Florescer escrita por Mel Bronte


Capítulo 4
Peônia


Notas iniciais do capítulo

Eu tardo, falho, demoro, mas volto.
Agradecimentos especiais à Super-nova que ajudou a revisar parte desse monstrinho



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Um vento passageiro agitou os cabelos já rebeldes do jovem cavaleiro de ouro, sem desmanchar seu sorriso. O amigo agitou-lhe os fios loiros, deixando-os ainda mais desalinhados. Shion lançou-lhe um olhar reprovador, não podia deixar que aquela mania persistisse. 

 

Naquele dia tranquilo e ensolarado, com os sons distantes dos recrutas lutando na arena de treinamento, tornava-se fácil acreditar que a vida deles era simples. Ainda mais quando estavam lado a lado, apenas desfrutando da companhia um do outro, pensando em como tinham sorte pela amizade. Porque, embora houvesse calmaria na superfície, ela durava apenas algumas horas, e ter companhia era de grande ajuda. 

 

Shion perguntava-se como Albafica suportava tão resignadamente a solidão. Ou, a julgar pelos últimos acontecimentos, nem tão resignadamente assim. Talvez, apenas talvez, Shion tenha perturbado um lago de águas límpidas e calmas, espalhando o caos sem querer. Sentia-se um pouco culpado, mesmo sabendo que faria tudo exatamente igual novamente, se tivesse a chance. 

 

— Ah, Shion… 

 

Não diria, mas vê-lo contente provocava-lhe uma emoção agridoce. Algo de felicidade e, detestava admitir, algo de ciúmes. Secretamente, Dohko desejava ser a causa daquele sorriso, embora soubesse bem que não era o caso. 

 

— Não venha me dizer que pareço um jovenzinho apaixonado, Dohko! — Fez um bico, fingindo indignação. Seguiu-se a risada de Libra. 

 

— Você não parece, Shion, você é um jovem apaixonado! — Dohko declarou, enérgica e enfaticamente. 

 

O jovem cavaleiro de Áries fez coro às risadas do amigo. Não tardou até que o silêncio se fizesse presente novamente. 

 

Por maiores que fossem as alegrias, por mais que parecessem jovens típicos, eram momentos fugazes. Sabiam bem ao quê estavam destinados. 

 

Como para espantar as nuvens que pareciam pairar sobre as feições de Shion, Dohko deu-lhe uma leve cotovelada. 

 

— Olhe só quem está vindo!

 

O sorriso de Shion alargou-se. Com passos calmos, Albafica aproximava-se. Dohko disfarçou mal uma risada. Em seguida, cochichou: 

 

— Não é só você quem está mais leve esses dias, Shion! 

 

De fato, um bom observador captaria as mudanças mínimas e não obstante muito significativas: as comissuras labiais que pareciam prestes a delinear um sorriso, o olhar caloroso como nunca fora, os passos suaves, ainda que se mantivessem tão decididos como sempre. 

 

Mais tarde, Dohko provocaria Shion a respeito do tom adoravelmente intenso de vermelho que tomou conta das bochechas do cavaleiro de Áries. 

 

Naquela noite, as bochechas de Shion exibiriam, novamente, o tom rubro. Não restava-lhe opção, pensava, enquanto sentia o balançar da charrete na estrada acidentada e inclinava-se na direção de Albafica. 

 

— Perto demais. — Albafica declarou. Daquela vez, a advertência não tinha tons ameaçadores. Pelo contrário, a voz soava cansada. 

 

— Não há realmente algum problema, há? 

 

— Eu… — Havia? Albafica repetira, a vida inteira, que o contato com a sua pessoa seria letal. Mas seria mesmo? Não sabia. — Escute, Shion. Meu sangue é venenoso. E provavelmente também o sejam minha saliva e meu suor, todos os outros fluidos corporais… Não quero arriscar. Eu não posso arriscar.  

 

— Você não sabe! — Não conseguiu se conter. Não queria começar uma discussão ali, não queria desentender-se com Albafica. Parecia-lhe que estavam se entendendo tão melhor...

