Florescer escrita por Mel Bronte


Capítulo 3
Oleandro


Notas iniciais do capítulo

Depois de um longo e tenebroso inverno, eis uma atualização.

Edit: Apesar de usado como planta ornamental, o oleandro é extremamente tóxico para os seres humanos. Não à toa, seu significado em linguagem das flores é "cautela".



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Não precisou se esforçar para saber a quem pertenciam os passos apressados. Metal tilintava na entrada da Casa de Peixes: não era um acontecimento incomum. Espectros surgiam por todo o mundo, espalhando destruição, e o Patriarca convocava seus cavaleiros com frequência vertiginosa. Havia menos e menos tempo fora do campo de batalhas.

— Shion? — O cavaleiro de Peixes ergueu levemente uma sobrancelha. Não era da natureza de Shion distrair-se daquele modo. A menos, evidentemente, que o jovem estivesse se comunicando com algum antigo portador da armadura que restaurava, o que não era o caso naquele momento. Passara muito tempo observando o trabalho dele para que soubesse quão meticuloso era. Talvez, ponderou, aquela distração fosse necessária para o mais jovem, quando ele tinha alguma folga.

— Olá, Albafica. Não o vi chegando.

— Você precisa parar de me esperar.

Áries fez pouco caso da censura. Aproximou-se de Albafica com o sorriso que lhe era característico, tão encantado quanto encantador. Um sorriso raro e difícil naqueles tempos tensos.

A Albafica, não escapava a observação de aquela expressão não era completamente genuína. Mas a suavidade de sempre estava lá, mesmo que ele levasse o olhar distante e as feições se carregassem com preocupação constante. Mesmo após cinco anos, mesmo depois de tudo o que vivera, a suavidade ainda era parte de Shion.

— Eu já disse que não faz mal, Albafica. Eu preciso estar vigilante, de qualquer forma. E aqui fico mais perto de Sage, é bom trocar ideias com ele. — Deixou de mencionar que aquele fora um pedido do próprio Patriarca, que o preparava para uma nova missão. Sage não lhe exigira segredo, mas Áries simplesmente achava melhor não mencionar os detalhes sobre tal missão.

Tudo estava explicado, então. Shion não deixaria a casa de Áries à própria sorte apenas para satisfazer a um capricho juvenil. Ainda assim, era imprudente permanecer em Peixes por muito tempo. Estaria Shion se colocando à prova, expondo-se propositalmente ao veneno das rosas? Albafica observou-o, em silêncio. Conhecendo-o, sabia que o tibetano poderia ir às últimas consequências para obter o que queria.

Se havia uma característica que poderia ser usada contra Shion de Áries, esta era a sua total transparência. Anos antes, Albafica encantara-se com ela, considerando-a uma virtude. Com o passar do tempo, contudo, parecia temeroso que o jovem Áries permanecesse tão transparente. Seria muito fácil tirar vantagem de alguém assim.

Mirou o mármore do piso e estava consciente demais sobre as maçãs do rosto afogueando-se. Sabia que Albafica também notaria. Não conseguia mais disfarçar, e o que sentia pelo cavaleiro de Peixes tornava-se mais confuso a cada dia. No início, imaginara que fosse apenas admiração e amizade.

Peixes podia não falar muito, mas Shion sentia aqueles olhos analisando-o profundamente a cada encontro. E, ainda pior: Albafica tinha o péssimo hábito de transmutar em palavras coisas, situações e pessoas exatamente como eram. Era quase descuidado em sua sinceridade brutal. Não poderia culpá-lo; as amarras sociais de polidez tinham pouca utilidade ao recluso cavaleiro de Peixes.

— Que acanhamento repentino, Shion. — Uma pequena, rara e inofensiva provocação.

— Não é nada… — Algumas vezes, o cavaleiro de Áries tentava ocultar suas preocupações, sem sucesso.

— Sabe que não me engana. — A voz de Albafica exercia um magnetismo quase irresistível, Shion via-se atraído para ele, desejoso por romper o isolamento, almejando a companhia dele.

Quando estava na morada de Peixes, calculava os passos entre ele e o guardião da casa. Tornava-se cauteloso para não espantar Albafica. Sabia que, do contrário, seria imediatamente enxotado. Ou, pior, que Albafica recolher-se-ia como um gato arisco e assustado por dias, sem dignar-se a trocar olhares ou palavras com Shion.

Não era raro que protagonizassem uma estranha dança de aproximação e afastamento. Uma dança sem música e repleta — preenchida — com a cadência de renúncias. Uma dança que demonstrava quão fora de alcance estavam um do outro — um universo de distâncias, dois universos a ponto de colidirem.

Eles não eram estranhos ao conceito — e à prática — de privações. O modo de vida, com treinamentos constantes e batalhas decisivas de vida ou morte, era prova. Não havia muito espaço para algo que não se encaixasse no parâmetro de missões, ou heroísmo, ou sacrifícios, ou uma mistura de todos eles.

Não havia muito espaço para sentimentalismos — algo que poderia tornar aqueles guerreiros em meros peões prontos a matar, mas — ao contrário — fazia florescer um sentimento muito mais genuíno entre eles. Havia espaço para companheirismo.

