo se agarrar ao ceticismo, seu parceiro seguro e confiável de sempre. — Você diz que eles são bons dissimuladores, mas esse não parece ser.

— Ele perdeu muito sangue, está faminto e com raiva, só isso. — E pegando uma bolsa de sangue hospitalar, espremeu do líquido na boca do vampiro. — Veja só como vai melhorar.

Roger pôde observar o homem drenando aquilo desesperadamente, todo seu corpo reagindo à ingestão do sangue. As veias pulsando, a cor da pele assumindo uma tonalidade menos pálida, por fim a calma retornando ao sujeito que não mais grunhia ou mostrava os dentes. Ele olhou para Roger, suplicante:

— Por favor, senhor, faz ele me soltar, pelo amor de...

O som do um tiro interrompeu a frase.

— O que foi isso!? — gritou o detetive, assustado.

O vampiro gritou de dor, seu ombro atingido pela arma do mascarado.

— Ele estava muito fraco para a demonstração. Agora observe a mágica, detetive. — E o Golem apontou com ela para o ombro ferido do vampiro, que começava lentamente a regenerar. Sua carne fechando a ferida e expelindo a bala do corpo.

Roger olhou maravilhado para aquela prova incontestável do que o Golem disse. O homem praguejou e lamentou, em um misto de sentimentos que mexeram com a consciência do ex-policial.

—... por favor... por favor, detetive.

— Ele é um monstro, você me provou isso. Mas ainda assim, não suporto ver alguém sendo torturado.

O mascarado apenas mostrou o cartucho que colocava na pistola, diferente do anterior. E então atirou contra o outro ombro, fazendo o homem urrar de dor e Roger ficar sobressaltado, apontando a própria arma contra ele.

— Eu disse para parar! — ordenou, sabendo do risco que corria ao confrontar o homem que lhe apresentava um novo mundo.

—... Olhe o ferimento, por favor — respondeu o mascarado, arma abaixada.

Ainda que a contragosto, Roger olhou para a aferida. Ele notou que do ferimento saiu fumaça, e que o vampiro parecia estar sofrendo mais. Também notou que o corpo praticamente não regenerou o estrago.

— Essa é a diferença entre uma bala comum e uma de prata. Se quer matar um deles, use prata — continuou o homem de preto, entregando a arma para Roger. — Agora mate-o, detetive.

O vampiro olhou para Roger, tremendo de cima a baixo.

— O que você me pede é a execução de um homem indefeso — respondeu, hesitante.

— Não, detetive, não há homem algum diante de você. Isso é um vampiro, um parasita que se alimenta do nosso sangue. Eu o peguei em um buraco escuro, sugando de uma sem-teto que agarrou na rua. Na casa dele, os restos de pelo menos outros dois. — Roger ouviu cada palavra, a tensão aumentando. — Pelo estado dos corpos, não deviam ter mais que um ou dois meses. Imagine quantas vítimas em um ano? Dez anos? Os desgraçados podem viver muito, muito tempo, Roger. Até mesmo séculos. Faça as contas.

O ex-policial olhou para o rosto suplicante do vampiro, lágrimas de sangue escorrendo da face.

— Isso faria dele um dos maiores assassinos em série da história. Talvez até mesmo o maior — disse Roger, tentando convencer a si mesmo.

— Não existe prisão para algo assim, detetive. Nem reabilitação, esperança ou sistema, apenas a morte. É só ter uma chance que ele voltará a matar, é só o que sabe fazer. É só do que precisa. — O Golem colocou a mão em seu ombro, demonstrando apoio. — Roger... é a única opção.

Roger ergueu a arma, hesitante. Seu coração pulsou disparado, o suor escorrendo pelo rosto e mão trêmula. Ele olhou nos olhos do homem, do vampiro, do alvo:

—... Por favor, detetive. Isso não, isso n...

E rilhando os dentes para suprimir um gemido, disparou contra a cabeça do vampiro.

Naquela noite, Roger Green atirou na cabeça de um homem. Sua primeira execução, seu primeiro tiro fora de uma situação coberta pela lei. A diferença é que não se tratava de um homem... Era um vampiro, um monstro. Roger matara um monstro, e aquele seria apenas o primeiro.

***

Tudo aquilo já fazia muito tempo.