 

Apesar da pouca luminosidade fornecida pela lua cheia, Albafica julgou ter visto um brilho esperançoso nos olhos de Shion. Ao mesmo tempo, sentiu os próprios batimentos cardíacos acelerarem. 

 

— Por que está nervoso, Albafica?

 

— Nos encarregaram de uma missão…

 

"Logo nós dois", Albafica pensou, sentindo um gosto amargo na boca e o coração falhar. 

 

Aquela missão não era totalmente inesperada: era natural e mais frequente a cada dia que chaveiros fossem despachados para cumprir as mais diversas ordens em preparação para a guerra. A companhia, sim, era uma surpresa. Albafica suspirou. Seria muito mais difícil manter Shion distante naquelas circunstâncias. 

 

Levariam alguns poucos dias na viagem até a Anatólia. Por sorte, ao menos não viajariam a locais ainda mais distantes. 

 

Poderiam, facilmente, encurtar a duração no deslocamento. Sabiam, contudo, que precisam preservar energia e, ainda mais importante, deveriam ser discretos. Se usassem seus cosmos para um deslocamento na velocidade da luz, certamente atrairiam atenção indesejada. 

 

Albafica suspirou longamente, enquanto tentava evitar olhar diretamente para Shion. 

 

Estavam viajando juntos, passariam dias investigando, muito provavelmente lutando lado a lado. Trataria de lembrar-se de tomar cautela extra; se acabasse ferido, Shion certamente correria em seu auxílio, e os riscos que estavam tomando já eram demasiados. 

 

Só de estarem dividindo o espaço, temos, já colocaria Shion em perigo. Foi incapaz de dormir na primeira noite. Considerando os riscos e as necessidades, era melhor que continuassem na estrada. 

 

Na manhã seguinte, ao pararem para um breve descanso, resolveu lavar o rosto no riacho próximo ao ponto de parada  E viu, refletidas na água, bolsas debaixo dos olhos, olheiras teimando em instalar-se. Fez um muxoxo. Sua aparência não era tudo; havia coisas de muito mais importância pela frente. 

 

Sentados sobre um tronco, não trocaram palavras. Albafica fazia um esforço sobrehumano para não trocar sequer olhares com Shion: não queria oferecer esperanças a ele e, sobretudo, não queria nutrir as próprias esperanças. 

 

A falta de contato rompeu-se quando Shion ofereceu-lhe um pedaço do pão. 

 

— Coma, Albafica, você vai precisar. 

 

Encarou longamente o outro cavaleiro. Podia imaginar feitos fantásticos para o mais jovem. Portanto não havia palavras adequadas. Não poderia ceder. Jamais poderia ceder à tentação de aproximar-se ainda mais. 

 

— Obrigado, Shion. 

 

Quando retornaram à charrete, achou graça do ato cavalheiresco de Shion de oferecer-lhe a mão. O impulso se sobrepunha à vontade, e Albafica cuidadosamente estendeu-lhe a mão enluvada, agradecendo à providência de estarem com vestes civis, antes de aceitar o gesto. 

 

— Agradecido, Shion. 

 

Não foi uma viagem tranquila; encontraram percalços, agentes inimigos, mas era algo esperado. Quaisquer fossem as intenções, já estavam preparados, e não foi difícil subjugar os asseclas de Hades. 

 

Depois de dias atravessando terras, mares e rios, chegaram ao destino. Usualmente, o Patriarca enviaria cavaleiros de prata para aquele tipo de missão. No entanto, dadas as circunstâncias, os riscos elevaram-se demasiadamente, a ponto de Sage considerar mais prudente despachar dois integrantes da elite dourada. 

 

Ainda havia tempo até que se encontrassem com o informante: na verdade, uma garota local, aspirante a amazona, não muito mais velha do que Shion. Ela reportara ao Santuário as atividades incomuns na Anatólia. 

 

Não foi difícil instalarem-se em uma hospedagem; ali, em um curto espaço de tempo, deixaram a bagagem, alimentaram-se e banharam-se. Não poderiam demorar até começarem as investigações. 

