P a r a l e l o s escrita por Jor Trindade


Capítulo 5
Capítulo III – Procurada


Notas iniciais do capítulo

Oie, pessoal! Só dei uma passadinha por aqui para avisá-los que teremos novidades. Um novo projeto está a caminho! Sigam o Tumblr da história para mais informações: http://web-paralelos.tumblr.com



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Mesmo bloqueando os sons externos através dos fones de ouvido plugados em um MP3 player, um pequeno aparelho portátil e bastante afamado na virada do século com música no volume máximo, era quase impossível me manter alheia a Josh, que gesticulava teatral e impacientemente. O garoto corria pelo gramado vívido da antiga casa em Kentucky, saltitando e abrindo os braços para simular o movimento de um avião. Sua vozinha estridente e pueril reverberava por todo o quintal. Os cachorros da vizinhança latiam diante de tamanho alvoroço. Seu estoque de energia parecia nunca se esgotar. Havia manchas de lama em seu rosto e roupas. Mamãe ficaria uma fera, mas refrear Josh era um trabalho que exigia paciência. Eu tinha apenas doze anos, sem maturidade o suficiente para bancar a babá.

Eu estava sentada nos degraus que davam para a varanda, com as mãos espalmadas um degrau acima, os pés balançando no ritmo de uma canção qualquer. Eu queria parecer adulta o suficiente, e fingir ignorar o garotinho hiperativo que ziguezagueava à minha frente era uma boa madeira de demonstrar o quanto eu já estava crescida. “Uma mocinha”, como meu pai costumava dizer enquanto desgrenhava meu cabelo. Eu o odiava por isso.

Jess tem cara de pum! — Pude ouvir em meio à melodia da música.

Observei-o de esguelha, mas procurei me manter impassível. Apenas emiti um “shii” com o indicador sobre os lábios e continuei a me mover no ritmo da canção. Suas sobrancelhas se vincaram por um segundo e o garoto exibiu uma careta. Imediatamente depois, seu rosto se iluminou com um sorriso travesso.

— Cara de pum! Cara de pum! Cara de pum! cantarolava ele, dando pulinhos em círculos. — É sério, você é igualzinha ao pum do vovô, sabia?

— Ei! — Empertiguei-me nos degraus, estupefata, e retirei os fones. — Deixe de ser criança!

Josh gargalhou com fervor quando tentei capturá-lo. Esgueirou-se com um movimento hábil e gracioso e correu para longe, na direção dos salgueiros que ladeavam a construção em estilo vitoriano. Seus ramos longos pendiam feito cascatas e roçavam as grandes janelas com divisões quadriculadas e venezianas, num bailar constante que acompanhava as lufadas de vento fresco. Aquela cena fora o suficiente para me contagiar, e, antes que eu percebesse, exibia um sorriso de orelha a orelha. Meus pés se revezavam em passadas rápidas enquanto eu perseguia Josh. O garoto ria euforicamente, parando vez ou outra para recuperar o fôlego.

— Você acabou de despertar o monstro! — emiti um grunhido desajeitado e projetei as mãos para o alto, como se tivesse me espreguiçado.

— Que tipo de monstro? — perguntou ele, com os olhos arregalados e o sorriso travesso ainda moldando sua expressão.

— Daqueles horrendos, com garras e uma carapaça negra que cheira à podridão. — E então caminhei na direção dele, trôpega e com passos pesados, como um antigo monstro de terror trash, até Josh começar a correr, rindo.

Era uma tarde agradável do término de março. O gramado do quintal estava pontilhado pelo desabrochar de crisântemos, que pareciam comemorar a chegada da estação mais florida do ano. A brisa trazia consigo o odor aprazível das flores, que conferiam vida ao ambiente. Porém, os canteiros impecavelmente cultivados não sobreviveram às investidas das sandálias de Josh, que os pisoteava sem ao menos se dar conta. Helen nos mataria, porém o passatempo estava divertido demais para que o interrompêssemos.     

Estávamos próximos dos limites da casa. Não havia mais lugares para Josh se esconder ou para onde fugir. Eu já estava em seu encalço e estiquei o braço, prestes a apanhá-lo. Porém, seu porte diminuto favoreceu a passagem entre as tábuas da cerca pintada de branco, e Josh cruzou o outro lado do terreno sem grande esforço.

— Ei, Josh! Espere! — gritei e plenos pulmões quando vi que o garoto se afastava do meu campo de visão.

