Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 7
A primeira canção


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Após a bem-sucedida fuga à polícia, os quatro rapazes refugiam-se num armazém abandonado do cais antigo da cidade que é a casa e o esconderijo de Ringo. Contam o dinheiro roubado e Paul faz uma estranha descoberta...



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Ringo arrancou a lona das mãos de Paul que ficou com os braços levantados e as mãos abertas.

— Sim, é uma bateria e é também muito cara!

George aproximou-se.

— Roubaste essa bateria?

— Mas tudo o que tenho… tem de ser roubado? – zangou-se Ringo.

— É lógico… És um ladrão.

— Sou um ladrão pela força das circunstâncias. Expliquei-vos por que me decidi começar a roubar. Foi uma necessidade, está bem? Conseguem entender esse desespero? Julgo que não… – Abanou a cabeça. – Vocês são meninos que sempre tiveram tudo, sem fazer um grande esforço.

John também se lhes juntou.

— Estou a ver mais do que uma bateria. Está ali uma guitarra.

— Duas! – corrigiu George com um sorriso largo.

— Aquilo é uma viola baixo? – apontou Paul.

Ringo postou-se à frente dos instrumentos musicais, protegendo essencialmente o conjunto de tambores, bombos e pratos, abriu pernas e braços, a lona pendurada a despedir pó.

— Não quero que toquem nisto. São… São coisas preciosas.

— Nós vamos ter cuidado – explicou John a cobiçar descaradamente uma das guitarras.

Paul perguntou:

— Se não roubaste nada disto, como é que os tens?

Sem baixar os braços, vigiando rapace o avanço dos demais, pronto para detê-los e ameaçá-los se dessem mais um passo na sua direção, Ringo explicou:

— Quando tinha trabalho, tinha também uma banda. Tocávamos aos fins-de-semana, à noite, num bar da zona da baixa. A vida corria-me bem, admito… Não recebíamos muito pelos concertos… Quero dizer, não recebíamos nada, pagavam-nos com bebida e cigarros, uma refeição quente como um cachorro-quente ou uma fatia de piza. O cantor aborreceu-se dos honorários, os outros seguiram-no, eu fiquei com os instrumentos. Fui eu que paguei por eles, a maior parte do que custaram. Disseram-me que logo viriam buscá-los, mas até à data não apareceram. Nem os levavam de graça, não deixava. Tinham de pagar-me qualquer coisa, nem que seja pelo espaço que ocuparam durante este tempo todo.

— Mas nem sempre viveste neste armazém – observou George.

— Não, transportei-os para cá quando me mudei para esta nova casa.

— O que sabes tocar? – indagou Paul apontando para os instrumentos.

Com o braço cansado devido ao peso da lona, Ringo baixou-o e largou o pedaço grande de tecido. Resignado, percebeu que os outros estavam demasiado interessados para que os conseguisse arredar dali com meia dúzia de explicações.

— Eu toco bateria.

— Isso é estupendo! – exclamou John agarrando numa das guitarras. – Eu e o meu amigo Paul também conhecemos uma coisita ou outra de música.

— Pois é… – corroborou Paul com um sorriso tímido, a primeira vez que sorria depois de tudo o que tinha acontecido, desde o rapto, ao roubo, a perseguição policial e até ao refúgio naquele armazém imundo.

— Por que será que isso… parece não me entusiasmar? – lamentou-se Ringo.

George deu-lhe uma palmada amigável no ombro.

— Não deves mostrar-te tão desanimado. A tua primeira banda correu mal, mas isso não quer dizer que a tua carreira na música tenha terminado.

— Eu não quero continuar…

— Por que não? – admirou-se John. – É divertido tocar. Certo, Paul?

— Certo! – Apontou para a viola baixo. – Posso?

Ringo cruzou os braços, passou o peso de uma perna para a outra.

— O que querem fazer, posso saber?

George não foi tão polido como Paul. Segurou na segunda guitarra, colocou-a junto ao corpo pendurando-a com o auxílio da faixa que passou por cima da cabeça e dedilhou as cordas para escutar o som que faziam. Começou a afiná-la rodando as tarraxas.

— O que estás a fazer? – perguntou John espantado.

— Vou também tocar.