 

Andavam em silêncio pelas ruas, e não tardou até chegarem ao mercado local. Shion insistira em consumir algumas iguarias turcas. 

 

Por todo o percurso, crianças e gatos tornavam-se parte do cenário. Albafica observava tudo em silêncio, e resguardando uma distância segura. 

 

Gostava de imaginar que estava acostumado. Observar os pequenos acariciando um daqueles bichanos, porém,  atingiu-lhe de forma dolorosa. Resignou-se: observou-os à distância e retomou seu caminho. 

 

A postura cabisbaixa e o olhar distante não passariam despercebidos por Shion, recordou-se. 

 

Seria tão mais fácil se ninguém tentasse se aproximar… Seria tão mais fácil se Shion não fosse tão… Doce e adorável. 

 

Lembrava-se de quando ele chegara ao Santuário, do olhar perdido que lançava para os mais velhos de vez em quando. Era como se o jovem estivesse inseguro sobre como agir. Aos olhos de Albafica, aquilo era uma bobagem: Shion era tão competente quanto qualquer outro cavaleiro da elite dourada. 

 

Conforme tornava-se mais consciente de seu lugar, Shion adquiria também autoconfiança. Albafica observava a transformação à distância. Até que apenas observar tornou-se impossível.

 

Albafica cedeu. Quebrou suas regras, deixou Shion aproximar-se mais e mais. Sabia que nada de bom poderia resultar daquilo. Era irresistível, entretanto. 

 

No caminho de volta à hospedagem, permitiu até que as mãos se encostassem, a dele e a de Shion, muito brevemente; foi o suficiente para que o coração de Albafica disparasse. De temor, certamente, mas também por algo que ele até então desconhecia. 

 

Nunca antes sentira tal proximidade em relação a outra pessoa. Nem mesmo Lugonis: o pai, o mestre, manchara irremediavelmente o afeto de Albafica com sua morte. E, acima de tudo, era uma espécie diferente de sentimento. 

 

Dividiriam o quarto, mas felizmente tinham uma cama para cada. A de Albafica ficava perto da janela, e o pôr-do-sol podia ser vislumbrado dela. 

 

Deveria saber que isso não impediria Shion. O cavaleiro de Áries aproveitou-se da distração de Albafica, e esgueirou-se até o seu colo, pousando ali a cabeça.

 

Ao invés de repeli-lo,como de costume, Albafica passou a mão pelos cachos fartos. Shion sorriu. Era tão desajeitado, mas tão adorável que não ousou dizer nada; poderia viver com os cabelos bagunçados, seria um custo muito baixo frente a tudo o que sentia naquele momento. 

 

— É um belo alvorecer… 

 

Shion pensou em protestar. No entanto, percebeu logo a oportunidade. Levantou-se lentamente, deixando a mão de Albafica escorregar de seus cabelos para seus ombros. Não podia deixar de sentir-se contente com os pequenos gestos de proximidade. Quase não conseguia conter tamanha felicidade. 

 

— Albafica, você percebeu? — Havia expectativa e alegria na voz do cavaleiro de Áries.

 

— O que, Shion? 

 

— Seu veneno não me afetou até agora! 

 

— Você… — Lembrou-se do empenho de Shion, no quanto ele pesquisara sobre antídotos para os mais variados venenos. — Está tomando alguma coisa? Conseguiu achar um antídoto? 

 

Sabia bem que não poderia colocar grandes esperanças em qualquer que fosse a descoberta de Shion. Estremeceu ao pensar nos riscos que ele corria, em busca de algo que permitisse o contato consigo.

 

E recordou-se também que Shion estivera próximo demais, por tempo demais, das roseiras no templo de Peixes. Não demorou a juntar as peças. 

 

— Espero que não tenha se arriscado demasiadamente, Shion… 

 

Shion levantou-se e dirigiu-se à janela. Dali, podia divisar, além do céu, um jardim onde as peônias destacavam-se. A fragrância delicada das flores alcançava-lhes. 

 

— De fato, é um belo pôr-do-sol… 

 

Não demorou até que Albafica também se levantasse e se juntasse a Shion na janela. Era difícil não pensar nos caprichos da própria sorte (ou da falta dela) naquela circunstância. 