Quando percebi que não houve nada em resposta, peguei impulso e saltei sobre a cerca. Quando cheguei ao outro lado, tudo imergiu na mais profunda escuridão. Não conseguia sequer vislumbrar um palmo à frente do rosto. Era como se alguém houvesse desligado o interruptor.

A temperatura havia caído. O ar era denso e frio. Cruzei os braços na tentativa de bloquear os tremores que percorriam meu corpo como pequenos choques elétricos. Caminhei por alguns metros, completamente às cegas. Tentáculos soturnos se esgueiravam por entre meus tornozelos, e meus pés afundavam no que parecia ser um terreno pantanoso.

Eu estava amedrontada. O terror me consumia à medida que avançava pelo breu total, sem nada para me guiar. Meus olhos estavam marejados. Não tardaria para que lágrimas indesejáveis irrompessem sem aviso prévio e escorressem pelas minhas bochechas.

— Josh...? — sibilei baixinho, receosa quando às minhas próprias palavras. Contudo, não recebi sequer meu eco em resposta.

Porém, para o meu alívio, encontrei uma lanterna abandonada sobre a lama, com um facho de luz tremeluzente apontando para a mata que se adensava à frente. Peguei a fonte de claridade e dei um passo adiante na direção das árvores. Não havia um único ruído como o cricrilar de grilos ou o coaxar de um sapo , apenas silêncio. Segurei a lanterna com mais firmeza e, de repente, não pude ficar esperando por algum som. Entrei correndo na mata, como um cão farejador à procura de uma vítima.

Cada metro quadrado era tomado por árvores de alturas diversas e troncos retorcidos, envoltas por um emaranhado de cipós e trepadeiras. Era extremamente difícil caminhar. Eu costumava explorar as florestas do Kentucky na companhia de papai — passávamos horas à fio caminhando por trilhas quase invisíveis, com uma mochila nas costas onde jaziam barracas desmontáveis. Quando o crepúsculo dava seus primeiros indícios, armávamos as barracas, acendíamos uma fogueira, saíamos em busca de gravetos para alimentá-la e, quando as estrelas despontavam no céu, deitávamos na grama macia, na companhia do calor crepitante. Mas ali, na penumbra, em um terreno desconhecido e lamacento, tudo parecia impossível.

Enxuguei as gotículas de suor que escorriam por meu rosto e desciam pelo pescoço. Segui em frente, apontando a lanterna por todos os lados e chamando por Josh.        

Estava prestes a desistir quando vislumbrei um trecho estreito recém-pisado. Agachei-me e coletei uma amostra da terra, esfarelando-a entre o polegar e o indicador. Apontei a lanterna para o caminho que serpenteava logo à frente. Mais marcas de passos. Limpei as mãos nas roupas e disparei em uma corrida. O único som era o da minha respiração entrecortada enquanto eu resfolegava, tomada pelo cansaço e pelo medo.

— Culpada.

Estaquei, procurando pelo dono da voz. A paisagem estava inerte, como se estivesse submergindo, parada no tempo e no espaço. Porém, a voz persistia, cada vez mais intensa e ininterrupta.

— Culpada, culpada, culpada, CULPADA!

Ajoelhei-me sobre a terra úmida, tapando os ouvidos. Contudo, quanto mais eu tentava bloqueá-lo, o som se tornava mais pronunciado.  

Senti algo tocar em meu ombro. Levantei o rosto a tempo de ver, horrorizada, a figura de Josh. Ele parecia irreal, como uma criatura monstruosa de um filme de terror barato. Havia sangue por toda a parte: rosto, ombros, maculando a camiseta de listras amarelas. O crânio parecia afundado em algumas partes e o braço direito repousava ao lado do corpo em um ângulo anormal. Exatamente como no dia do acidente.

E, antes que eu conseguisse tomar a liberdade de aninhá-lo em meus braços e niná-lo, como se isso de alguma forma curasse suas feridas, seus lábios se entreabriram para que pudesse esbravejar a plenos pulmões:

— CULPADA!

...

— Espero que goste de sopa.

Mal tive tempo de responder antes que Lester forçasse uma colherada generosa no espaço entre meus lábios. O conteúdo fumegante ricocheteou minha garganta. Meu corpo dobrou-se em espasmos na tentativa de regurgitá-lo. Senti uma pontada de dor percorrer o abdômen. Minhas mãos tremulavam, gotículas de suor frio contornavam as têmporas.

— Teve um pesadelo?

