Kaidan 2068 - Contos em Cyberpunk escrita por Sabonete


Capítulo 6
O Véu e o Cavaleiro (parte 1)


Notas iniciais do capítulo

Esse é um conto longo, por esse singelo motivo dividirei ele em dois. Sendo assim, espero que vocês gostem, é uma história bem interessante!



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[Silêncio, temperatura confortável, segurança, um lugar para se chamar de lar]

O cômodo estava totalmente escuro, apenas as pequenas lâmpadas indicadoras de energia, dos equipamentos ligados, davam alguma ideia do que havia lá.

Um som chamou a atenção de alguém, que desperta de um sono pesado. Quando abre os olhos, percebe que o lugar antes completamente escuro, agora é iluminado por um tom azulado, que vem das várias telas de um set-up de computadores. Dados são mostrados na tela.  Seus olhos são guiados pela informação e o silêncio permite que o som do fosforo acendendo o cigarro seja ouvido em alto e bom som.

As informações que ocupam todas as telas terminam em uma pergunta: "O Esquadrão 077 aceita a missão?".

Um gato salta sobre o teclado, ele é branco com manchas caramelo. O animal caminha até a beirada, seus olhos são cinza e em sua coleira está seu nome: "Vermelho". O animal mia, um mão calçada por uma luva escura afaga sua cabeça. A luz se apaga.

[Ventilação Abafada; Leve cheiro azedo; Iluminação pública falha; Luzes e letreiros ofuscantes]

O Conjunto Subterrâneo 051 fica ao norte da maior megacidade do mundo, Kaidan. Ele é conhecido por dois motivos, o primeiro é por ter a subsede de uma estação de tratamento de água, o que garante o recurso com qualidade muito a cima da média mundial; o segundo, é que lá é um dos poucos lugares onde os interesses dentro e fora da lei se cruzam e caminham lado a lado. A sec-Unity, a empresa de segurança que age como a polícia em Kaidan, aceita a presença do grupo Olhos Negros, terroristas - chamados assim pelo próprio diretor de Segurança, o chefe da Sec-Unity. Há muitos interesses, há muitas necessidades a serem saciadas, e cada lado da moeda pode oferecer algo que faz a engrenagem continuar a girar.

O CS - 051 têm por volta de 30 mil habitantes, abrigando todo o tipo de pessoas, que provavelmente só tem em comum o fato de serem Baixos. O Posto da Sec-Unity local fica exatamente em seu centro, o ponto mais próximo de todos os outros, com uma via expressa para a Estação de Tratamento. Graças a esse posicionamento estratégico é possível ver patrulhas circulando a todo o momento, quando não as próprias USA caminham livremente, dando a sensação de segurança que os locais precisam. A que todos de fora acreditam que há ali. Juntamente com as patrulhas e as unidades autônomas, estão os informantes dos Olhos Negros, que caminham pela sombra, sempre de olho em onde estão os "canas", para nada ficar muito a vista deles. O Conde mora lá, e é graças a ele que o acordo com a Sec-Unity está de pé. Drogas, prostituição, tráfico de informação e armas acontecem a poucos metros dos agentes, que apenas não devem ver as transições acontecendo - é esse o trato.

O complexo se liga a superfície por um túnel extenso e por um elevador industrial de grande porte, que é geralmente utilizado para cargas específicas, normalmente ligadas a Estação de Tratamento.

As câmeras de segurança podem detectar veículos suspeitos no fluxo normal, mas nos momentos de pico são regidos pela lei de trafego intenso, o que quer dizer que os veículos devem ser ligados no piloto automático, sendo guiados por suas triangulações via satélite. Eles percorrem em alta velocidade as autovias em perfeita harmonia. Há três horários de pico instaurados em toda a Kaidan; o da manhã, o da tarde e o da noite. A velocidade impede que os sensores avaliem o conteúdo dos veículos, o escaneamento de qualquer objeto é impreciso, com taxas de sucesso inferior a de 28%.

Caminhões de carga, ônibus autônomos, carros de passageiros, transporte privado, motos de passeio, tudo, absolutamente todos os veículos automotores se organizam em um balé de luzes e sons, enquanto pessoas caminham calmamente em passarelas, túneis e esteiras, quase ignorando a normalidade dos horários de pico nas autovias.

