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Kallien apenas soltou a respiração quando Corinna estava a uns dois passos de distância.

Ela nunca seria dele. Ele sabia.

Já sabia havia um tempo. Talvez ele havia descoberto no momento em que pôs os olhos na menina deslocada ao lado das outras crianças no vilarejo.

Aquilo sempre o atraiu para ela. Como ela era diferente do restante. Como ela não se encaixava ali.

O rapaz sempre teve a necessidade de proteger a menina. Mesmo quando ela se mostrava cada vez mais independente, mesmo quando ele se via sendo mais protegido do que, de fato, protegendo.

Kallien lhe daria o mundo, se ela quisesse.

Embora um arrepio percorresse sua espinha quando ele se deixava pensar que se ela quisesse realmente o mundo, a garota não pensaria duas vezes em conquistá-lo com as próprias mãos.

Ainda assim, Kallien não deixava de temer por ela. Não deixava de temer o que o mundo faria com ela.

Logo, enquanto a moça se afastava, o garoto só poderia rezar para que, mais uma vez, qualquer coisa que olhasse por eles, impedisse que o nome dela estivesse entre os vinte Escolhidos para aquele Sacrifício fora de época.

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Ela nunca havia visto a mulher que estava sentada à sua frente.

Os cabelos pretos caíam como nanquim por seus ombros e descendo por seu busto, combinavam com suas vestes tão pretas que parecia absorver a luz.

Corinna deu um passo a frente colocando uma mão no encosto da cadeira destinada a ela.

Aquele cômodo era com certeza o maior daquela construção. As paredes eram de um cinza desbotado e depressivo. Três Examinadores, como era chamados os deorum que ficavam ali dentro, estavam sentados atrás de mesas gêmeas, um pouco afastadas uma das outras e separadas fisicamente por painéis de madeira um pouco mais altos que Corinna.

Cada examinador era designado a uma das três faixas etárias, eles revezam com outros que iam chegando até acabarem todos os candidatos. Geralmente, quanto menor a idade, mais benévolo era o examinador, embora a jovem duvidava que o homem que se sentava na mesa do meio poderia ser chamado de algo próximo a benévolo.

A mulher dos cabelos negros levantou os olhos castanhos claros para Corinna e abriu-lhe um sorriso simpático enquanto gesticulava para ela sentar-se. A menina forçou os lábios a se curvarem num gesto mínimo antes de repousar na cadeira enferrujada.

Era a sua oitava vez fazendo aquele mesmo procedimento, mas, de certa forma, uma agitação bem na boca do estômago não parecia querer deixar a jovem. Ela não sabia se tinha a ver com a mulher na suas frente, quem ela nunca tinha visto nesses oito anos participando de cada uma das Audições, ou se tinha a ver com ser a penúltima vez em que tentaria participar daquilo tudo.

—Senhorita Lestat.— a voz da mulher lhe tirou dos devaneios. Suas feições diziam a Corinna que se ela fosse uma humana normal, não seria mais do que dois anos mais velha que ela. A garota olhou nos olhos da deorum enquanto ela dizia.—Fico impressionada ao ver que você é a única nos últimos oito anos que vai participar de todas as Audições possíveis para você. Não gosta de sua terra natal?

Era um pouco assustador. Os olhos da mulher, na verdade.

Suas pupilas pareciam estar sempre um pouco mais dilatadas que o normal. Foi depois de muito esforço que Corinna percebeu o motivo. As pupilas da moça não estavam dilatadas, era apenas a junção do anel que circundava as de todos os deorum, variando de cor dependendo da pessoa. O dela era tão preto como um céu sem estrelas. A jovem nunca havia visto algo do tipo antes, não poderia dizer se aquilo era bom ou não.

Então se limitou a responder:

—Garanto que participar dessas audições todos os anos não é bem minha ideia de diversão.— uma sobrancelha se arqueou no rosto da examinadora antes mesmo que a menina completasse.—Embora, devo admitir que não acho que seja um preço tão alto a se pagar por algumas moedas de ouro. Creio que essa foi a intenção de vocês ao se disponibilizarem a dar essa recompensa para quem participe disso.

O tom de voz da menina foi tão ríspido quanto ela desejara. Seus olhos ainda procuravam algum indicativo do nome da deorum à sua frente. Em geral, os examinadores usavam um pequeno crachá com seus nomes, mas o dela estava vagando entre os seus dedos inquietos de um modo que Corinna não conseguia pegar nem mesmo um lampejo esclarecedor

A mulher a analisou com cuidado:

—Então só está aqui pelas moedas, apesar de achar que elas sejam uma forma de manipulação do governo?— ela parou de mexer os dedos e apoiou o crachá sobre a mesa.—Meu nome é Laeni, aliás.

Foi a vez de Corinna arquear a sobrancelha, ainda que por apenas um mísero segundo. A garota se apoiou no recosto, alisou o vestido e inclinou a cabeça como se pudesse ler a deorum da mesma maneira como a mulher fazia com ela.

—Não acha que eu seria tola se criticasse o governo justamente com um de vocês?— para a surpresa da menina, o sorriso de Laeni aumentou deixando seus dentes branquíssimos e alinhados à vista.