Balancei a cabeça em concordância enquanto Lester depositava uma toalha molhada sobre a minha testa. Com o tempo, os tremores cessaram e a náusea dava lugar à fome. Apontei para a tigela de sopa. Havia vegetais flutuando nela. Lester pareceu satisfeito enquanto apoiava a bandeja na perna e conduzia o caldo até a minha boca faminta.

— Quer falar sobre isso? — inquiriu ele enquanto limpava profissionalmente os resíduos da sopa que escorriam pelos cantos de meus lábios com um guardanapo.

O abismo da noite anterior havia se fechado. Seus olhos agora exibiam um brilho amistoso. Ele sorria para mim enquanto eu o observava.

— Sobre o sonho?

Ele assentiu.

— Nada de muita relevância. Apenas um pesadelo recorrente.

Lester sustentou o olhar e arqueou uma sobrancelha.

— Está blefando! — exclamou com veemência, cruzando os braços sobre o peito. Ele tamborilava os dedos sobre o antebraço coberto por um suéter impecável.

Suspirei. Sempre preferi enfrentar meus fantasmas em silêncio, mas Lester não descansaria enquanto não obtivesse uma resposta devidamente sensata.

— Em 2004, quando eu tinha 15 anos, meu irmão mais novo morreu em um acidente. Estávamos brincando nos fundos da casa dos meus pais, onde, todos os dias, passa o trem levando os passageiros da estação de Revenue para Shawsville, no Kentucky. Ele acabou ficando preso nos trilhos. Seu nome era Joshua — respondi vagamente, olhando pela janela. As nuvens se adensavam no céu cor de chumbo. Uma tempestade de neve não tardaria a chegar com toda a sua fúria. — Eu sonho com ele todas as noites, como uma necessidade inconsciente de me adaptar à sua ausência. Sabe, sinto falta dele. Josh era o meu anjo.

— Sinto muito.

Permanecemos em silêncio pelos minutos que se seguiram. Lester continuou a me oferecer a sopa, mas meu estômago já não a recebia de bom grado. Meu corpo já havia se fortalecido o bastante e a dor no abdômen recrudescia.

— Estou satisfeita, obrigada.

— Era Josh na foto, não era?

A pergunta me pegou desprevenida. Vinquei as sobrancelhas, atônita.

— O quê?

— O garoto da foto. Aquele no seu camafeu. — Lester apontou para o pingente que repousava em meu osso esterno com um gesto de cabeça.

— Você estava bisbilhotando? — inquiri ultrajada. A sensação era equivalente à de alguém me flagrando nua. Só que, dessa vez, o que Lester espreitava era a nudez da alma, as cicatrizes e a fragilidade que inundavam meu espírito.   

— Me desculpe. É só que... eu gostaria de saber mais sobre você. E vocês dois tem os mesmos olhos verde-escuros, então imaginei que...

— Tudo bem. — Ofereci-lhe um sorriso cansado, aninhando o camafeu entre meus dedos, como se para mantê-lo em segurança.

— Ela parecia uma criança extraordinária, se me permite dizer.

— É. Josh era, de fato, uma criança especial. Havia algo nele que fazia qualquer um se derreter de imediato. — Pela primeira vez, não havia dor em minhas palavras, apenas uma admiração genuína. — Mas e você?

— Eu o quê? — Lester levantou os olhos que antes examinavam as mãos, sobressaltado.   

— Cadê a sua família? — respondi com obviedade. — Onde está sua esposa? Ou, quem sabe, um marido? Tem filhos?

— Ah, bem, eu já fui casado uma vez, mas ela e eu já nos divorciamos há muito tempo. E nunca tivemos filhos.

— Qual era o nome dela?

— Christina.

— E por que não estão mais juntos?

O maxilar de Lester enrijeceu, revelando uma súbita mudança de humor. Seus dedos escorregaram pela nuca em um vaivém impertinente. O sujeito se empertigou na cadeira, visivelmente afetado. O abismo ressurgia como as ondas varrendo a praia em um dia tempestuoso. Imediatamente me questionei se estava avançando por um terreno perigoso, mas Lester logo prosseguiu:

   — Ela nunca se esforçou para entender os meus propósitos. Eu sou um homem de sonhos, tenho projetos grandiosos. — Seus olhos foram tomados por um brilho de fascinação. Havia uma sugestão de sorriso nos lábios. — Você pode achar que estou sendo pretensioso, mas sempre tive aquele espírito inconformista e utópico de querer mudar o mundo e expandir os limites do conhecimento humano. E, nesse aspecto, a ciência pode ser uma grande aliada. Christina dizia que eu era um grande lunático, mas como na época eu costumava trabalhar filiando núcleos de pesquisa em uma universidade – o que rendia bons lucros –, o relacionamento conseguia se sustentar. Contudo, assim que perdi o emprego, tudo veio abaixo.

