Sempiternum — A Maiêutica das Estrelas escrita por Cervello


Capítulo 9
Leviatã II


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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I

Beca está diante de mim e me sinto pequeno; eu sei que nunca me senti tão pequeno assim, pois não me lembro de nada que senti até então. Só dos seus olhos felinos e suas pupilas fortes como um redemoinho que me atrai, ao passo que o medo me afasta.

Ela sorri, impassível. Meu corpo inteiro treme, inclusive os dentes contra eles mesmos, num show de horrores odontológico. Não consigo olhar para nenhum outro lugar por muito tempo, senão as minhas próprias mãos e pés.

— Vamos, não tenha medo — ela permanece sorrindo — eu não mordo.

Eu não mordo. Ela ri da própria piada, como se isso me confortasse. Ela sabe que o meu medo não vem do mal físico que ela pode me fazer. Ao menos deveria sabe-lo; é uma maldita psiquiatra, não é?

Ela vem até mim. Parado na porta, ameaço recuar.

— Tudo bem, tudo bem... vamos manter essa distância. Mas eu preciso que você converse comigo, ok?

Tento menear a cabeça. Eu consigo, trêmulo, e ela entende o sinal.

— Muito bem. Pode mexer a cabeça por enquanto, se preferir assim — Beca senta-se novamente atrás da sua mesa. Disposto na mesa, está um laptop. Ela anota alguma coisa por alguns segundos e logo em seguida volta a mim.

— O que você está sentindo, Vince? Seus professores me disseram o que você tem... mas eu quero ouvir de você.

Eu tento abrir a boca, minha língua caída no chão de minha boca como que anestesiada. Eu a fecho novamente.

— E-eu... e-eu... n-na... n-na...

— Ei, ei, não, está tudo bem — ela se precipita quando vê uma lágrima percorrer o meu rosto — ninguém aqui vai te julgar, certo? Ninguém aqui vai rir de você. Você está num lugar seguro agora.

Meneio a cabeça novamente. Ficamos em silêncio por um tempo. Paciente,  ela se permite ouvir apenas o som da minha respiração veloz e desesperada.

— Do que você tem medo, Vince? Quando sai de casa.

A pergunta me surpreende um pouco, mas me encoraja a formular melhor as palavras. Respiro fundo. Me acalmo.

— Eu tenho medo de...

— Você tem medo de ser desaprovado, né?

Levanto a cabeça, quando percebo sua voz tão cortante. O que está havendo?

— Pois bem. Você será desaprovado. Afinal, você é um fracassado.

— Você fracassará em tudo que fizer, Vince...

— Seus amigos vão morrer. E você assistirá isso... você...

II

— Você assistirá suas vísceras tocarem as vísceras das pessoas que são especiais para você — eu me debato, tentando me livrar daquelas garras. Ele me prende com mais força, com suas presas tão próximas do meu ouvido — você pensou que poderia me matar. Me humilhar daquele jeito. Mas você não pôde, e não poderá agora — ele gargalha — você não botaria fogo nesse lugar, não é, Vicente?

 Não botaria, de fato. Essa é a armadilha perfeita. Eu elogiaria a engenhosidade deste inimigo..., se não sentisse um ódio latente se apoderar de mim. Ele provavelmente fareja este ódio, tornando-o ainda mais crescente.

O que foi? Eu sinto os seus músculos se enrijecerem, pequeno Vince..., mas você não fará nada, não é? Não conseguirá fazer coisa alguma!

Ele então se levanta, levando o meu corpo junto a ele. Sinto cada parte minha ser arremessada contra uma das estantes, que cai no chão junto a mim. A dor toma seu lugar logo depois, como uma porrada em meu ombro. Comigo caído no chão junto aos livros e pedaços da estante, ele vem até mim — as vozes de Jeong e Luana num coral amargo de dor e desespero.

— Como — digo, entre tosses — como ninguém viu que estavam aqui?

Ouço-o gargalhar novamente.

Você logo entenderá. É engraçado, você não se lembra de nada mesmo. De nada! Ah, isso é tão divertido...

— Por que isso seria divertido? Seu filho da...

Ele salta sobre meu corpo caído. Eu grito, interrompendo minha praga, e logo em seguida ele explode em risos. Suas garras roçam o meu rosto de forma lenta, e como sempre aquele mesmo hálito.

Tome cuidado, Vince. Talvez eu fique enfurecido... e não deixe mais você saborear os seus últimos momentos de vida... ou você ainda não percebeu? Ainda não percebeu que você está perto do inferno?!

Meu corpo é chutado enquanto ele profere essas palavras. Sou jogado contra uma outra estante, só que de forma lateral, o que é ainda pior.

Na verdade, você chegou aqui muito cedo. Gostaria de saborear mais um pouco a sua angústia. Ver você andar pela escola, tremendo as bases, não sabendo se seus amigos estão vivos ou não... ah... isso chega a me deixar excitado...

— Você... é nojento...

