Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 8
Leviatã I


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

Os olhos de Rebeca são interessantes. Se me fitam por muito tempo, me obrigam a contar os meus segredos mais profundos; se desviam o olhar, me cativam a persegui-los. Olhos assim convêm muito a uma psiquiatra.

As palavras, de certa forma, são sempre as mesmas. Estou bem; consegui levantar um pouco a cabeça; troquei uma ou duas palavras com um colega de sala; fiz contato visual durante dez segundos... pequenos trunfos que não me são o bastante, mas que ela gentilmente faz questão de atribui-los muita importância. E eu acredito nela.

Os budistas creem que a mudança seja a única lei da natureza. Eu já acho que a mudança é a coisa mais assombrosa que existe.

Um dia, as palavras mudaram:

— Por que não quis tomar os remédios?

— O que você fez fora do seu dormitório?

— Como você se sentiu? Está pior?

— Como se sente perto da Luana?

Em seguida, eu indago:

— O que tem a Luana?

Ela reluta. Você já sabe o que eu penso sobre a relutância.

— Você não se envolve muito com uma garota... ou melhor, com alguém, já faz um tempo. Como você reagiu?

— Você acha um problema eu me envolver com garotas agora...?

— Não, não, não é isso! É que paixões são complicadas, Vince. Você precisaria me consultar... para não confundir as coisas, entende? Um flerte exige muita linguagem não-verbal. Enquanto você enfrentar dificuldades para decifrá-los, vai acabar se machucando com os resultados...

Fico em silêncio por um tempo. Não prestei atenção em nada que ela disse; espero não parecer pasmo do jeito que estou. Nem ruborizado como deveria estar.

— Eu não disse que estava apaixonado.

Ela que silencia dessa vez, e desvia o olhar. Jeong me ensinou alguma coisa de informática, incluindo alguns atalhos. Um dos mais famosos deles, Ctrl + Alt + Del, permite que o usuário visualize e solucione alguma instabilidade no sistema, uma vez que ele está travado ou algo do tipo. Bem, desviar o olhar é literalmente como pressionar essas teclas. Mediante muitas situações, o contato visual é o entrave perfeito.

Rebeca tem consciência disso tanto quanto eu. Depois de ter resolvido a instabilidade, ela reinicia o computador. Depois, é hora de abrir novamente o programa e seguir em frente:

— No que estava pensando quando resolveu sair?

— Eu queria estudar..., mas estava passando mal, então quis um pouco de ar fresco. Eu estava dentro da escola, mas num lugar que não pudessem me achar. Mas Luana e Jeong me encontraram. Eu devia ter te avisado, né?

Ela me encara por alguns segundos, digerindo as informações. Eu minto relativamente bem; e mesmo que ela saiba que eu estou mentindo, não pode fazer muita coisa.

— Seria bom. Mas fico feliz que esteja tomando esse tipo de atitude. Quanto a Luana...

— Qual o problema com a Luana?

— Vince...

— Eu não saí apenas com a Luana, como eu disse. Jeong também estava lá.

— Sim, mas... você nunca falou sobre ela antes.

Arqueio a sobrancelha, esperando que ela prossiga.

— E você fala dela como se fossem amigos há muito tempo.

Vejo-a respirar fundo e levantar-se. Qual o problema, Beca? Também acha isso muito estranho? Pois é. Ela está de costas, agora — posso ver seus cabelos castanhos presos de forma rudimentar. Mas não vejo seus olhos. Por que ela quer esconder os olhos?

— Vou receitar outros medicamentos. Talvez você fique mais sonolento no começo. Se ficar enjoado, tem outro para você. Se persistir, me avise, ok? Não vamos perder contato. Isso é o mais importante.

— Rebeca...?

Ela se volta, e fitando seus olhos, vejo-a piscar... antes da piscada, havia alguma coisa diferente naquele olhar. Agora está normal. Merda, Rebeca. Qual o problema?

— Desculpe por isso tudo...

Ela sorri. E as palavras voltam a ser as mesmas logo em seguida.

II

No momento folheio a agenda. Você talvez nem fique surpreso em saber que por mais que eu folheie, eu não consigo ver nada além daquele grotesco desenho. Meus colegas amordaçados. A assinatura do lobo. Manchas amarronzadas de sangue pela página toda.

Conforme as páginas passam, vejo algum movimento. Nada além do movimento de suas cabeças e seus olhos.

Sim, já procurei por eles, contudo não pude fazer uma investigação detalhada. Fico nauseado quando vago pela escola, tenho medo de me deparar com alguém. Talvez Jeong e Luana estejam nessas rodinhas de amigos, que eu fito como se fossem grotescos quadros de Goya.

As pessoas não têm rostos, (não que eu tenha visto) e as enxergo como deformidades ambulantes. Poucas pessoas tiveram o desprazer do meu olhar fixo e amedrontado... Jeong, e agora Luana, são algumas delas.

Talvez eles tenham sumido. Agora que estou me rebelando... sabe-se lá ao quê... eles voltaram a sumir. Escondendo-se.