   — Perdeu o emprego? Por quê?

   Lester suspirou, esfregando as palmas das mãos com impaciência. Vasculhei seu semblante em busca de dor ou ressentimento. Não havia nada. Lester se mantinha impassível. Seu rosto não exibia emoções, quase como se não houvesse humanidade naqueles olhos. Ele parecia estar fazendo um resumo imparcial dos fatos, e não relatando uma lembrança pessoal.

   — Algumas divergências de opiniões com os integrantes do núcleo, nada de mais. — O físico gesticulou em um movimento que indicava indiferença. Assenti brevemente.

— Então... você vive sozinho nesta casa há anos? Quero dizer, eu quase não vejo movimentação por aqui, me parece um lugar bastante isolado.

— Na verdade, essa casa veio depois do divórcio. Eu precisava de um lugar distante da civilização para esclarecer as ideias.

— Isso soa meio mórbido para mim — comentei. Havia menção a um sorriso nos lábios de Lester enquanto ele maneava a cabeça em concordância.

— Preciso trocar as suas bandagens. Espere um segundo.

Dito isso, Lester levantou-se da cadeira de mogno, levando consigo a bandeja, os restos da refeição e a toalha úmida. O estampido de seus sapatos caros desapareceu pelos corredores. Em seguida, o ruído abafado de uma torneira e armários sendo manuseados.

Recostei a cabeça no travesseiro. Meus olhos ziguezagueavam pelo teto e, de repente, comecei a imaginar o que me aguardava do lado de fora daquele confinamento. O que haveria para além das paredes de gesso tingidas de marrom. Porém, os únicos vestígios que estavam ao alcance da visão eram os flocos de neve que adejavam para a pequena janela. E, semicerrando um pouco os olhos, era possível discernir algumas árvores caducifólias – ou melhor, seus galhos retorcidos feito braços esqueléticos.  

Quanto à casa, será que os outros cômodos abrigavam a mesma decoração sóbria e minimalista? O restante das divisórias também emanava a éter e menta?

Bufei, afastando os cabelos que se emaranhavam na testa. Desejei no ínfimo poder simplesmente desaparecer. Sumir. Evaporar. Como uma pessoa nômade em essência, era demasiado desgastante ter de ficar imobilizada em uma cama, os movimentos limitados por ferimentos, contusões e agulhas fincadas nos braços. A ansiedade se assomava como um grito aprisionado na garganta.

Voltei à realidade com o sacolejar das ataduras sob o braço de Lester. Só então me dei conta das gotículas de suor que se acumulavam nas palmas de minhas mãos, meus olhos injetados que fitavam o vazio por longos períodos. Lester constatou minha mudança de humor e me ofereceu um analgésico. Aceitei sem pestanejar. Talvez, padecer de um estado de letargia não fosse de todo ruim. Ajudaria a aliviar as sensações conflituosas.            

— Como foi que me alimentou durante o período em que fiquei inconsciente? — inquiri mecanicamente, com a fala já arrastada, enquanto Lester repetia os procedimentos da noite anterior.

— Intravenoso. Isso explica as marcas em seu braço.

Grunhi quando a Cristalmina entrou em contato com a pele flagelada. A infecção, aparentemente, não havia recrudescido.

— Isso é bom — exclamou Lester, como se houvesse sintonizado com os meus pensamentos. — Ainda há alguns focos de pus aqui e ali, mas os pontos de infecção aparentemente não se agravaram.

Permanecemos em silêncio pelos instantes seguintes. Vez ou outra o sujeito me interrogava com perguntas banais, que eu me limitava a responder com palavras monossilábicas. Conforme o tempo avançava, Lester se esforçava ao máximo para aliviar o clima, discutindo efusivamente sobre os preços abusivos dos alimentos orgânicos, ou sobre as previsões meteorológicas para o restante da semana. Porém, era infeliz em suas investidas. Os efeitos do analgésico se abatiam sobre mim, e eu sentia meu corpo adormecer. Meus sentidos eram, aos poucos, obliterados pela sonolência.

...

Despertei com o barulho insistente de um motor e de algo raspando o asfalto. Fitei o relógio. Os ponteiros assinalavam os números grafados sob o vidro. Seis da manhã. Eu havia adormecido por quinze horas. As únicas vezes em que eu apagara por tanto tempo foram durante uma ressaca daquelas.

