Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 7
Confronto


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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I

As pernas estavam bambas e debilitadas, o suor descia frio e os músculos estáticos. Ivre teve que me arrancar, abruptamente, dessa coreografia macabra, me puxando pelo braço, e me expulsando de meu leito.

As imagens, em minha mente, nunca mudavam: lá estava sempre, fixo, aquele focinho ensaguentado, e quase podia ouvir a sua voz seca e afônica, inumana. 

Eu estava ficando louco? Eu pareço louco para você agora? Me responda... pelo amor de Deus, me responda!

Luana tocou meu ombro, me despertando parcialmente. Meus olhos tardaram em focalizar suas pupilas, e a boca demorou mais ainda em conseguir proferir qualquer sílaba.

— O lobo — disse, entre gagues — está aqui. Ele não morreu.

Jeong e ela se entreolharam. Quase pude ouvir, dos dois, uma conversa telepática:

— Bem, Luana, nosso plano falhou.

— Sim, ele ficou louco.

— É uma pena mesmo. Deveríamos ter nos atentado a isso...

— Pode voltar para a casa, Vince. Sinto muito pelo transtorno. Amanhã, você se esquecerá que tudo isso aconteceu, e...

Os ecos ao meu redor ficaram intensos. Ah, sim, os ecos... existem desde sempre. Fora do corredor, a festa resistia, demorava a acabar, mas lá dentro, somente silêncio. E o silêncio, caro amigo, sempre me foi pretexto para as mais intensas paranoias. As vozes tornavam-se uma só, até que...

— Vince! Vince! Responda! Não fique me encarando assim.

— O quê...?

— Você está tremendo — Luana complementou — há uma coisa estranha nos seus olhos.

— Onde você viu o lobo? Não brinque com a gente a essa hora, por favor.

Brincar. Isso... brincar.

Então, eu sorri. E esse mesmo sorriso alargava-se, virando pouco a pouco um riso. Até que me vi gargalhando em frente aos meus dois colegas, que também riam, só que de forma tímida e recheada de um nervosismo latente.

— Desculpe... se vocês vissem a cara que vocês fizeram... sei que não devia brincar com isso, mas... — E dá-lhe mais uma torrente de risadas — não resisti! Não fiquem preocupados... sério. Eu estou bem.

— Isso é sério? — Perguntou Jeong — eu temo que tenhamos te prejudicado ainda mais.

Arqueei minhas sobrancelhas, tentando dar mais firmeza à minha ironia.

— No começo eu teimei, mas agora eu entendi tudo. Eu só preciso de um tempo para... digerir a responsabilidade. E talvez seja melhor... fazer isso sozinho. Em casa.

Luana ameaçou dizer algo, mas se absteve. Estranhados, eles assentiram.

Bem, como pode ver, tenho certas habilidades com a mentira. O meu cubículo é parte revestido de ansiedade, e parte de inverdades.

Luana e eu fizemos o mesmo caminho de volta, na escuridão da estrada, em sua bicicleta, mas pude cochilar o caminho inteiro, saboreando a primeira e a segunda certeza que eu tive naquele dia fatídico.

Eu tinha certeza que o lobo estava vivo.

E depois, tive certeza que iria mata-lo.

                                                          II

Então, chegamos no ponto em que nossos interesses talvez convirjam.

Eu acordo e sei que o lobo está naquela escola fatídica. O despertador denuncia: 8h10, sábado. Me espreguiço e Jeong não está aqui. Isso me gela a espinha; metódico como é, ele sempre estaria dormindo nesse horário, aproveitando o pouco tempo livre.

O que foi esse dia? O que foi toda essa tramoia? Por que ele fez tudo isso apenas para me arrancar da escola e ter todos aqueles delírios? Minha cabeça dói de incertezas. Porra. Jeong é a maior amizade que eu poderia ter, e, ainda assim, é algo tênue o bastante que eu não possa tocar.

Sempiternum. Quando saio do dormitório, o ar puro, incômodo, e meus cabelos ainda bagunçados, as pernas ainda bambas pela noite passada, e a sensação de ser um espião em minha própria rotina emergem.

A alguns metros da porta, olho para trás e penso que eu poderia voltar a dormir. Fingir que nada aconteceu. A dor de cabeça pela cruel abstinência de meus remédios também emerge; me vejo tentado a voltar, mas logo surge um cheiro acre e vicioso que me retira dos devaneios.

Anistia se aproxima de mim. Ele quer falar em particular comigo — bem, de certa forma, já está falando, e não é a primeira vez que ele faz isso. Ele e minha psiquiatra trabalham em conluio. Já entendi isso. Eles querem meu bem, não posso reclamar, porém... as palavras de Manibus ainda estão em minha cabeça. Eles também não querem que você acorde.

— Vince? Você está mesmo aí? — A voz está mais imperativa. Não sei por quanto tempo deixei-o falar sozinho.

— Sim. Desculpe, ainda não acordei direito... ahn... o que você quer? Desculpe, não ouvi.

— Não, não é nada demais... é só que, talvez...

Relutância. O primeiro sinal mais claro da omissão.

— É só que, talvez, eu tenha estranhado sua saída súbita ontem. Sei que passou mal. Disseram que foi um enjoo, mas ainda estou cético. Vince, pode me convencer de que não houve nenhuma recaída?

Alguns segundos se passam depois que sua voz se dissolveu no ar. Preciso de algo para passar segurança... algo que lhe convença.

Então, eu rio.

Merda, não. Cedo demais? Tarde demais? O riso não é a melhor opção? Estou suando frio. Amigo, me ajude. Aliás... não, só preciso que me escute. Preciso disso para organizar os pensamentos.