— Não me digas… Também tocas…

— Então não te digo.

— Tocas?

— O que achas que estou a fazer?

— A afinar uma guitarra…

— E porque sei fazê-lo.

— Ah, está bem… Também vais tocar. Quero ouvir-te, virtuoso! Ei, Ringo, onde estão os amplificadores para eu ligar a minha?

Paul sopesava a viola baixo, indeciso se lhe devia tocar abertamente, se a devia também fazer sua, imitando os gestos desabridos de John e de George. Segurava-a pelo braço, contemplando embevecido as cordas das quais ele sabia arrancar sons e melodias. Ringo continuava a tentar parecer hostil.

— Pensam mesmo em tocar?

— Sim, Ringo. Parece-me que sim. – John limpou o banco redondo atrás da bateria com a mão, depois bateu-lhe duas vezes. – Ocupa o teu lugar, pois vamos precisar de ritmo.

— Não acredito naquilo que estou a ver…

George puxou por um lençol encardido.

— Aqui estão os teus amplificadores, John.

— Obrigado, miúdo.

— Prefiro George.

— Obrigado, George.

— Também vou ligar a minha.

— Já viste que está ali uma guitarra acústica?

— Uau! Tens um verdadeiro arsenal, Ringo.

— Também tenho pandeiretas… – murmurou este, incerto se deveria ter verbalizado aquela resposta.

Após uma curta hesitação que lhe lançara um frio no estômago, o seu instinto dizia-lhe para fazê-lo mas a sua consciência gritava-lhe que se mantivesse quieto e aparte de qualquer acrescento à confusão já existente, Paul passou o cinto da viola baixo pela cabeça e aconchegou-a ao corpo. Um choque elétrico de prazer aqueceu-lhe as mãos que passaram suavemente pelas cordas de aço esticadas sobre o braço.

Ele e o amigo John tinham muitas divergências, por vezes considerava que as diferenças eram enormes e praticamente insanáveis e interrogava-se sinceramente por que motivo ainda o considerava como um dos seus melhores companheiros, se existia mais a desuni-los do que a uni-los. A solução surgia fácil e imediata. Havia a música! Esse era o grande, o enorme ponto que os unia e que os fazia convergir. Quando falavam sobre canções, quando conferenciavam sobre harmonias e versos, quando inventavam música e tocavam juntos todo o peso do mundo desaparecia.

Acontecia mais vezes há uns anos, bastante mais jovens e imberbes, acabados de sair da escola e cada um tentava arranjar um trabalho que lhes preenchesse a vida supostamente mais séria. Encontravam-se mais, riam-se mais, partilhavam mais. Tocavam as suas guitarras mais…

Subitamente, em circunstâncias anormais, tinham uma oportunidade para tocarem juntos. Era uma autêntica dádiva dos deuses. Paul rodou a viola baixo de modo a colocar o braço à direita e tocar com a mão esquerda pois era canhoto e desanimou-se. Tinha de alterar as cordas se quisesse tocar alguma coisa…

— Tenta tocar como se fosses destro – pediu-lhe John que notou o seu desalento.

Paul passou a mão pelas cordas e estas soaram mal, como num queixume desagradável. Tentou controlar-se e fazê-lo de maneira inversa, para seguir as cordas que, de acordo com a sua perspetiva, estavam de cabeça para baixo mas voltou a atrapalhar-se.

— Não consigo, Johnny… Vai tocando com o George enquanto eu mudo as cordas. O Ringo não se vai importar… Pois não?

Ringo aproximava-se da bateria depois de ter retirado as baquetas de um sítio secreto situado debaixo das almofadas do sofá.

— Se o anterior dono desse instrumento o quiser de volta… ele que ponha as cordas como estavam. Não, claro que não me importo.

George terminou o processo de afinação e começou a experimentar acordes simples. Lá maior, Dó maior, uma passagem para Mi e depois novamente para Lá maior. John obervou-o no primeiro conjunto, depois começou a segui-lo usando os mesmos acordes. Não olhavam um para o outro, apenas para o corpo das respetivas guitarras por onde passavam as unhas da mão em gestos secos, a testar o som e o volume dos amplificadores. Ao primeiro sinal de feedback, um som agudo e penetrante, rodaram os botões para ajustarem o som que pretendiam.