Mas então, por que mantê-los em cativeiro? Não. Vamos supor que é só um desenho. Não quero pensar que estejam feridos. Porque... se isso aconteceu, foi por minha causa.

III

Movimento. Anoitece, e eu ainda fito a agenda. Talvez eu esteja com profundas olheiras.

Eles se mexem, não param de se mexer, creio que se debatam. Quanto mais se debatem, mais se afastam... por que fazem isso? Me pergunto desde que abri a agenda nesse maldito desenho. Por que se mexem tanto, se sabem que estão presos? Eles devem saber que eu estou olhando.

Até que vejo algo novo. Me permito respirar fundo quando vejo no canto da página um traço. Viro a página. Esse traço está crescendo, tomando forma. Viro. É um triângulo. Viro. Não... é outra forma geométrica. Viro. Um quadrado, seria? Viro. Um livro. Sim. Só pode ser. O livro começa a cair. Eles param de se debater quando isso acontece. É isso que queriam? O livro é a resposta?

Com os pés, Luana chuta o livro para o lado, de forma que ele vire, possibilitando que eu veja sua capa. Mas ainda não consigo ler o que está escrito — aproximo minha cabeça em vão, sem nada ver além de traços desconexos... mas conforme passo as páginas, tudo fica mais claro. Se trata de um exemplar de O Leviatã, de Thomas Hobbes.

Acho que nós dois sabemos para onde ir agora.

IV

Por vezes não gosto de me lembrar dos meus sonhos. Principalmente nessa noite em específico, em que meu sono era periodicamente interrompido por paranoias e lapsos envolvendo Luana e Jeong. Quando vão fazer falta do meu colega de quarto? Quando Manibus vai parar de fingir que nada aconteceu?

Aliás, deve estar estranhando que não contatei Manibus. Pois é. Quero mostrar que sei me virar sozinho. Sim, é uma ideia péssima... mas posso afirmar que foi uma ideia que adveio de mim, verdadeiramente.

Isso, para mim, é um trunfo.

Enfim... não lembro dos meus sonhos de agora. Sei que eles eram frios e úmidos. E o tom de voz do Lobo ecoa, me fazendo odiá-lo a cada segundo que se passa.

Acordo com o primeiro raio de sol a dar de encontro com o meu rosto. Levanto de sobressalto. Preciso sair daqui cedo para ir para a biblioteca e não me atrasar... ah, quem eu estou tentando enganar? Vou me atrasar de um jeito ou de outro.

Não preciso de outras distrações. Levo minha agenda, e saio. Espero que esteja me acompanhando. Eu não tenho como saber.

V

A biblioteca é o lugar mais belo do instituto, embora eu seja suspeito para falar. São vinte estantes gigantescas e repletas de obras bem-conceituadas. É o único labirinto em que eu me perderia por vontade própria; até o cheiro de papel velho me agrada nesse lugar. Vou em direção ao balcão. Engolindo seco, vejo que Jodi sorri para mim. Nosso querido estagiário é jovem, e pode-se dizer que eu desconfie menos dele que das outras pessoas, com a exceção de meu colega de quarto. Alguém que goste tanto de livros com certeza cativaria minha atenção.

— Bom dia, Vince! — Diz, sua voz irrompendo num raio de vivacidade. 

— Ah... oi... bom dia. Mas eu esqueci... esqueci de pegar um livro. E era para hoje.

— Sério? Vicente Filho deixando o dever de literatura para última hora?

Jodi o disse depois de explodir em risadas. Ele é a única pessoa que eu vejo tão animada a essa hora da manhã... ou talvez seja seu vício em cafeína, que eu identifico pelo hálito com facilidade.

— É... acontece, né? — Risos nervosos.

— Mas tudo bem. Não vamos enrolar mais, senão vai se atrasar... qual livro você procura?

— O Leviatã. De Thomas Hobbes.

— Hobbes... Vamos ver.

E desaparece na salinha atrás do balcão. Com meus dedos inquietos, vejo que de fato irei me atrasar. Não gosto de relógios, me deixam paranoicos... sempre me virei bem sem eles. Meu relógio biológico é a única coisa que funciona bem no meu corpo. Mas agora que estou cônscio de que irei me atrasar... não consigo saber que horas são. Isso está me desestabilizando a cada segundo. Segundos? O meu sangue começa a ferver. Não... literalmente ferver. Minhas mãos superaquecem. De meus dedos, irrompem fagulhas... fagulhas... eu sinto que o lugar vai pegar fo... — Vince.

Meus olhos se arregalam em sua direção. Vejo-o recuar.

— Está tudo bem, amigo?

— Ah... não, sim, claro. Só estou um pouco preocupado com o horário, só isso.

Ele sorri de forma singela, como que para me confortar da informação a seguir:

— Todos os exemplares do livro estão emprestados. Você não deu sorte, Vince. Sinto muito.

Não... merda. Merda!

— Não tem... nenhuma outra edição? — Vejo que estou gaguejando. Merda.