Vias e ruas secundárias não estão incluídas nessas leis, mas sim em outra, a de privacidade, sensores e escâneres não são permitidos ali, apesar dos proprietários dos veículos terem autonomia para escolher se pilotam ou não suas posses. O transito é tranquilo, os automóveis refletem as luzes coloridas dos letreiros, redirecionando a claridade de forma difusa, criando formas, novos padrões de imagens.

Um prédio de escritórios com a faixada coberta por espelhos que transmitem vídeos em terceira dimensão ilumina toda a esquina leste da Estação de Tratamento em diferentes tons de azul. Os carros circulam sem que seus usuários notem a viatura da Sec-Unity estacionada em um beco obtuso ou, os olheiros da gangue que domina do CS - 051. Não há comunicação entre os dois antagonistas, mas cada lado sabe da posição e das intenções do outro. Estão apenas observando, analisando e esperando, qualquer sinal que fuja do padrão de normalidade para então avisarem a seus superiores, esperando que suas ordens sejam dadas.

Um veículo de transporte médio se aproxima da esquina leste. O modelo normalmente é usado para transportar equipamento eletrônico, seus três eixos e seis rodas não fazem nenhum som - seu motor elétrico foi projetado para isso, e ainda mais, aos eixos ligados as rodas geram energia cinética que é transformada em eletricidade pelo próprio motor; é um carro autossuficiente. A cabine onde o motorista fica está totalmente lacrada, os agentes de segurança logo reparam nesse detalhe, enquanto o veículo chega mais perto, os Olhos Negros parecem não perceber nada.

Uma viatura da Sec-Unity corta o cruzamento anterior à esquina leste, do ponto de vista do veículo de transporte podem-se ver dois agentes, um na direção e o outro no banco de carona, assim como uma U.S. A acoplado na traseira em modo de espera. Os agentes nem reparam no veículo - não parece haver uma comunicação entre a equipe estacionada e a patrulha. Os Olhos Negros ainda não parecem ter percebido nada.

Na esquina leste, há uma portaria, nela há o numeral 09 - a nona entrada para as instalações da Estação de Tratamento. Um androide recebe a todos, ele é programado para fornecer informações básicas de forma gentil. Os agentes lá fora o apelidaram de "Jhonny Boy". Todos os dias eles vão ter conversas com ele, aparentemente gostam de entender a perspectiva de um robô, ou apenas vão para tirar sarro da máquina, que não é muito procurada já que aquela portaria, das onze, é a menos usada.

Um dos agentes desce de sua viatura e vai até o encontro do androide, o que chama a atenção dos Olhos Negros do outro lado da rua.

Hey, Jhonny Boy, como vai essa força? — Diz em tom jocoso o agente, que leva o nome de Rodolpho, em seu uniforme. Ele é um Sargento.

Olá, senhor agente. Aqui vai tudo muito bem, e com o senhor, como vai? — O androide reconhece a assinatura digital no uniforme da Sec-Unity que o sargento usa, e rapidamente entra em modo aberto - aquele que dará todas as informações disponíveis para o agente de segurança.

É Jhony, tuuuudo normal. Exceto.. a chefia programou algo e esqueceu de nos dizer? Hãm? — O agente bateu três vezes com seus dedos na cabeça do androide. - Tem um carro vindo pra cá, um van, e ela me parece estranha, você pode me confirmar se tem alguma entrega.. algo assim?— Falou virando-se para o portal de entrada, ao notar que os faróis do veículo de transporte começavam a iluminar a esquina.

Veículo de transporte desconhecido, Senhor. Não há registro de entregas, carga ou descarga. Gostaria de requisitar algum pedido para meus superiores? — Respondeu o robô dando dois passos para frente, buscando entrar no campo visual do sargento.

Do outro lado da rua três homens parecem jogar algum jogo com dados, uma banqueta com um tabuleiro em cima é a plataforma da brincadeira. Eles fumam, se vestem como Baixos, roupas largas, camisas sem manga, o local onde estão é especialmente quente, estão ao lado de um exaustor da refrigeração do prédio que se ergue a cima deles.

A mochila que um deles carrega é despretensiosamente aberta ao contato visual com um dos outros jogadores, este, que parece analisar friamente o movimento do sargento que acabava de entrar na portaria nove. Seus corpos iluminados pelo prédio de escritórios tornam-se pontos brilhantes da perspectiva do sargento dentro da portaria e do agente dentro da viatura, mas os três membros dos Olhos Negros tem suas visões ofuscadas pelo intenso farol do veículo de transporte que se aproxima ainda mais.