— Se não tem nada para me falar, é melhor ir embora. — Não reiteraria sua preocupação; Shion sabia muito bem o que motivava Albafica a quase expulsá-lo do recinto. Ao longo de cinco anos, perdera as contas de quantas vezes recitara a mesma frase sobre os perigos da proximidade. Perdera as contas de quantas vezes esperara por horas, com Sage a seu lado, até que Shion recobrasse a consciência.

Às vezes, era por resvalar as mãos em seus cabelos, às vezes era por tentar abraçá-lo. A obstinação de Shion não conhecia limites, porém; quanto mais sofria com o veneno de Albafica, mais disposto a arriscar-se o jovem parecia. Os deuses eram generosos por concederem tanta sorte àquele inconsequente...

Como esperado, Áries continuou no mesmo lugar. Sentia o coração acelerar. Tinha muito a dizer, muito mais do que Albafica poderia imaginar. Tinha uma tarefa urgente, porém. Seus sentimentos, sua confissão, teriam que esperar.

— Preciso ver o Grande Mestre Sage... — Titubeou. Mordeu os lábios. E, no fim, não falou o que queria. — Tenho que pegar as instruções sobre uma missão com ele. Eu... Tenho que partir hoje à noite.

— Tem minha permissão para atravessar a casa de Peixes. — Normalmente, não se estenderia tanto, não falaria tanto. Sabia que sequer precisava se pronunciar. Estava diante de Shion, porém, e esses momentos perto dele eram preciosos. Estreitou os olhos e suspirou. As palavras de Shion confirmavam o que já suspeitava: ele partiria em missão, e Peixes teria alguns dias sem seu intruso favorito. — É melhor ir logo.

— Albafica… — O nome do cavaleiro de Peixes pareceu-lhe agridoce, naquele momento, como se carregasse o peso da solidão de seu dono ao ser dito.

— Não se atrase.

Shion — assim como Albafica — quase nunca se atrasava para os assuntos oficiais do Santuário. Não que tivesse um prazo muito apertado para apresentar seus relatórios, mas gostava de ter tranquilidade. E gostava de ter algum tempo livre. Tempo livre este que usava em grande parte para conversar com Dohko ou, sua mais nova mania, observar o cavaleiro de Peixes de longe.

— Você estava errado, naquele dia. Eu não desisti. — Deteve-se apenas para proferir tais palavras, quase como um desafio.

Albafica sorriu-lhe. Semanas antes, em mais uma das discussões entre os dois, perguntara a Shion, em tom de provocação, se ele havia desistido de tentar aproximar-se. O jovem Áries simplesmente deu alguns dias de sossego para Albafica, ou assim pensava.

— Sua teimosia é a pior das suas características.

— Dizem que persistência é um ponto forte. — Shion rebateu. — E temo ser obrigado a concordar.

— Contanto que não te leve a arriscar-se, ou à morte, pode ser. — Neste ponto, caminhava ao lado do tibetano, mantendo sempre a distância que considerava segura.

— Eu não morrerei tão facilmente.

Fosse qualquer outro, Albafica teria contestado, diria que era pretensioso demais dizer que não morreria tão facilmente. Mas Shion... Não sabia se eram as estrelas que o protegiam ou uma esperança que nutria, porém sabia que Shion estava destinado a ter um futuro brilhante. Não poderia mesmo morrer tão facilmente.

— Realmente espero que cumpra sua palavra, então, Shion de Áries. — O tom de Peixes, sempre tão ríspido e pronto a afastar, suavizou-se naquele momento.

Uma semana mais tarde, Shion retornava ao Santuário. Ao contrário de outras vezes, parecia ter o ânimo renovado, algo que Albafica notou com alívio. Lembrava-se da última vez que Áries retornara do Tibet, após uma missão, e do preço que o mais jovem pagara.

— Me parece que correu tudo bem em sua missão, Shion.

— Pude rever a minha terra natal e meu mestre... E consegui cumprir a missão sem maiores percalços.

Andavam de mãos dadas, enluvadas, por insistência de Albafica. Mesmo assim, não tardou a se afastar. Não queria correr o risco. Não queria correr mais riscos. Enquanto o contato durou, contudo, ambos sentiam-se seguros. Confortáveis. Talvez por isso o afastamento tivesse o efeito de um choque em Shion. Mas o cavaleiro de Áries compreendia.

Já era muito que o pisciano concordasse com aquele passeio quase clandestino. Encontravam-se às margens de um bosque. Havia uma calmaria inquietante, naqueles dias; tinham ciência de que a tempestade se abateria sobre eles. Os momentos de paz, portanto, eram ainda mais apreciados.

Os sentidos atentos, treinados por anos para perceber e responder a ameaças, usufruíam do bálsamo da natureza. Nunca antes o canto dos pássaros pareceu tão melodioso a Albafica, nem as flores da amendoeira sob a qual estavam, tão belas. Mesmo o oleandro ao lado de Shion parecera belo. Albafica piscou os olhos, incrédulo com a própria demora para perceber o perigo, antes de agir, e levar Shion para longe.

