Florescer escrita por Mel Bronte


Capítulo 2
Rosa rubiginosa


Notas iniciais do capítulo

Não, não é piada de Primeiro de Abril, nem uma miragem, realmente estou atualizando a fic.

Edit: Rosa rubiginosa, em linguagem das flores, significa "uma ferida a ser curada".



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Mal poderia imaginar que encontraria certa paz fora de suas zonas de conforto. Sempre haveria certo espanto em perceber os próprios temores. Não se considerava destemido, pelo contrário: o maior motivo para seu isolamento era seu temor pelos demais. Seria difícil admitir, porém, que também temia ferir-se com as aproximações; tinha certeza de que não sobreviveria a outra carga de culpa envolvendo seu sangue.

Não estava em um de seus refúgios habituais naquela noite, embora estivesse sozinho naquele momento. O exterior da Casa de Áries — ao menos do alto da coluna onde se sentava — fornecia uma esplêndida visão do vilarejo abaixo... Pelo menos durante o dia. À noite, contentar-se-ia com as luzes de lamparinas distantes. Imaginava como seria sua vida, se fosse um daqueles habitantes. Mal conseguia lembrar-se de como era ter contato com as outras pessoas.

Observou, quase imóvel, a aproximação de uma figura quase oculta sob a fraca luz da lua crescente. Podia notar, conforme se acercava: as roupas utilizadas em sua terra natal, o porte cabisbaixo, os passos mais lentos do que o habitual. Talvez fosse apenas exaustão. Eles ainda eram humanos, afinal, apesar de seus poderes quase sobrenaturais. Sempre estariam sujeitos a ferimentos e esgotamento.

— Já é muito tarde, Albafica. — A figura elevara sua face, para então observar o cavaleiro de Peixes no alto. Não havia muita emoção em sua voz, embora as notas de cansaço fossem inegáveis.

Albafica respondeu-lhe com um sorriso. Habituado a uma vida de renúncias, o ato de sorrir ainda causava-lhe estranheza — era incapaz de considerar-se infeliz. Sua vida possuía propósito, e isso bastava-lhe, até então. Havia felicidade no reencontro, contudo, não poderia contestar. Não era incomum que o Patriarca desse missões para Shion em locais muito distantes. Estranhamente, Albafica flagrava-se preocupado com a segurança do jovem cavaleiro.

— Você mesmo sempre diz que a Casa de Áries é a primeira linha de defesa e não pode permanecer desguarnecida.

— Agradeço pela consideração. — Precisou esforçar-se ao máximo para não soar seco, ríspido. No fim, percebeu-se quase sem voz. Já era difícil respirar. Falar, então, parecia quase impossível.

— Não fale como se fosse algo pessoal. Dohko e eu nos alternamos aqui. Mesmo Aldebaran vinha aqui vez ou outra, para que sua casa não ficasse desprotegida. Nós sabemos o quanto é importante guardá-la.

Mirou-o e, naquele momento, as suposições de Albafica sobre haver algo de muito errado com o mais jovem se fizeram certeza. Desceu de onde estava, mantendo uma distância que considerava segura entre eles. Tal responsabilidade sempre recaía sobre ele: Shion insistia sempre em acercar-se demais, talvez atendendo à vontade de companhia de Peixes. Perguntava-se se era tão evidente assim, ou se o outro cavaleiro era capaz de ler mentes.

— Quer conversar sobre o que aconteceu na sua missão? — Optou por não perguntar se havia algo de errado; que havia algo fora de ordem era mais do que evidente.

— Eu não sei se devo, ou se conseguirei. — Não precisou pensar muito para perceber que franqueza era a melhor opção naquele momento. Ademais, toda a sua energia já era usada para tentar parar de tremer, embora não fizesse frio. Não teria forças para tentar ocultar que algo estava errado ou, pior, para mentir.

— Pode tentar.

Albafica ofereceu-lhe apenas o lampejo de um sorriso. Estava consciente de que não era a melhor pessoa quando se tratava de confortar as outras. Precisava admitir que não era bom quando o assunto eram pessoas ou sentimentos.

— Está passando tempo demais comigo.