Roger se mostrou um parceiro tão leal quanto útil, e após um ano agindo em conjunto, o Golem tirou a máscara e se revelou a ele. Paul Davis, o professor de Antropologia que lecionava na Universidade da pequena cidade de Bleak Hill. Paul Davis, o soldado que serviu no exército de Israel, até se cansar de tudo aquilo. Paul Davis, o homem que foi casado por quatro anos, até sua esposa ser dada como desaparecida. Paul Davis, o recluso de quem os vizinhos sabiam pouco, mas que sempre tinha um sorriso amigável e uma boa conversa quando encontrava com algum deles.

Esse foi o Paul Davis que Roger conheceu, aquele que qualquer pesquisa ou investigação poderia revelar. É claro que Roger também conhecia o lado que elas não revelariam, o homem que secretamente caçava aberrações noturnas, colocando sua vida em risco para salvar a de outros. Mas mesmo esse Paul ainda era uma ilusão. E isso, Roger não tinha como saber.

"Talvez a verdade seja um pouco mais cinzenta que esses tons de branco e preto", foi o que o próprio Paul disse a Roger quando o conheceu, e aquilo se aplicava a ele também.

Já era noite, muitas horas passadas desde que o professor revelou a Roger que Adam era agora seu aliado. Horas desde que Roger atravessou a porta e partiu irritado, sem entender como o caçador fora capaz daquilo. Paul estava sozinho no cômodo, com um celular em uma mão e uma garrafa na outra. Bebendo mais do que devia, pensava sobre sua parceria com Roger, sobre o passado, e sobre a pessoa cuja foto admirava no aparelho.

Era uma bela mulher, olhos e cabelos negros, com mechas na altura dos ombros e exibindo um sorriso. Seu par de óculos combinava com os brincos dourados e o cordão com a estrela de Davi. 

—... Kellen — suspirou ele.

Paul olhou para a aliança dourada em seu dedo, refletindo sobre o porquê de mantê-la após todos aqueles anos, após a morte dela. Sim, pois para a família a jovem Kellen Davis estava desaparecida, mas Paul sabia a verdade: ela estava morta. Levantava-se novamente a cada noite, mas ainda assim, morta.

Uma lembrança ressurgiu em sua mente, a mesma que o atormentava há anos, quase todos os dias. Foi numa noite fria, em que uma mulher estava parada em uma rua escura e abandonada. Seus traços pareciam sutilmente mais belos após a morte, e também mais tenebrosos. A frente dela, de joelhos e sangrando pelo pescoço, o próprio Paul. Ele colocou a mão sobre o ferimento da mordida, tentando inutilmente estancar o sangue. Dos seus olhos escorriam lágrimas, as mãos trêmulas revelando o medo que tentava esconder da amada.

— Não me procure mais, Paul — disse ela, tom triste na voz. — Isso só vai te trazer mais dor.

— Kellen, por favor! Nós ainda podemos... — disse ele, tentando se pôr de pé enquanto buscava os olhos da vampira que foi sua esposa até pouco tempo atrás.

Em um piscar de olhos ela apareceu ao seu lado, o impacto de um soco a centímetros do seu rosto estremecendo a parede. As presas dela a mostra, os olhos fazendo o homem se sentir como um rato diante de um gato grande e feroz. O professor perdeu a voz.

— Não existe mais "nós", Paul. Kellen Davis morreu! — ela o encarou severamente, o levantando pelo pescoço com uma só mão. Paul torcia apenas para que seus olhos não demonstrasseem o medo que sentia. — A mulher que você diz amar, a mulher que já te amou, ela está morta.

A respiração dele ficou cada vez mais difícil, seus pés balançando acima do chão, as lágrimas embaçando a visão. O homem tentou não ouvir as palavras que penetravam fundo em seu peito, qualquer tentativa de diálogo impedida pela forte mão que esmagava seu pescoço.

— Eu bebo sangue, Paul, meu corpo só sobrevive assim. Esqueça seus sonhos de ter filhos, esqueça o sol, os parques e o romance. — Os olhos dela estavam tão vermelhos, que Paul jurava serem lágrimas se formando enquanto ele começava a perder a consciência. — Venha atrás de mim novamente, Paul, e eu te prometo que assim como eu, você morrerá. Só que diferente de mim, não vai levantar de novo.