O som externo persistia. Franzi o nariz e me acomodei na cama, sentindo a alfinetada familiar percorrer meu abdômen, a tempo de vislumbrar o serviço de remoção de neve funcionando a todo vapor. Um trator puxava a neve que se acumulava na estrada e a arremessava nas margens. Imaginei que Lester fosse do tipo tradicional, que removesse a neve da entrada da casa com um snow blower movido à gasolina. Contudo, para minha surpresa, os tratores também chegavam no meio do nada – sob um preço generoso, é claro. Era revigorante finalmente ter algum tipo de contato com a civilização. Por isso, me entretive com aquilo, até o momento em que o trator pareceu trepidar e enguiçou. Um sujeito baixinho e de meia-idade saltou do veículo, trajando um colete de cor fluorescente sobre as camadas aparentemente infindáveis de roupas. Parou diante do trator, praguejando algo ininteligível. Em seguida, caminhou na direção das árvores, desabotoou as calças e começou a urinar.

— Espero que o seu pau não congele. — Pela primeira vez naqueles dias mais que insólitos, ri com o teor da observação.

Contudo, meu sorriso logo foi substituído por uma careta de aflição ao vê-lo esquadrinhar os dois lados da rua e então apanhar um cantil de dentro do casaco. A superfície metálica do aparato cintilava enquanto o sujeito empurrava o conteúdo boca adentro. Aquilo era ilegal, mas certamente o aquecia em meio ao frio tremendo. Imaginei o que haveria ali: vodka, conhaque... talvez whisky?  O sujeito bebericava o conteúdo com tanta avidez que senti a garganta secar. Meu corpo começava a colapsar novamente. Desde o incidente na casa de Earl, eu não havia bebido uma gota sequer, e assistir àquela cena era torturante. Como se não bastasse, o sujeito tirou um cigarro do maço em seu bolso e usou o isqueiro para acendê-lo. Soltava a fumaça em baforadas longas enquanto examinava o trator.

Meus dedos tremulavam na ânsia por um cigarro. Sentir a fumaça que inflava os pulmões, a nicotina que maculava os dedos de amarelo. Ou então a sensação revigorante que apenas uma tragada generosa em um copo de vodka poderia proporcionar. A euforia momentânea e estimulante de um único comprimido de ecstasy...

Minha pulsação estava subindo e logo me dei conta de que mal conseguia respirar. Esfreguei as mãos nervosamente pelas raízes do cabelo e, mesmo que ondas lancinantes de dor investissem contra o meu abdômen, esse era o menor dos problemas.

Tentei encontrar um ponto de equilíbrio em meio ao caos, mas era difícil ter de me policiar contra os tremores e a saliva excessiva que se acumulava no canto dos lábios, tal como um cão raivoso. Meus dedos se emaranhavam entre os lençóis da cama, a ponto de as juntas ficarem esbranquiçadas.

Me sustentei no criado-mudo e, com muito esforço, trouxe as pernas para fora da cama. Seja lá o que eu estivesse prestes a fazer, eu precisava sair dali, ou iria sufocar.

Assim que colocara os pés no carpete frio, minhas mãos, úmidas, escorregaram da superfície do criado-mudo. O móvel tombou com um rugido oco, derramando os equipamentos médicos de dentro de suas gavetas. Tive de projetar as mãos para trás e me agarrar à cama, no instante em que uma nova carga de dor investiu contra o meu abdômen. Fechei os olhos, pressionando as pálpebras, e, de repente, senti que fosse me desintegrar.

Olhei para baixo. Uma mancha de sangue em formato de disco começava a entornar a flanela, com fios quentes contornando minha virilha. Meu corpo tremia tanto que achei que estivesse perto de convulsionar.

Forcei-me a ficar de pé. Meu joelho contundido protestou. Minha visão perdia o foco e a escuridão sugava segundos de consciência. Meus músculos, outrora rígidos e fortes, agora estavam flácidos feito geleia. Assim que dei o primeiro passo, cambaleei de lado, curvando-me para a direita e pisoteando algumas embalagens vazias espalhadas pelo chão.

Havia um pensamento fixo no que haveria nos outros cômodos, dentro dos armários. Pense na bebida. Ou então nos comprimidos. Pense no alívio dos comprimidos. Era o que me motivava a continuar me movendo. Foda-se o criado-mudo. Foda-se a chance de Lester me flagrar. Foda-se a possibilidade de que a bebida ou os comprimidos não estivessem à vista, mas escondidos em algum outro lugar. Eram apenas sombras atrás dos pensamentos aturdidos.