Paul perguntou ao amigo:

— Ainda tens aquela velha guitarra?

— Não, tenho uma melhor que roubei num festival de música, daqueles que acontecem no parque. Convidei-te mas tu não apareceste – respondeu John, mexendo numa tarraxa.

— Se não apareci foi porque não podia. E estava a falar dessa guitarra…

— Não é velha. É usada.

— É velha, Johnny boy— riu-se Paul a retirar cuidadosamente as cordas da viola baixo.

George experimentava acordes mais complexos, em Fá e em Si, completamente absorvido no que estava a fazer, parecendo que não escutava os outros. Ringo rodava o banco para acionar o mecanismo que o tornava mais alto ou mais baixo, consoante as necessidades e a estatura do baterista.

Roubaste uma guitarra? Parece-me que não sou… o único ladrão destas bandas.

— A necessidade faz-nos polivalentes.

— Não devias admitir o roubo, John! – censurou Paul, colocando a primeira corda no seu novo lugar.

Encolhendo os ombros, John completou:

— Não me importo de ser classificado como ladrão por ter roubado uma guitarra usada num festival de bandas de garagem. Consigo compreender os motivos do Ringo quando se decidiu a tornar-se bandido… São necessidades, são problemas da vida.

— Existem diversas soluções para os problemas da vida que não precisam de ser, necessariamente, ilegais.

Ringo abreviou a discussão ao passar as baquetas pelos tambores, criando uma combinação de sons que soou como a introdução de um número complicado de circo, com um certo tom de suspense e de maravilha.

— O que querem tocar?

— Qualquer coisa – murmurou George, demonstrando que não estava tão distraído como parecia.

— Esperem por mim! – pediu Paul pondo a segunda corda.

— Nós esperamos, Macca… Ei, George!

— Sim, Johnny boy?

— Ah, já começas a aprender os nossos nomes!

— Sou inteligente, sabes?

— George, acompanha-me… Em ritmo country.

As duas guitarras soaram alegres e ritmadas, numa competição acirrada entre estas, espicaçadas pelos dois rapazes que experimentavam as qualidades e os segredos de cada um. Sorriam, John e George, um para o outro, como dois pistoleiros prestes a enfrentarem-se no largo da velha cidade do Oeste, sob o calor do meio-dia. A escolha do estilo country evocava essa rivalidade imaginada, mas qualquer um deles, John e George, demonstraram que eram bons guitarristas e, mais importante, conseguiam entender-se mesmo que fosse teoricamente em despique.

Ringo juntou-se-lhes numa batida certeira, mas sem ser agressiva, pois entendeu que a competição era apenas um dueto. Ele limitou-se a fornecer o compasso. No fim, George sacudiu a mão para aliviar o ardor que sentia nos dedos e perguntou ao baterista onde guardava as palhetas.

Paul anunciou que tinha a sua viola baixo preparada. Experimentou as cordas e criou um riff potente e grave que fez George assobiar, impressionado. Ringo meneou a cabeça positivamente.

John assumiu a liderança da banda e anunciou:

— Vamos improvisar!

Os três concordaram. Juntaram-se num círculo em redor da bateria, para que todos pudessem ver o que os outros faziam. Nunca tinham tocado juntos e era necessário que seguissem o que cada um iria produzir no seu instrumento musical com os olhos, para além de e principalmente com os ouvidos, para se poderem orientar e criar algo parecido a uma música coerente e ordenada, sem ser somente simples ruído desalinhado.

Ninguém regateou a posição de John Lennon de líder daquele momento musical e foi ele que abriu com os primeiros acordes. Algo simples, animado, inocente, que os subtraísse das preocupações que os afetavam no presente.

Começou a cantar, compondo a letra à medida que ia pensando nos versos:

How does it feel to be one of the beautiful people?

Now that you know who you are, what do you want to be?

And have you travelled very far? Far as the eyes can see.

 

Qual é a sensação de seres um dos ricos e famosos?

Agora que sabes quem és, o que queres ser?

E viajaste muito longe? Até onde os olhos alcançam.