Sim, eu sei, Vince. Eu sei que sou nojento. E eu quero que saiba disso enquanto estiver morrendo... eu ainda não estarei satisfeito — ele se levanta, e virando as costas para mim, vai até Luana, que geme. Não, não posso deixar...

Tento convocar as chamas novamente, mas elas não saem das minhas mãos. Merda, Vince... esses livros não são mais importantes que seus amigos... o que está havendo? Não, não adianta conversar comigo mesmo. Nem conversar com você. Quando penso em me precipitar em direção ao Lobo, vejo-o curvando-se na frente da garota, e agarrando o livro que está diante dela, para logo em seguida arremessa-lo contra mim.

É por isso que está aqui, certo? Ora... como seus amigos são espertos! Espertos... espertos... e asquerosos! — Quando ele levanta sua mão contra a garota, eu jogo o livro com toda a minha força, acertando em cheio sua cabeça. Ele continua imóvel, na mesma posição, como uma estátua.

O canino cai em silêncio. Um silêncio assustador.

Que é cortado pelo som de uma criatura enfurecida pelo instinto, que se aproxima com tudo.

III

— Eu tenho medo... dos olhares.

— Os olhares? — Ela pergunta, e eu ouço real interesse em sua voz.

— É. Os... os olhares... machucam. São como pontadas. Eu sin... sinto um frio... um frio...

Enquanto abraço meu próprio corpo, ela diz que eu não preciso continuar. Mas não adianta, já estou submerso... se eu não confiar nela agora, me arrependerei; se eu confiar... não sei o que pode acontecer...

— Você deve estar com muitas dúvidas. Eu entendo. Vince, nada que for dito aqui, daqui sairá, entendido? Eu tenho um trato a cumprir. Mas você é a minha prioridade. Sei que palavras não são muita coisa, mas com o tempo você verá que eu sou a pessoa em que você pode confiar.

Faço que sim com a cabeça..., mas ela entende que esse gesto foi mais fraco que os outros.

...

— Vince? Vince? Você estava indo bem... você nunca chegou tão longe.

Ela diz, perto de mim. O meu corpo jogado no meio dos paralelepípedos, ao ar livre, no meio do trânsito, há metros do meu dormitório. Eu sei que os transeuntes me observam. Sinto que Rebeca se desculpa com a cabeça, quando um olhar mais incisivo surge, fitando a pobre criatura que não consegue se expor ao olhar público.

— Você quer voltar? — Pergunta.

Assinto. Mesmo depois de semanas de tratamento, ainda não consigo fazer isso... o fracasso me prende ao chão mais que a própria gravidade.

...

A pele de Beca é macia; sei disso pois ela segura minha mão com força. Meu corpo é baixo, curvado, e o dela é ereto, vigoroso. Pareceríamos namorados não fosse esse detalhe..., mas as pessoas devem pensar que somos mãe e filho.

— Uma hora, Vince — ela diz — você precisará ir para a aula sozinho. Vou precisar que você encare esse fato. Não se trata só de medicações... você precisa fazer alguns progressos sozinho.

Ela sente o meu desespero, e pede que eu sente frente a árvore. Ah, aquela árvore... era nossa árvore favorita! Ou a minha árvore favorita... sua sombra projetava o único conforto fora o meu quarto; tornou-se minha área segura.

Ela se senta ao meu lado, e o seu olhar pede que eu levante a cabeça. Positivo e operante.

— Você terá um colega de quarto — se as palavras dela até então me eram doces, essa me atingiu como um chicote. Ela vê minhas pupilas se dilatarem de medo, e eu sinto seus dedos entrelaçarem os meus com mais força — ei, não se preocupe. Ele não vai te fazer mal. Ele já foi meu paciente, e eu sei que vocês se darão bem.

Engraçado, essa informação normalmente me confortaria. Contudo, ela me desespera.

...

Num dia, eu acordo e vejo uma segunda cama. Noutro eu não durmo, e vejo um fantasma de cachos dourados surgir na porta durante a madrugada. Seu corpo é tão ou mais magro que o meu, e eu nem sei como ele carrega uma farta bagagem.

— Oi — a sua voz é um misto de grave com jovial, digna de um púbere — você é o Vince, certo?

No que eu desabo em minha cama, me envolvendo em minhas cobertas, ignorando-o. Não. Aquilo não poderia acontecer... eu deveria ao menos sentir que estava sozinho em algum lugar.

Ele não parece surpreso.

— O meu nome é Jeong — ele diz, dispondo uma das mochilas em cima da cama — fica tranquilo, eu não mordo.

Consigo ouvir sua risada seca autorreferente.

IV

Eu jogo a minha manta no chão do depósito quando vejo que ela já está completamente rasgada. Vejo que o Lobo, muito próximo de mim, se atrapalha com ela.

As chamas em minhas mãos surgem e se dissipam no mesmo instante, tamanha é minha insegurança. Se eu disparo, incendeio todo o lugar. Se não disparo, eu morro. É, eu sei que isso não é um dilema de verdade, então vamos complementar: se eu não disparo, Jeong e Luana morrem logo depois de mim.