Me arrastei na direção da porta. Cada passo era como afundar o corpo em um mar de pequenos punhais. O ar adentrava meus pulmões em golfadas.

Guiei a mão até a maçaneta. Houve um instante de expectativa, e soltei um suspiro aliviado ao constatar que a porta ao menos não estava trancada.

A casa estava silenciosa, e pude ver um corredor longo que levava ao que claramente era a sala de estar. As cores da parede eram as mesmas do quarto, assim como a decoração sóbria. Havia alguns estofados de cor clara, um divã antiquado, um abajur de leitura e uma TV de tela plana.

Assim que avancei alguns metros na direção do cômodo, alguns ruídos do lado de fora fizeram com que eu hesitasse. De início, imaginei que fosse o serviço de remoção de neve retomando suas atividades. Contudo, fui tomada de assalto ao ouvir o som distante de uma porta sendo aberta. Passos pesados. Assovios. O tilintar de um molho de chaves sendo depositado sobre a bancada.

A figura de Lester despontou na sala de estar. O que diabos ele estaria fazendo fora de casa àquela hora da manhã? Teria sido o mercado de pulgas novamente, como no dia em que me encontrara?

O físico depositou o casaco em um cabideiro de mogno que, de início, eu não havia notado. Em seguida, sentou-se no sofá e, apanhando o controle remoto, ligou a TV e zapeou pelos canais até se deparar com o noticiário.

— A tempestade de neve deixa cidades do estado de Nova York em situação de emergência. — A voz límpida de uma repórter em trajes bem aparados pareceu ribombar pelo ambiente silencioso – ou talvez fosse apenas o som mais pronunciado em minha mente aturdida, eu jamais saberia dizer. — Em 30 horas de tempestade, a neve chegou à altura de 1,40 metros. Este foi o maior acumulado registrado na história de Nova York. O recorde anterior havia sido em 1963. — Imagens de carros soterrados e estradas bloqueadas acompanhavam a descrição da repórter. — O serviço de meteorologia alerta para a previsão de uma nova tempestade nesta quarta-feira, dia 17, que deve varrer toda a região do centro-atlântico do país.

De soslaio, observei Lester se empertigar no sofá. A dor ainda me afligia, quente e líquida, e mordisquei o lábio inferior para reprimir um gemido.

Já estava convencida de que deveria abortar o plano e retornar ao quarto, quando uma imagem familiar surgiu na tela. Estreitei os olhos para observar com maior clareza. Minhas pernas vacilaram quando reconheci a figura de Earl. Trajava o típico uniforme alaranjado dos detentos e algemas estavam atadas aos pulsos. Vez ou outra, fitava a câmera com as sobrancelhas vincadas. A expressão dura e o semblante pesado no rosto reviraram meu estômago. A voz da repórter recomeçou:

— Na noite de ontem, Earl Hughes foi detido após atividade suspeita em um estabelecimento comercial nas proximidades de Waitsfield. O sujeito é acusado por tráfico de drogas e porte ilegal de armas. Além disso, suspeita-se de que o indivíduo seja um dos responsáveis por chefiar uma ação criminosa que agia em pelo menos cinco cidades da região. Foi feita uma vistoria em seu domicílio na Baker’s Street. O recinto parecia ter sido abandonado havia poucos dias, e nenhum entorpecente foi apreendido. — A informação que veio em seguida fez com que meus pés parecessem aferrolhados ao chão. — Porém, uma averiguação mais apurada verificou algumas marcas de sangue no banheiro da residência. Algumas amostras foram coletadas pela perícia criminal e, após a análise de DNA, verificou-se que o material pertence à Jessica Young Hill, que também é acusada por uma série de infrações. Entre elas, assalto à mão armada, extorsão e lesão corporal. Jessica, contudo, permanece desaparecida. Algumas viaturas policiais foram acionadas e, na tarde de hoje, Earl Hughes será submetido a inquérito policial em busca de novas informações sobre o caso.

Jessica Young Hill. Minha foto invadiu a tela da TV de tela plana. Meu coração pulsava com tamanha força que era possível ouvi-lo refletir em meus ouvidos. Toda a dor fora obliterada por algo maior. A cor em meu rosto pareceu desaparecer e os tremores, agora, eram desencadeados por outro motivo.

Agora, ele sabia. Lester sabia. A garota a quem ele oferecia cuidados em sua própria casa era uma criminosa. E estava sendo procurada pela polícia.


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