Paul e George trocaram uma piscadela de olho, Ringo abriu um grande sorriso cúmplice. John, encorajado por ter acertado no tom, tanto da melodia como das palavras, a ideia de que a vida lhes corria bem, de que a sua situação tinha milagrosamente melhorado, eram ricos após o assalto, nunca mais iriam ter problemas financeiros, prosseguiu:

How does it feel to be one of the beautiful people?

How often have you been there? Often enough to know.

What did you see when you were there? Nothing that doesn’t show.

 

Qual é a sensação de seres um dos ricos e famosos?

Quantas vezes estiveste nesse lugar? O bastante para saber.

O que viste quando estiveste nesse lugar? Nada que não se note.

O pé de Paul batia no soalho empoeirado a captar a batida criada por Ringo, que lhe estimulava os dedos nas cordas da viola baixo para escolher as notas corretas que sublinhassem a alegria daquela canção. John atirou entusiasmado, condensando o sentimento deles naquele enlevo:

Baby, you’re a rich man

Baby, you’re a rich man too

You keep all your money in a big brown bag

Inside a zoo

What a thing to do

 

Querido, és um homem rico

Querido, és um homem rico também

Guarda todo o teu dinheiro num grande saco castanho

Dentro de um manicómio

Que coisa para se fazer

E ao cantar o refrão, John sorria e apontava para as torres de notas que estavam em cima da mesa, iluminada pela lâmpada de luz acesa por cima desta. Todos percebiam que o saco referido era aquele que estava no chão e sorriam, cúmplices.

John prosseguiu:

How does it feel to be one of the beautiful people?

Tuned to a natural E, happy to be that way

Now that you’ve found another key, what are you going to play?

 

Qual é a sensação de seres um dos ricos e famosos?

Afinado para um Mi natural, feliz por ser assim

Agora que encontraste outra nota, o que vais tocar?

Paul abanava a cabeça, George sacudia os cabelos despenteados, Ringo entusiasmava-se passando as baquetas alegres pelos pratos e pelos tambores. E John cantou outra vez o refrão:

Baby, you’re a rich man

Baby, you’re a rich man too

You keep all your money in a big brown bag

Inside a zoo

What a thing to do

 

Querido, és um homem rico

Querido, és um homem rico também

Guarda todo o teu dinheiro num grande saco castanho

Dentro de um manicómio

Que coisa para se fazer

O remate coube a George com um solo inspirado, a viola baixo de Paul calou-se para se escutar aquela guitarra apaixonada, John pontilhou o som com acordes rudes e Ringo fazia estremecer os pratos.

No final da canção riram-se à gargalhada, satisfeitos com o resultado, agradados no essencial com a forma como se conseguiram entender tão bem musicalmente. Eram uma banda na essência, quando davam largas ao seu instinto artístico, à sua alma sensível. Era estranho pensar que só se conheciam havia poucas horas. Era uma estranheza agradável, contudo.

De repente, escutou-se algo na lonjura.

— Chiu! – pediu George cessando as risadas.

— O que é aquilo? – interrogou-se Paul, atento.

— Acho que… acho que… – gaguejou Ringo levantando-se do pequeno banco.

Uma melopeia estridente avolumava-se no ar parado e quente, ficando cada vez mais próxima, cada vez mais alta, cada vez mais ameaçadora. Vinha do exterior e era carregada por algo que se deslocava a grande velocidade e com grande urgência. John gritou:

— A polícia!


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Notas finais do capítulo

Os rapazes juntaram-se, entenderam-se musicalmente e tocaram a sua primeira canção!

"Baby, You're a Rich Man" é uma canção obscura do album Magical Mistery Tour, do ano de 1967, cantada por John Lennon que resolveu desabafar sobre a sensação... de ser um homem rico. Foi recentemente utilizada no filme The Social Network, que conta a história do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg e deixo-vos esse vídeo - https://www.youtube.com/watch?v=IRmE2AiabUY.
Haverá mais canções em capítulos posteriores e tentarei deixar a ligação para o vídeo das mesmas - se existir, pois é muito difícil encontrar canções cantadas e tocadas originalmente pelos Beatles no YouTube.

Bem, depois de um momento de felicidade musical o peso da realidade regressou. A polícia parece ter encontrado o esconderijo.

Próximo capítulo:
Dentro de um barco.