As últimas lembranças dele envolviam falta de ar seguida de escuridão. Escuridão da qual Paul nunca mais saiu. Escuridão que deu luz ao Golem. Paul retornou do passado com olhos molhados, fitando o retrato na tela do aparelho.

— Eu matei por você, meu amor, com minhas próprias mãos. Eu me tornei um caçador por você, para encontrar você! O Golem foi aquilo que se levantou depois daquela noite. É o nosso filho, nossa cria das trevas.

De repente, um calafrio, e a sensação de estar sendo observado.

Paul sacou disfarçadamente a arma, se virando com ela apontada para a direção da presença. Encostado no canto mais distante do cômodo, um homem alto, de pele negra e dreads, vestindo roupas de couro sujas de sangue. O mesmo sangue que escorria pelo buraco no peito, resquício de um tiro de escopeta bem acertado.

— Nem vem apontar essa coisa pra mim — disse ele, sorriso intacto. — Isso aí não pode te ajudar não, cara. Nenhuma arma roubada de mim vai te ajudar.

O professor suava frio, e com as mãos trêmulas, colocou a arma sobre a mesa com dificuldade, evitando olhar para o homem. Quando se dirigiu ao quadro cheio de fotos e anotações, se viu diante de uma morena, corpo escultural em roupas de ginástica. Seu pescoço exibia um corte de uma ponta a outra, dele escorrendo sangue em profusão.

— O que houve, gostosão? Se assustou comigo, gato? — perguntou em seu sotaque latino, se inclinando sensualmente na direção dele, o decote generoso banhado em sangue.

— Vão para o inferno, me deixem em paz! — gritou ele, jogando a cadeira em direção a mulher.

Ela gargalhou, desviando quando deveria ser atingida pelo objeto.

— Nenhum homem me rejeitou antes, gatão — disse ela, zombando — É esse cortezinho que te incomoda? Engraçado, já que foi você que o fez, né não? É claro que só depois de se divertir comigo. De me enganar, como enganou todo mundo. Como sempre engana.

Paul avançou com dificuldade em direção a escada, tentando fugir do pesadelo. Porém, logo descobriu um sujeito sentado nos degraus dela, um homem de idade, careca e com a face surrada.

— Se divertindo, garoto? Enganando e roubando cada bendito caçador que tem o azar de cruzar teu caminho? — O velho segurava uma garrafa de cerveja que levou ao que restou da boca, derramando o líquido por toda a escada. — Isso não vai acabar bem, não vai não senhor. Esse pobre Roger vai acabar igual.

Paul estava nervoso, e suando sem parar levou as mãos à cabeça, abrindo e fechando os olhos, na esperança de todos sumirem ao abri-los novamente. No manual de psiquiatria ele encontrou muitas formas de nomear aquilo que o atormentava, e nenhuma delas envolvia as palavras "espíritos" ou "fantasmas". Mas quando se descobria que vampiros eram reais, todas as certezas se tornavam relativas.

O professor tentou ignorar as palavras ditas por suas vítimas, e ao fazer isso, sentiu mais presenças se juntando ao seu redor. Pouco a pouco elas chegavam mais perto, a agonia sufocante o reduzindo a um menino assustado e de joelhos.

— O que vocês querem!? — gritou, em desespero.

Um longo silêncio foi seguido de risadas e frases desconexas. E após um tempo que pareceu uma eternidade, ele ouviu sons de passos se aproximando, e uma voz familiar sussurrando em seu ouvido.

— Mate a vampira, mate o Tepes — disse a madre, a mão em seu ombro — Faça todos os demônios queimarem!

Ele abriu os olhos, sugando e soltando o ar, se esforçando para recuperar a calma. Aos poucos as mãos pararam de tremer, a calma retornando. E então ele se ergueu: novamente um homem, novamente só.

— Não me diga o que fazer, Pietra — falou, olhando para o espaço vazio onde antes estava sua última vítima. — Sou eu que decido quem morre ou não, e essa não é a hora do Tepes. Mas prometo que em breve, será a hora da Jeanne.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Conto com sua ajuda, seja favoritando a história, marcando nos acompanhamentos ou comentando. Um grande abraço.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Filhos da Noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.