— Deve reclamar com a sua disposição à teimosia, então.

As palavras conseguiram arrancar um breve sorriso de Shion. Os anos de treino e de afastamento mudaram a figura do cavaleiro de Áries. Não se tratava de uma mudança puramente física, como já era esperado, mas Áries parecia-lhe mais... Suave. Maduro. E havia algo mais, que demorou a identificar: Shion parecia-lhe triste.

Albafica antecipou-se e jogou a capa sobre os próprios braços. Vira os passos de Shion vacilarem, enquanto ele se aproximava. Reconheci aquilo: dor. Deduziu que a extensão dos ferimentos de Áries era muito maior do que imaginara inicialmente. Flagrou-se mordendo o lábio inferior em frustração. Pouco poderia ajudar Shion.

Mesmo tentando protegê-lo, o temor de feri-lo ainda mais persistia. Apenas então descobriu que Shion estivera certo, naqueles primeiros encontros. Percebia que tivera medo de ter alguém se tornando importante em sua vida, porque as implicações eram terríveis.

Shion deixou-se tombar nos braços de Peixes. Tomou fôlego e, por fim, liberou as lágrimas que havia represado nos últimos dias. Tentou encarar a face de Albafica, mas não teve forças para tanto.

— Eu matei alguém na minha missão. Alguém que eu conhecia. Ele… Ele era meu companheiro de treinamento. Por quê? — A confissão enchia-lhe de vergonha.

A culpa, consumindo-lhe, era pior do que qualquer dor que já sentira antes. Aquela morte era sua responsabilidade. Não era novidade para Shion, já vira e já causara morte o suficiente para mais de uma vida: fazia parte de seu ofício como cavaleiro. Daquela vez, entretanto, era diferente. Era mais pesado, mais doloroso.

— Fez o necessário, Shion. — Pretendia soar firme, mas percebeu-se ríspido. Tarde demais para corrigir aquela atitude.

— Não é justo! — Áries protestou, enquanto lutava em vão contra as lágrimas.

— Não, não é. Nem sempre o que é necessário é justo, Shion. Raramente é justo, eu me arriscaria a dizer.

Lutava contra a vontade de aproximar-se, de colocar Shion em seus braços e limpar-lhe as lágrimas. Naqueles momentos, lamentava-se por ser quem era, por herdado um legado tão pesado e cruel. Naqueles momentos, Albafica tinha certeza de que jamais acolheria um aprendiz para si.

Sua vida, definitivamente, era bem mais simples antes da invasão de Shion. Áries, de alguma maneira, conseguira vencer as barreiras colocadas em torno de si — enxergava Albafica como ele era — e tornara-se indispensável. Isto poderia suavizar o peso de sua solidão, mas tornava tudo ainda pior, mais pavoroso.

Apesar de não se considerar destemido, Albafica não temia nem mesmo a morte: pelo contrário, esperava por ela todas as vezes em que estava em batalha. Sentiu o corpo estremecer, porém. Era pavoroso perder alguém por quem sentia afeição. Se a morte de seu mestre já lhe deixara com marcas tão profundas, não poderia sequer conceber o que poderia acontecer se cedesse às tentativas de Shion. Se perdesse Shion...

Havia apenas uma solução para que isto não acontecesse: afastá-lo. Mas como, depois de baixar suas defesas e permitir que o jovem se tornasse tão importante em sua vida? Não era justo com nenhum dos dois, mas era necessário.

Foi com o coração partido, e extremo cuidado para não tocá-lo, que conduziu Shion até o salão do Patriarca. Lá encontraria pessoas competentes para tratar dos ferimentos dele — ou, melhor, pessoas que não o colocariam em um risco maior ainda. Além do mais, Áries precisava relatar os fatos de sua missão para o Grande Mestre.

Afastou-se em silêncio, e assim permaneceu por longas semanas, rechaçando qualquer tentativa de aproximação, até o mais jovem parecer desistir. Mas Albafica sabia que não era isso. Shion simplesmente estava dando espaço. E, se havia um certeza, era a de que ele retornaria.

O tempo ensinaria-lhe que nem o silêncio, nem o afastamento funcionariam. Era tarde demais para viver sem a presença daquele que se tornara tão importante em sua vida.