Toda a planta era tóxica. E sabia, pelo seu treinamento, que o contato da seiva com a pele era perigoso. Suspirou aliviado ao perceber que Shion não tocara na planta. O mais jovem não entendeu muito bem a atitude esbaforida de Peixes, até que ele explicasse, pacientemente, os efeitos do oleandro.

— Não precisava de tanto, Albafica.

— Você nunca leva as minhas advertências a sério o suficiente, Shion...

— Convenhamos que seu exagero e sua paranoia não ajudam.

Não era fácil lidar com Albafica, com as constantes recusas de contato, com as evasivas. O que removeu certas barreiras, Shion ponderava, era o pretenso remédio para todos os males: o tempo. Embora não descartasse de todo a possibilidade de ter vencido Albafica pelo cansaço. De qualquer maneira, o apreço mútuo era evidente, fora cultivado ao longo de anos. Do contrário, o cavaleiro de Peixes se recusaria a andar a seu lado.

Afastaram-se até chegarem a um local considerado seguro por Albafica, sem plantas venenosas. Pelo menos, daquela vez, a discussão não se estendeu. Shion tentava entender a mudança súbita na atitude alheia. Era possível ouvir a água de um riacho fluindo a pouca distância de onde estavam.

O que tornava tudo tão precioso era ter cultivado aquele sentimento, diligentemente, até ele dar frutos: demover Albafica de sua solidão, ainda que o pisciano quase não permite toques, era um grande passo. Shion estava orgulhoso de si.

Albafica sorriu, como se estivesse respondendo ao pensamento do mais novo; orgulhava-se de ter testemunhado as mudanças em Shion, de garoto inseguro a guerreiro valoroso. Não. Não era apenas testemunhar, era fazer parte. Logo ele, que jamais imaginou que pudesse vivenciar algo junto a alguém. Ao longo dos anos de convivência, cultivaram algo muito sublime. Mais do que mera amizade. Mais do que amor.

— É tão raro vê-lo sorrindo. — O sorriso de Áries alargou-se. Aquele momento de felicidade caía bem em Albafica.

— Percebi que encontrei uma fagulha de felicidade. — Mal podia acreditar que aquelas eram suas próprias palavras, e que havia verdade nelas.

Os dedos e os lábios de Shion tracejaram os músculos de seu braço. Aproximou-se da orelha. Apenas então Albafica retesou-se, e Áries se afastou. Não provocaria Albafica, não ainda. Deitaram-se, então, sobre a relva, banhados pela suavidade da luz que escapava entre as folhas das árvores.

— Diga-me, Albafica… Onde encontrou esta fagulha de felicidade?

Apoiou-se sobre os braços e encarou Shion. Ergueu uma sobrancelha. Desde quando Áries adquirira o hábito de testar-lhe? Ou, melhor: como Shion conseguira aprimorar-se tanto na arte de testar os limites de Albafica?

— Em alguém que costuma fazer as perguntas erradas. Deveria ter perguntado: "quem mostrou-lhe a felicidade?"

— Quem mostrou a felicidade para você, Albafica?

Albafica, muito cautelosamente, esticou o braço e acariciou as madeixas loiras de Shion. Foi um gesto breve e singelo, porém ocasionou palpitações em ambos. Os corações correspondiam-se no descompasso.

— Um garoto inconsequente com poderes psíquicos.

— Me parece alguém familiar. Embora eu não saiba de quem você está falando. — Riu-se, sabendo que deixaria Albafica contrariado.

Por sua vez, o cavaleiro de Peixes retomou a seriedade habitual. Havia algo mais em seu olhar, um pesar que Shion jamais percebera antes. Era diferente da quieta resignação habitual, da perene melancolia; aquela expressão parecia mais próxima do temor.

— Shion, me prometa uma coisa. Não importa o que aconteça, me prometa que você sobreviverá a essa guerra. Por favor.

Aquelas palavras — aquela preocupação — eram privilégio de Shion. A não ser pelo seu mestre, jamais antes mostrara-se tão profundamente para alguém. Tratava-se, também, de uma declaração: Shion era importante. Era amado.

— Eu apenas posso tentar fazer o meu melhor, Albafica. — Pensara em rebatê-lo, em praticamente exigir ou implorar que Albafica também sobrevivesse, embora soubesse que Albafica não receberia tal comentário suavemente.

— O sol está se pondo. É melhor voltarmos. — Ofereceu a mão a Shion após erguer-se.

A proximidade dava-lhe ânsias de mais, algo que não poderia obter. Ainda assim, levou as mãos hesitantes ao rosto de Shion, acariciando-lhe. Isto bastou para que Áries lhe envolvesse a cintura em um abraço — mas todos os contatos duravam pouco, e logo se afastaram. Não deixaram, porém, de conversar durante o percurso de volta às Doze Casas.

Shion de Áries estava exultante, e mal conseguia esconder sua satisfação. Albafica, por sua vez, sentia-se mais leve. Mesmo Manigold comentou sobre sua recém-adquirida suavidade.


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Notas finais do capítulo

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