Ela tamborilou dois dedos na mesa como que mostrava satisfação e disse:

—Pergunto-me como você ainda não foi escolhida. Acho que seria um dos Sacrifícios mais interessantes.— Corinna se conteve de inflar o peito com esperança enquanto Laeni procurou por algo sobre e sob a mesa. Uma caneta, a jovem percebeu.

Quando garantiu que não tinha nenhuma a vista — e depois de lançar rapidamente um olhar estreito e desconfiado para o deorum carrancudo da mesa ao lado — simplesmente fez com que uma se materializasse em seus dedos.

Corinna piscou.

Uma e outra vez.

—Achei que vocês não tinham permissão para fazer qualquer tipo de magia na nossa frente.— a garota comentou baixinho fazendo um gesto desleixado —ainda chocada com a naturalidade da ação— em direção aos dedos da examinadora.

—Já que vou descobrir tanta coisa sobre você hoje, acho justo que tenha um segredo meu, não?
Laeni não esperou uma resposta, que certamente seria malcriada, antes de começar as perguntas usuais.
Corinna teve de reconfirmar os seus hábitos, relacionamentos, condição financeira e, como sempre, foi obrigada a contar toda a história de como o seu pai a achou.

Os examinadores sempre se mostraram um pouco mais interessados nessa parte do que em todo resto. Com Laeni, não foi diferente. A garota poderia até arriscar dizer que foi até mais pessoal do que qualquer outro já se permitira ser.

A jovem não dava muito detalhes, porém. Apenas o necessário.

A examinadora desistiu de ir além depois da menina soltar o ar pelo nariz pela terceira vez.

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A deorum do cabelo cor de cobre havia sido promovida.

Marjorie.

Ela se apresentara pela primeira vez a Corinna, já que agora seria uma das examinadora de mentes. Marjorie, naquela primeira etapa, apenas verificava a veracidade das respostas dadas pelos Escolhidos.

A jovem nunca encontrou um sentido para aquilo visto que seria muito mais fácil eles só arrancarem a informação de suas mentes de uma só vez.

O senhor Lestat murmurara uma vez que teria algo a ver com a honestidade de cada um, entretanto, do mesmo modo ele também não via motivo real para aquilo.

Perda de tempo.

Como tudo que os deorum proporcionavam para os humanos.

Corinna fechou os olhos quando os dedos suaves de Marjorie tocaram cada lado de sua cabeça.

Sempre era como um rolo de filme passando em velocidade acelerada. As pessoas que ela conhecia e as conversas que ela tivera passavam por um instante na sua frente. Pela primeira vez, tudo aquilo parecera desacelerar. Focando em momentos da jovem com Kallien.

Desconfortavelmente a jovem tentou se desprender do toque da deorum, mas era como se seu próprio corpo não respondesse.

Seus olhos se abriram para uma Marjorie com um sorriso de quem sabia demais.

E ela realmente sabe, a menina concluiu.

A examinadora de mentes apenas deu um aceno de cabeça para Laeni que Corinna não conseguiu interpretar muito bem devido a sua visão que embaçava e voltava ao normal de segundo em segundo.

—Acho que é tudo que precisamos por hoje, Corin...

Os passos apressados da garota foi tudo que ela permitiu expressar antes de Laeni terminasse as despedidas.

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Marjorie percebeu o olhar o surpreso de Laeni quando entrou mais cedo na sala do Cadastro anunciando que foi promovida a examinadora de mentes.

Bem, agora estavam quites.

A irmã de Marjorie quase nunca saía da capital de Excelsior: O Setor Superior. Aquilo se devia ao fato de que Laeni era o braço direito do deorum e Governante mais poderoso do mundo em que viviam.

Então, se ela estava ali sendo uma das examinadores, exatamente durante aquele Sacrifício fora de época, algo estava acontecendo. E Marjorie tinha de saber o que era.

Era uma tarefa difícil. Laeni havia herdado do pai tanta persistência quanto a irmã. O que, na maioria das vezes, tornava o relacionamento das duas um tanto complicado.

Tão diferentes, mas tão parecidas ao mesmo tempo.

—Então você deu mesmo um jeito de ficar na minha cola?—Laeni disse como cumprimento.

—Não é todo dia que você se dá o luxo de conviver com pessoas inferiores a você.— a ruiva disse tirando os cabelos que caiam no rosto da irmã mais velha.—Tinha que aproveitar a oportunidade de passar um tempo com minha irmã favorita.

—Sua única irmã.—a morena acrescentou.

—Não é essa a graça?— Marjorie deu um sorriso que tentava beirar a inocência.— Seu senhor não aguentava mais sua companhia e a despachou para cá?

Laeni se permitiu recostar na cadeira e soltar um risinho:

—Infelizmente, sei tanto quanto você, irmãzinha. Então, não precisa fazer sala para mim com o objetivo de arrancar informações.

Marjorie suspirou fundo antes de tamborilar os dedos na mesa e murmurar:

—Como se eu fosse conseguir arrancar algo mesmo se você tivesse.— ela disse se levantando.— Espero que goste de trabalhar conosco e esteja conformada em perder. Você escolheu um vilarejo medíocre para se aliar.

—Só queria respirar um pouco o ar fora do Setor Superior. Não estou preocupada em ganhar ou perder.

A mais jovem estreitou os olhos por um instante.

Porque você não está aqui com nenhum motivo aparente para ninguém além de você e sua cambada, ela concluiu mentalmente, mas declarou:

—Veremos.

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