— Foi... pressão baixa. Queda brusca de temperatura, sabe? Sou um pouco sensível a essas coisas. Mas já estou me cuidando. Fique tranquilo, professor!

Então, dou um tapa amigável em seu braço. Ele encara a região estapeada durante um tempo. Um tempo que, a princípio, me assusta.

Anistia, mesmo tentando ser simpático, esbanja tamanha indiferença que torna difícil não teme-lo. Mas é esse cara que cuida de mim. E poucos se importam comigo tanto quanto ele, apesar do seu semblante impassivo... o que ele esconde de mim, afinal?

“Existem pessoas que querem que você continue entorpecido...”

— Entendi — ele disse, afônico, depois de um tempo. Pigarreou, prosseguindo — eu deixei um dever de casa para vocês. Página 142, exercícios 1 ao 7. E, cá entre nós, talvez uma dessas perguntas caia na prova.

E, com uma piscadela, dá meia-volta e tenciona partir. Porém, sinto que essa conversa não pode terminar dessa forma. Minha cabeça lateja, e não é a ansiedade... é a dúvida. Manibus, Luana e Jeong haviam instaurado a maldição da dúvida em mim. E aqui estou eu, questionando a pessoa que, se injuriada, pode me remover dessa escola.

Chamo-o.

— Vince? Algum problema?

— Professor — minha voz está trêmula. Não. Não é hora disso — por que vocês me impedem de sair?

Seus olhos, que eram geralmente absortos numa cratera de rugas, pela primeira vez se arregalaram, por trás de suas lentes. Era como se eu tivesse acabado de criar asas. Penso que citar minha psiquiatra vá fortalecer meu argumento.

— Eu sinto que eu posso melhorar caso tente sair da escola. Sabe... por vezes, converso com Rebeca à vezes, e digo que se por acaso eu tentar sair... se Jeong e Luana me convidassem...

— Luana? — Ele se aproxima, seu aroma invade minhas narinas, provocando um latejar ainda mais forte em meu cérebro — você tem falado com Luana?

Como você responderia essa pergunta, caro amigo? Eu não respondi. Silenciei, mesmo que minha língua estivesse inquieta dentro da boca. Os olhos prontos a irromper em lágrimas de desespero.

— O mundo é perigoso para você, Vicente. Precisa se preparar antes de sair.

— Como eu posso me preparar, se vocês escondem tudo que pode me fortalecer? Professor, me conte como eu era antes do ensino médio.

— Isso não importa. Você não tem que se preocupar...

— Com o passado. Certo. Por que eu não posso me preocupar com o passado se ele é uma névoa profunda atrás de mim, e eu nunca sei o que sairá dela?

— Você está delirando. Agora acho que respondeu minha pergunta. Você não tomou seus remédios.

— De fato, não tomei... estava fazendo algo mais importante.

— O quê?

...

Toda essa ansiedade pela dúvida me fez extrapolar. Sim, acabo de cometer um equívoco terrível. Me ajude. O que eu respondo?

É, caro amigo. Hora de voltar ao mundo real.

— Estava... estudando. Estudando o que você ainda não passou em sala. O senhor é muito lerdo quando passa conteúdo, se me permite dizer.

O silêncio, ah o silêncio...

— Por favor, rapaz. Controle-se. Não pode parar de tomar seus remédios assim. Se me permite, conversarei com a Rebeca. Precisamos mudar nossos rumos.

— O que você quiser. Me desculpe.

— Sem problemas. Te vejo na próxima aula, Vince. Melhoras.

III

Melhoras!

Volto aos meus aposentos. Entre as duas camas existe uma cortina, mas quando ela acaba, há ali um criado mudo. Jeong gosta de discrição — e eu também.

Dessa vez, abro ambas as gavetas, uma para cada, e despejo tudo em cima de minha cama. Lá estão meus remédios; hora de tomar uns cinco deles. Melhoras!

Jeong não tem nada a não ser anotações criptografadas sobre o curso de informática dele. Ele é maluco... ou muito suspeito. Melhoras! Se ao menos soubesse decifrar algo do que está escrito, saberia o que ele planeja fazer.

Sim, eu sei. Eu devia confiar nele. Ele é meu amigo, certo? Eles querem me libertar... eles querem que eu salve uma dimensão paralela de uma invasão extraterrestre. Melhoras! E eu sou importante a ponto de não quererem minha presença lá. Melhoras! Eu não sabia que Luana existia até ontem. E ela me trata como se fôssemos melhores amigos. Melhoras!

Por que desejar melhoras? Nada fiz senão tomar remédios esse tempo todo. A melhora seria não sofrer em vão. Seria conseguir atravessar os portões da escola sem surtar. Seria olhar para as pessoas e enxergar algo além de borrões. Ser alguém normal, pleno, feliz.

Estou ofegante.

Respire.

Inspire.

Respire.

Melhoras.

Inspire.

Não há razão para eu confiar neles.

Organizo novamente as nossas coisas, guardando tudo em suas respectivas gavetas. Mas quando vejo...

Ao lado do abajur, está a minha agenda. A fatídica agenda. Como pude ter esquecido esse objeto aqui?

E meu coração acelera, parte porque já estava inquieto, e parte porque sei que vou encontrar algo novo assim que abrir. E qualquer coisa nova, agora, vai me apavorar. Eu sei disso.

Abro na data de hoje: 12 de fevereiro, e o conteúdo dessa página me faz gritar e arremessar a agenda contra a parede.

É um desenho. Jeong e Luana estão lado a lado. Amarrados. Amordaçados. Os olhos arregalados e irrompendo em lágrimas.

Entre eles, há a marca de uma pata.

Uma pata canina.


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Notas finais do capítulo

E então?
Se gostaram, comentem suas impressões, críticas e/ou revoltas.

Arrivederci!



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