O agente na viatura apenas lê as mensagens enviadas pela central, não há informação nenhuma sobre atividade suspeita, apesar do estarem no meio do horário de pico. Também não é informado se alguma entrega era programada para aquele horário. Ele está em dúvida do que fazer, de como agir. Abotoou seu Duo x4, colocou seu capacete tático e pegou sua arma, verificou se a trava estava aberta e verificou se o pente estendido com 45 cartuchos estava encaixado.

Chefe, o veículo reduziu a velocidade, ele vai parar bem na frente da portaria. Estou aguardando. — Falou pelo comunicador instalado em seu cérebro, que o ligava diretamente no canal do Sargento Rodolpho, dentro da portaria nove. Suas palavras soavam seguras, deixando claro que era um agente treinado.

O monitor da viatura mostrava a distância do veículo, sua velocidade e o possível ponto de parada, baseado nessas informações.

Se você não sabe que porra de carro é aquele que ta parando ali fora, porque aquela merda ta parando ali? Hein Jhonny Boy? — O sargento perguntou para o androide sem sequer virar-se para ele. A reação da máquina é curiosa, visto que a pergunta não possui uma resposta, fazendo o robô de mente limitada parar enquanto processa uma resposta aceitável para o oficial a sua frente.

O veículo de transporte para exatamente onde o sistema da viatura indicou ao agente em seu interior. Os Olhos Negros sacam suas armas com calma, às escondendo nas sombras - são submetralhadores da rajadas rápidas, armas que não são comuns para as gangues. Enquanto isso o sargento saca sua pistola, se esconde pegando como cobertura uma larga pilastra de sustentação do prédio e coloca seu capacete tático.

O androide permanece parado, apesar de acompanhar a movimentação do Sargento. Ele ainda está buscando uma resposta aceitável para a autoridade que se esconde de um possível perigo.

O vapor residual do motor elétrico escapa por tubos de escapamento, dois de cada lado do transporte que acaba de parar.

Os membros da gangue, o agente na viatura e o sargento dentro da portaria nove observam e aguardam algum movimento. As pessoas que caminham pela rua estranham a situação, principalmente quando notam que os Olhos Negros estão ali - alguns saem correndo, esperando que algo saia do controle.

BAAAM! — O som estridente do technometal estrondou o CS - 051 por vários quarteirões, tendo como centro o veículo de transporte. Todo e qualquer aparelho capaz de emitir sons complexos começou a reproduzir a música ao mesmo tempo.

A comunicação da viatura é interrompida pela música, apenas as mensagens de texto parecem estar ativas, porém quaisquer formas de contato entre agente e sargento estavam perdidas. Os olhos negros se assustam com tamanha barulheira e correndo desordenadamente sacam suas armas e apontam para o veículo.

Dentro da portaria o Sargento apenas desliga seus canais ainda atordoado. Ele consegue ver que o androide parece confuso com a situação, seus movimentos de cabeça indicam que ele procura a fonte da música, mas as diversas fontes confundem seus sistemas.

Enquanto a atenção dos demais é focada na música a porta traseira do veículo começa a se abrir, mostrando seu interior oculto pela escuridão.  Os segundos se passam e um membro dos Olhos Negros circula a van lacrada, até conseguir visão de seu interior. A figura que se movimenta na animação exposta pela fachada refletiva do prédio de escritórios direciona toda a claridade para a traseira do veículo, tornando a visão do seu conteúdo clara para o membro.

O homem de altura mediana e corpo frágil da um passo para trás ao mesmo tempo em que aponta a arma para o monólito de metal que surgem para sua visão. A maquina a sua frente é enorme, pelo menos dois metros de altura, sua cor é difícil de distinguir, uma mistura de verde e cinza, carrega em um dos braços um fuzil eletromagnético, que está apontado para frente, no outro um escudo de corpo - com uma pintura que difere do resto; dois machados cruzados, pintados em vermelho.

SOOOOTNSZ!

O som do disparo é alto o suficiente para alertar os mais próximos, o projétil de doze centímetros é acelerado a uma velocidade oito vezes mais rápida que a do som, ele atravessa o corpo do gangster como a faca quente atravessa a manteiga e se choca contra o prédio de escritório causando uma pequena cratera de impacto.

O agente na viatura se assusta com a visão de um ser humano sendo partido ao meio, além do clarão produzido pelo disparo e pelo som do projétil ultrapassando a velocidade do som. Ele imediatamente aciona a U.S.A, que começa a "acordar" do modo de espera.