Deve estar sentindo falta da voz e do sarcasmo do Lobo. Eu também sentiria, sabendo que agora só ouço rosnados e o som da saliva borbulhando entre suas presas.

Corremos em círculos, mas eu não corro em vão. Estou pensando em algo. Organizando esses pensamentos que são como moscas se divertindo num monte de lixo; primeiro passo: não posso deixar que minhas roupas queimem. Você logo vai entender; retiro minha camisa, despindo completamente a parte superior do meu corpo, só que...

 Não tarda que não haja mais espaços pelos quais eu possa correr... e em um salto a criatura vil consegue me pegar, chocando minhas costas contra o amontoado de madeira e livros que se tornara o depósito.

Bellum omnium contra omnes — a sua voz grotesca ecoa um latim quase perfeito — sabe o que isso significa?

Eu sei, mas ignoro a pergunta.

A guerra de todos contra todos. É o que o livro que te trouxe aqui diz... não poderia ser mais conveniente! — Após dizer isso, ele arranha com força o meu peito. Não posso deixar de notar como ele está ofegante. Sim... ele não deve comer há um bom tempo. Se eu ao menos conseguisse... — Homo homini lupus! — Mais um arranhão, dessa vez ele rasga o curativo em meu abdômen, me arrancando um grito horrível.

Ouço a porta se abrir, e minha visão periférica consegue identificar Jodi, e um alívio me acomete quando vejo seu semblante espantado. Eu serei salvo, penso de imediato, a respiração tão ou mais ofegante que a do Lobo. Nenhum sacrifício será necessário... não mais.

Porém, esse alívio evanesce quando percebo que meus pobres colegas amordaçados permanecem na mesma angústia, e o Lobo ri.

— O que ele fez...? — O bibliotecário diz para si mesmo, com os olhos molhados, ante o depósito praticamente demolido.

— Jodi! Eu estou aqui! Eu estou aqui — ele não me ouve, e nem o gargalhar do Lobo. Me permito chorar de desespero, no que sinto a língua áspera e viscosa da criatura roçar o meu rosto, saboreando as lágrimas.

Agora você entende? — Ele zomba, enquanto Jodi dá as costas e corre, indo denunciar o ocorrido — ninguém consegue nos ver aqui. É por isso que seus estão aqui há tanto tempo. Agora... ninguém consegue mais ver você! E quando a magia se dissipar... já será muito tarde. Eu farei questão. Você será apenas um cadáver putrefa...

O Lobo se interrompe em um ganido quando sente um calor súbito e altíssimo em sua barriga.

Eis uma dúvida conveniente:

Se eu deixo fluir a magia em meu sangue, produzo chamas. Contudo, e se a fonte da explosão está abafada, apertada? E se ocorre uma implosão?

Uma esfera de chamas surge entre a minha barriga e a do Lobo. Distraído demais com Jodi e minha aparente surpresa, não viu que meu braço deslizava, ficando na altura de nossas barrigas. Quando ele percebe, e tenta esquivar-se, já é tarde. Minha outra mão empurra suas costas cansadas contra mim com toda a força que possuo. As chamas ardem os nossos abdomens, e suas presas não conseguem alcançar o meu pescoço, e suas garras, vãs, arranham a madeira da estante em que estamos caídos.

Meu choro pouco a pouco se transforma num riso. É como dizem. Quem ri por último, ri...

Tentando se livrar de mim, não tarda que suas presas atingem minha cabeça. Não tarda também, que eu comece a ouvir o som do mar, nos intervalos em que seus dentes envolvem o meu ouvido. Meu riso se torna um gemido de dor.

Não. Eu preciso aguentar. Dê-me forças, amigo. A esfera de fogo continua crescendo. Não sei se me atento a dor em meu ouvido, ou a crescente ardência em minha pele, que se torna dormente em volta da ferida.

Quando o crânio abjeto do Lobo se separa do meu, suas presas estão penetrando firmemente a minha orelha, separando-a do resto do meu corpo em um fio rubro que banha os livros. Sou obrigado a disparar.

A bola de fogo perfura o seu estômago, me banhando em um sangue negro e com um cheiro azedo, enquanto ouço seu último ganido, que cessa na mesma velocidade que suas tripas carbonizam ao meu redor. As chamas se dissipam no momento que o buraco é feito atrás das costas da criatura.

Tonto de dor, empurro o cadáver do Lobo para longe de mim. Vou até meus amigos — que agora já não gritam por trás da mordaça —, a mão grudada em meu ouvido, que se tornara apenas um orifício em meu corpo, lambuzando minha mão em uma cor rubra.

Sorrio, tentando tranquiliza-los, mas o sangue passando pelo meu rosto faz o efeito contrário. O desespero deles, no entanto, não é exclusivo... atrás de mim, ouço a porta se abrir —  junto ao cheiro de café que Jodi exala — e pessoas entrarem, correndo em minha direção.


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Notas finais do capítulo

Homo homini lupus, do latim, "o homem é o lobo do homem", é a citação mais recorrentemente atribuída a Thomas Hobbes, autor d'O Leviatã.

Comentem suas impressões se quiserem, e arrivederci!



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