Assim transcorriam os anos: idas e vindas. Afastamentos e reaproximações. Ambos viam-se amadurecer juntos, embora nem sempre lado a lado. A distância podia ser frustrante. E, mais vezes do que alguém sensato tentaria, Shion tratava de transpô-la. Como naquela noite, em que compartilhavam a mesma cama na casa de Áries. O cavaleiro de Peixes temia as consequências daquilo.

Suspirou. Quantas vezes não sentira que ambos brincavam com a sorte? Não poderiam se dar a tal luxo. Era perigoso, ele era perigoso, e sequer conseguia conceber o desastre que seria, se Shion fosse afetado pelo seu veneno. Se antes Albafica tinha esperanças de que Shion se tornasse menos imprudente com o tempo, estas foram frustradas. Catastroficamente frustradas.

Sem dúvidas, Áries amadurecera com o tempo, e Albafica orgulhava-se disso. O problema era que os anos não deram conta de diminuir a teimosia; pelo contrário. Shion insistia em aproximar-se muito perigosamente, como naquele momento, deixando os rostos de ambos próximos demais, as pontas dos narizes quase tocando-se. Algo que, invariavelmente, acabaria com uma retirada brusca de Albafica.

— Já basta! Você está me enlouquecendo, Shion.

Deu as costas para Áries. Estacou ao ouvir a voz dele. Queria afastá-lo, queria correr, fugir. Não deveria ter sido tão incauto a ponto de deixar o jovem Áries aproximar-se tanto de si. Via-se, o próprio Albafica, dependente da companhia de Shion. O jovem possuía um magnetismo irresistível — ou talvez fosse apenas o anseio por companhia falando mais alto.

— Sabe o que penso? Penso que você está apenas esperando por uma missão suicida. Não consegue desapegar-se do seu dever, então jamais usaria suas próprias mãos para se matar. Uma missão suicida seria perfeita para as suas ambições.

Foi incapaz de contra-argumentar. Embora as palavras de Shion o magoassem — e quem havia iniciado aquela discussão, de qualquer forma? — Elas eram verdadeiras. Se havia uma virtude que se destacava no mais jovem era a honestidade.

Gradualmente, a imagem de Áries passara a fazer parte de seu cotidiano e de seus pensamentos. E, naquele momento, Albafica não sabia o que fazer com a presença constante. Seria simples, se o cavaleiro de Peixes fosse uma pessoa como qualquer outra, mas ele carregava a maldição do sangue envenenado.

Sequer havia no que pensar. Desejava o afeto de outras pessoas, sempre desejou, mas o preço a pagar era alto demais. Sua solidão sempre seria sua melhor companhia.

— Me acusa de procurar o suicídio, mas segue correndo até a minha presença, sabendo o que te aguarda. Eu não consigo… — Controlar-se mostrou-se um desafio. Que tipo de poder Shion tinha sobre ele? — Eu não consigo perder mais ninguém, Shion!

— Isto torna as suas motivações extremamente egoístas, sabia?

Recostou o corpo contra mármore frio. Estava desarmado. Manigold ainda o chamava de "garoto de Áries", mas Shion tornara-se um homem certeiro. Possuía um bom coração, mas poderia causar destruição com seu cosmo e com suas palavras, se magoado.

Shion sabia como atingi-lo. Claro que sabia. Por que se expusera àquele garoto inconsequente? Por que se afeiçoara a ele?

— Sabe o que é egoísta? — Retrucou. — É a sua disposição de ficar sempre perto de mim. Como isso é menos suicida do que as minhas motivações?

— Eu poderia simplesmente me afastar. Eu poderia... Não me importar. É isso o que você quer?

— Não, Shion, não é o que eu quero e você sabe disso. — Albafica abaixou levemente a cabeça, pestanejou e fechou as pálpebras. Não seria fácil. Nunca era fácil abrir-se. A exposição de seus próprios sentimentos o apavorava. — Mas é o necessário. Se, para você estar bem, eu precisar me afastar, assim o farei. Como fiz outras vezes. Temos missões a cumprir, e não podemos ser descuidados com nossas próprias vidas.