Os outros dois membros da gangue, de suas posições, começam a atirar no veículo que é perfurado por dezenas de balas. Suas armas não produzem um som alto o suficiente para que a música reproduzida por todos os lados sejam abafada, como a o disparo da arma eletromagnética faz. Por isso, eles não são capazes de ouvir os passos pesados da maquina que desce do veículo e se move na direção em que os dois estão.

Que porra é essa!? — Grita um dos homens armados, mas apenas o usuário da máquina o escuta, sua voz é isolada perfeitamente para ele.

Na viatura, o U.S.A se ativa, e se ergue da traseira do veículo. O agente envia mensagem pedindo reforço para o que ele classifica como "atentado terrorista, com uso ilegal de armas para conflito extremo" - a lei não permite o uso de armas eletromagnéticas sem que seja decretado estado de "conflito extremo".

A maquina demonstra ser blindada quando os dois Olhos Negros começam a disparar até seus cartuchos acabarem e, não danificar nada a não ser a pintura do escudo que é do tamanho de cada um deles.

SOOOOTNSZ!

SOOOOTNSZ!

Dois disparos consecutivos, dois estrondos que ecoam sobrepujando o technometal no último volume que implode janelas aqui e ali. Dois homens sendo partidos em pedaços, duas outras pequenas crateras de impacto em dois prédios diferentes.

O agente agora pode ver o responsável pela carnificina, é uma unidade pesada de combate, uma armadura tecnológica que apenas os militares de maiores patentes têm acesso, as Heavy Suits. Trajes feitos para a guerra, impenetráveis, fortes, velozes, mortais. O U.S.A já está próximo da Heavy Suit, não há como o agente ordenar a sua volta - são poucas as coisas que podem enfrentar uma tecnologia bélica tão macabra quanto um traje blindado como aquele e, infelizmente, um robô policial desenvolvido para cuidar de transgressores com armas pré-crise, não era uma delas.

A unidade de segurança autônoma ataca o braço que carrega o fuzil eletromagnético. O impacto é oco, repelindo a mão do U.S.A para cima mas não movendo o pulso da Heavy Suit.

A diferença de tamanho fica clara; o U.S.A tem 1,93 metros, ele não chega a altura do ombro da armadura de batalha. A cabeça/capacete se vira lentamente para o autônomo, encarando-o, enquanto o robô saca, com seu outro braço sua metralhado de ação rápida e começa a disparar no flanco da armadura, que não estava protegido pelo escudo.

Nada. Aquele equipamento foi desenvolvido para resistir a impactos balísticos de alto poder de fogo, assim como a calibres pequenos de armas eletromagnéticas. O U.S.A não tem poder suficiente para para-lo, nem sequer para avaria-lo.

Com um salto, o agente aproveita a reação da Heavy Suit e busca atingir o visor da cabeça, com o objetivo de cortar a visão do usuário. Seus disparos são precisos, demonstrando que seu treinamento foi muito bem feito, principalmente quando se tem essa qualidade de tiro em movimento, como o agente teve.

Quatro disparos perfeitos, fruto dos implantes cibernéticos que aumentavam sua velocidade de reação e noção de distância. Mas, em 2068 e, principalmente em Kaidan, a tecnologia mais avança ganha.

SOOOOTNSZ!

Um único disparo despedaça robô e agente, misturando no ar, fluídos biológicos e não biológicos, pintando a calçada de cimento esbranquiçado em um quadro surrealista pintado em tons de vermelho e preto.

Você sabe com quem você ta lindado, seu filho da puta na armadura? — Gritou o Sargento mesmo sabendo que sua voz não seria ouvida, apesar de estar errado, ele não tinha ideia de que o usuário da armadura pesada, sabia exatamente com quem estava lidando.

Eu sou um Sargento licenciado pela Sec-Unity, se você acha que vai atirar na minha gente, na minha frente, você ta muito fodido! — Bradou, tentando se convencer de que tinha o controle da situação.

O androide Jhonny, estava parado encarando a Heavy Suit no meio da rua.

É o Heavy Suit que está parado fora da portaria nove, senhor — Disse ele, virando e acionando o alarme do local, enquanto caminhava para a cadeira da recepção onde costumava ficar.

CONTINUA


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Notas finais do capítulo

Jhonny Boy é um androide maneiro, gosto dele, e com certeza vou traze-lo em outros contos (se eu me lembrar disso).

Logo coloco a segunda parte, espero que gostem!
E qualquer dúvida, ou comentário, chega aê!



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