 

— Você sabia que, no Oriente, dizemos que as peônias são as rainha das flores? As mais majestosas delas… E eu… Eu diria que você é uma peônia em meio às rosas venenosas. 

 

De onde Shion tirara a comparação não lhe importava muito. Fossem outros os tempos, Albafica riria da comparação. Algo em seu coração, no entanto, se aquecia e se inquietava frente àquela singela declaração. 

 

Colocou uma mecha do cabelo de Shion atrás da orelha dele. Em seguida, deu um passo para trás: era mais fácil, e também mais prudente, admirá-lo à distância.

 

— Um raio de sol… 

 

— O quê…? — Não teve tempo de elaborar a pergunta. 

 

— Desses que timidamente invadem as frestas de uma casa no início de uma manhã tranquila, e depois descobre-se que não é apenas um raio; é algo muito maior, é o sol inteiro. É isso o que você significa para mim, Shion. 

 

Era como se Áries, com seu calor, com a sua insistência, retirasse, pacientemente, Albafica do calabouço escuro de sua solidão. 

 

Shion deu um passo à frente. Albafica permaneceu no mesmo lugar, daquela vez. Depois de expor seus sentimentos, sentiu-se ridículo. 

 

Em momento algum pensara que fosse inadequado por ambos serem homens. Havia exemplos demais pela história para que isto fosse sequer uma questão. Era inadequado porque Albafica era Albafica, condenado ao fardo do veneno e da solidão. Era uma tolice. 

 

Era mesmo? Passara tempo demais com Shion, perto demais dele, e as reações dele, quando existentes, estavam longe de serem mortais. Poderia ousar ter esperanças? E a estivesse completamente errado? E se, mais uma vez, o desastre e a tragédia o seguissem, como parecia ser o seu destino? 

 

Mal suportara a morte de Lugonis. E, se suportasse a de Shion, causada por imprudências de ambos, seria simplesmente por ter consciência do próprio dever. 

 

Contra qualquer lógica e contra tudo em que acreditara por todos aqueles anos, deu um passo para a frente. Talvez fosse uma iniciativa mortal, talvez não. Riu de si, imaginando que parecia embriagado. 

 

Quem tomou a iniciativa foi Shion; sempre Shion. Envolvia a cintura de Albafica em um abraço. 

 

O cavaleiro de Peixes, por sua vez, percebeu que Shion em quase nada se assemelhava ao garoto que um dia invadira sua solidão sem ser convidado. Preservava os mesmos traços delicados no rosto, mas o corpo mudara: crescera. Era uma obra de arte, que ele deveria admirar à distância. Entretanto, cedia ao impulso de tocá-lo. 

 

Por longos momentos, não havia temor. Não havia ninguém mais no mundo, nem nada que lhes importasse mais. Havia apenas os dois, abraçados, embalados pelo afeto mútuo. 

 

E, como para coroar aquele momento sublime, os lábios de ambos encostaram-se fugaz e debilmente. 

 

Parecia uma fração de segundo; mas, quando afastaram-se — quando Albafica afastou-se — podiam ver o jardim de peônias iluminado pela lua cheia. Era um cenário de sonho, e eles não podiam sonhar. 

 

— Shion… — Qualquer censura no tom de voz transformou-se de imediato em docilidade. 

 

Shion respondeu-lhe com um beijo na bochecha. Depois, trocaram olhares cúmplices: chegava a hora de voltarem as atenções para o dever. 

 

Albafica não dormiria naquela noite: a vigília era motivada por apreensão. Surpreendentemente, Shion não parecera apresentar quaisquer sintomas de envenenamento. 

 

Na manhã seguinte, partiram rumo ao fim daquela missão, uma de muitas que ainda teriam pela frente. A partir daquele dia, sabiam que estariam sempre fortalecidos pelos laços que se estreitaram. 

 


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Notas finais do capítulo

Agradeço a quem aqui chegou e a quem esperou pacientemente pelo capítulo. Espero não demorar demais até o próximo.

Até a próxima, meus jovens!



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