— Bem, temos apenas o exemplar reservado para o professor, mas isso não te ajuda muito.

Certo. Preciso aceitar que não há mais o que eu possa fazer. Isso vai me distanciar do surto... já estou muito suscetível a pirar. E isso não pode acontecer ali... é melhor que aconteça ali, certo? Do que acontecer na sala... onde há muitas pessoas... ah! Estou delirando. Eu não quero aceitar. Não quero...

Quando recuo, sinto um peso no bolso do meu manto.

A agenda. A maldita agenda. Deus a abençoe!

— Eu... eu tenho a autorização do Anistia. Para pegar esse exemplar.

Jodi, que já estava distraído, em seu computador, com coisas relevantes de fato, arqueou a sobrancelha na minha direção.

— Ahn... por que ele te daria isso?

Engulo seco. Preciso mentir muito bem aqui.

— Ele veio até mim particularmente. Disse que essa edição do livro tem algumas anotações que eu vou achar relevante. Sabe... eu mostrei interesse sobre.

— Não acha que ele está te favorecendo?

Meu coração para. Droga... isso seria bom demais... bom demais! Seria muito ótimo para estar acontecendo com Vicente Filho. Eu devia ouvir Rebeca. Isso é grandioso demais para mim. Mentir é para as pessoas normais... eu estou engasgando aqui. Eu menti para você, amigo. Eu não minto bem afinal de contas. Não conto histórias convincentes. Eu...

De novo, Jordi gargalha. Nunca me senti tão bem em ouvir suas risadas.

— Relaxa! Você é o melhor aluno dele, certo? Nada mais justo! Mas eu ainda preciso ver a autorização.

Permito-me respirar fundo. Peço para que Jodi espere um pouco. Dou meia volta, vagando em direção a uma das mesas, dispondo a agenda em sua superfície. Abro-a, e a primeira coisa que vejo é o desenho de Jeong e Luanna. Eles estão exaustos. Não, não posso me distrair com isso.... em verdade que a raiva que eu sinto em ver o desenho apenas me fortalece. O resultado: na página seguinte, está a autorização — impressa, com a assinatura fiel de Anistia logo abaixo. Retiro a folha do caderno, e entrego ao vívido bibliotecário, que a fita com cautela.

— Muito bem. Vince, eu só vou pedir que... certo, acho que posso confiar em você, né? Vou pedir que você mesmo vá buscar o livro. O depósito fica lá atrás; te darei as chaves. É que eu estou enrolado com algumas coisas aqui no balcão.  Pode ser?

O depósito... por que essa palavra me dá calafrios?

— Sem problemas. Não quero te atrapalhar...

Ele me agradece, e entrega o chaveiro.

Agora é hora de ir, meu amigo. Vamos ver o que O Leviatã nos reserva.

VI

Na porta do depósito poderia estar escrito: abandonai toda a esperança, ó, vós que entrais. A impressão não seria diferente da que eu sinto agora. Estou gélido por fora... incandescente em essência. Minhas mãos suam segurando tão firmemente as chaves. Insiro a primeira. Falha. A segunda. Falha. Pulo para outra. Falha.

Nem pense em se atrapalhar com as chaves. Nem pense nisso.

Tarde demais. Sequer lembro quais chaves utilizei. Vou tentando uma por uma novamente, até que chego de novo na chave que pulei.

A porta se abre.

Está escuro... a única coisa que vejo através da luz externa são os degraus. Tateio a parede em busca de um interruptor. Encontro-o, mas a luz não acende.

Isso é coisa sua, Lobo?

Desço as escadas lentamente, segurando a Agenda como se fosse meu próprio livro sagrado. O cheiro de poeira se acumula junto a escuridão quando finalmente adentro o depósito.

Então, eu ouço.
        O choro brando de Luana. Um choro demasiado baixo, fraco, cartáceo...

Tateando as estantes, encontro um foco de luz, atrás da última estante. Lá estão eles; estão cabisbaixos, sob a única luminária daquele lugar. O Leviatã ante os seus pés. Estão sozinhos? Não... não podem estar. O Lobo está aqui. Eu... eu quase sinto o seu cheiro. Não... eu sinto, de verdade. Esgueirando pelas sombras.

Quando Luana ergue o pescoço, sinto suas pupilas focarem em mim. Eu não sei se seu corpo trêmulo é exaustão, esperança em me ver, ou desespero...

Segundos depois eu vejo que é um misto disso tudo.

O hálito podre do Lobo invade minhas narinas com velocidade extrema. Meu corpo pende para trás, e eu só sinto minha cabeça colidir contra o chão, enquanto ouço as vozes de meus amigos num coro crescente de desespero por trás do pano que os amordaça.

Finalmente vejo o canino... e ele está em cima de mim. Em sua forma humanoide, suas garras me prendem contra o chão.

E o hálito podre sedia a sua voz afônica, como um eco vindo de uma caverna profunda:

— Olá, caro amigo...


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Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura e comentem suas impressões, se possível.


Arrivederci!



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