— Não sou descuidado, Albafica. — Shion rebateu prontamente. — Se eu fosse, não calcularia os riscos, insistiria em ficar ainda mais tempo perto de você. Mas não faço isso. Eu me conformo com o que temos, do jeito que está.

Daquela vez, o próprio Shion tomara a iniciativa de se distanciar. Havia um gosto metálico em sua boca e sua pele estava salpicada por bolhas vermelhas. Sempre havia um preço a se pagar por estar perto de Albafica, mas acreditava que sempre valeria a pena. Uma lástima que Albafica não concordasse...

— Shion!

Sentia a própria consciência deslizando para o vazio. Não era exatamente um desmaio, era? Sabia muito bem que sobreviveria, não aceitaria que sua última visão fosse o rosto apavorado de Albafica.

Alguns dias se passaram até que o efeito do veneno cessasse. Depois disto, Shion pesquisava incessantemente sobre venenos e antídotos. Não que quisesse livrar Albafica de seu sangue tóxico contra a vontade dele, queria apenas uma alternativa. Algo que conferisse certo grau de imunidade. Teria longas noites de estudo na biblioteca pela frente...

Após o episódio, Albafica isolara-se novamente. Enrijeceu ainda mais a distância permitida para Shion. Limitava-se a observá-lo, discretamente, ao longe, durante os dias de treinamentos. Algumas vezes, esgueirava-se silenciosamente até a biblioteca, admirando a compenetração do outro. Tentava adivinhar o que Áries estudava com tanto afinco.

Manteve tal rotina até ser flagrado por Shion, certa noite. Agradeceu aos deuses do acaso pela iluminação fraca, que não permitiria que alguém enxergasse suas faces vermelhas.

— Quer me dizer algo, Albafica?

Ele até tentou articular palavras em resposta, em vão. Não sabendo o que fazer, apenas deu as costas a Shion, e retornou à sua morada. Novamente, parecia um jovem desprovido de habilidades para ficar perto da pessoa amada sem parecer abobalhado.

Mais tarde, naquela mesma semana, passaria a receber bilhetes deixados em sua ausência. Os primeiros eram breves, quase lacônicos, pois Shion assumira que Albafica precisasse de seu espaço e de sua solidão novamente. Conforme obtinha respostas, no entanto, mais longas se tornavam as correspondências.

Era doloroso ter Albafica por perto sem poder, de fato, aproximar-se tanto quanto queria. Shion sentia falta do toque de sua pele, de seu calor e do cheiro inebriante de rosas brancas. Consolava-se com o fato de Peixes ao menos comunicar-se. Todas as outras vezes em que se afastaram, até então, deixavam de falar tudo que não fosse o estritamente necessário ou exigido pela cordialidade.

Shion ainda estava longe de encontrar suas respostas, mas aprendeu a ser paciente. Passou a observar Albafica, como fazia quando mais jovem. Seu encantamento pelo outro cavaleiro parecia crescer a cada dia.

E, da mesma forma como acontecera quando eram mais jovens, Áries aproximou-se gradualmente, mais uma vez. Nem Albafica poderia negar que eram essenciais na vida um do outro, apesar de tudo. Impusera limites: pelo menos três passos de distância, mas voltara a conversar com Shion.

Temia estar fazendo algo errado, pois, àquela altura, já sabia quais seriam os desdobramentos de qualquer reaproximação. Nada o preparou para aquilo, porém. Shion deu três passos em sua direção, e encostou os lábios nos seus. Foi breve, mas o foi o suficiente para que Albafica levasse os dedos aos lábios, confuso e admirado a um só tempo.

Imaginou que Shion se daria por satisfeito depois disso, mas estava enganado. Descobrira-se ainda mais encantado pelo cavaleiro de Áries. Aquela parecia uma sentença para ambos. Apenas o tempo poderia mostrar se estava certo ou não. 


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Notas finais do capítulo

Quero pedir desculpas pela demora na atualização. Espero que a leitura esteja agradável. Podem se sentir à vontade para dar críticas e sugestões! Agradeço a quem ainda não desistiu da história. Até a próxima!



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