Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 33
Grupo


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
No clube o concerto continua. John, Paul, George e Ringo tocam, cantam, divertem-se, o público está a ser conquistado e a música é a responsável pela maior magia de todas. Está a ser uma noite inesquecível e vai continuar...



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— Ei, eu posso cantar também!

John afastou outra madeixa que se colava à testa suada e ficou com uma crista esculpida de uma forma estranha no topo da cabeça. Olhou para Ringo.

— Queres cantar?

— Sim, Johnny! Vamos improvisar outra canção – respondeu o baterista ajeitando as baquetas nas mãos.

— Certo!

— Vamos lá improvisar outra canção, alinho – concordou George com um sorriso cintilante. – Temos estado a arriscar e ainda não nos expulsaram do palco. Aquela balada foi… foi indescritível. Parabéns, Paul!

— Obrigado, George.

As palmas prosseguiam e eles quase que não se ouviam no palco. Os quatro fizeram outra vénia e a aprovação do público tornou-se mais ruidosa. O gerente tinha os braços pendurados ao longo do corpo e, se não estivesse na contraluz, eles podiam ver que estava embasbacado e de boca aberta. O apresentador imitava-o.

— Continuamos com esta loucura… Porque não? – opinou Paul divertido, retomando a viola-baixo. Ajeitou o instrumento, passou a palheta pelas quatro cordas alternadamente, num riff típico do rock. Queria retornar a sonoridades mais simples. Piscou o olho a John.

— Eles estão a gostar... Finalmente! – exclamou John.

— Era impossível ficarem parados com os estragos que temos feito – tornou Paul.

— Ei, menos conversa. Eles estão a ficar agitados – apontou Ringo que, do seu banco tinha uma vista privilegiada sobre a sala.

O público tinha-se tornado exigente. Após as palmas amainarem, alguém rude vociferou:

— Ei, vão continuar a tocar, ou não?

Paul, temerário, disse ao microfone:

— Boa noite! Como estão? Sim, vamos continuar a tocar. Só estamos a conferenciar se queremos cerveja ou whisky com coca-cola para matar a sede. Cantar seca a garganta, sabiam?

Uma gargalhada geral, palmas, assobios, uma frase solta a indicar que dessem um copo aos músicos desgraçados. John debruçou-se e disse-lhe alguma coisa ao ouvido, Paul assentiu.

A bateria deu o arranque. Ringo estava determinado a prosseguir com a sua exibição e as guitarras, espicaçadas pelo ritmo impaciente, voltaram a soar em ritmo de rock ‘n roll. O microfone tinha sido colocado junto ao baterista e Ringo cantou, abanando a cabeça. Os cabelos voavam no ar e ele ficou com um aspeto infantil e desajeitado.

 

If you’ve got trouble

Then you got less trouble than me

You say you’ve worried

You can’t be as worried as me

 

Se tens problemas

Então tens menos problemas do que eu

Dizes que tens preocupações

Não podes estar tão preocupada quanto eu

 

Era uma canção divertida, em contraste com o tema mais sério e comovente da balada que Paul criara ao piano. A exigência musical era também menor, mas os rapazes não esmoreceram e continuaram a apoiar Ringo na sua primeira intervenção como cantor.

 

You’re quite contend to be bad

With all the vantage you had over me

Just cause you’re trouble

And don’t bring your troubles to me

 

Estás sempre a competir para ser má

Com toda a vantagem que tiveste sobre mim

Só porque és um problema

E não me trazes os teus problemas

 

A perna de George agitava-se e ele batia com o pé no chão, tocando acordes vivos para completar a batida furiosa de Ringo. Paul e John seguiam-se mutuamente, pois se o primeiro providenciava o baixo, o segundo providenciava a guitarra rítmica e tinham de estar em consonância. Estavam de frente um para o outro, concentrados, fixados nas mãos alheias. Como Paul era canhoto e John era destro, era como se estivessem a ver-se ao espelho.

 

I don’t think it’s funny

When you ask for money and things

Especially when you’re standing there

Wearing diamonds and rings

 

Não tem graça nenhuma

Quando pedes dinheiro e outras coisas

Especialmente quando estás aí

A usar diamantes e anéis

 

A riqueza fácil continuava a ser o tema, agora num registo mais leviano. Uma mulher, novamente, que estava a implicar com os nervos de Ringo. Seria a sua ex-mulher? Era engraçado que assim fosse. Era tudo muito coerente e plausível, quase conceptual. O rock era som e mulheres. E depois o dinheiro metia-se no meio, as necessidades materiais, o estúpido consumismo e o mundo idealizado ruía.

 

You think I’m soft in the head

Well try someone softer instead anything

It’s not funny

When you know what money can bring

 

Achas que eu sou um pouco estúpido

Bem, tenta alguém melhor, qualquer coisa

Não tem graça

Quando sabes o que o dinheiro pode comprar

 

A crítica estava a ser um pouco pesada. Não era preciso cavar tão fundo… George arqueou as sobrancelhas, Paul inclinou a cabeça para a esquerda, John apertava os lábios para não se enganar nas transições, Ringo cantava.

 

You better leave me alone

I don’t need a thing from you

You better take yourself home

Go and count a ring or two

 

É melhor deixares-me sozinho

Não preciso de nada de ti

É melhor ires para casa sozinha

Vai e conta um ou dois anéis.

 

As estrofes repetiram-se, o refrão também.

No fim da canção, John riu-se. Porém, a sua voz era áspera ao dizer:

— A letra ficou uma bosta!

— Ei, foi o que me veio à ideia – defendeu-se o baterista melindrado. – Não sei escrever poesia, nem sou muito versado em trocadilhos. Nas aulas estava sempre distraído e não prestei atenção à professora quando ela deu a lição sobre figuras de estilo.

— Tudo bem, Ringo – disse George, defendendo-o. – Vá lá, não impliquem com ele. Não é uma canção perfeita, mas foi uma canção boa… Eles gostaram. – completou apontando para a sala que se desfazia, outra vez, em aplausos.

John pediu:

— Ei, Macca, apresenta outra canção.

— Que canção, Johnny? Não tenho mais nenhuma… Quero dizer, não estou a pensar em nenhuma que possa cantar agora…

— E que tal outro cover? – sugeriu George ensaiando um par de acordes.

— Qual é a tua ideia?

— “Boys”. É uma canção engraçada e fácil de cantar. Conheces essa, Ringo?

— Querem que eu cante outra vez?

— Claro. O nosso baterista canta sempre— afirmou John autoritário. – Conheces a canção, ou não?

— Sim, conheço. Sem problema.

Ringo cantou novamente, com uma robustez derivada da confiança que adquirira ao ter conseguido convencer os companheiros de grupo de que podia cantar só porque queria fazê-lo. Empregou toda a irreverência associada àquela composição de Dixon e de Farrell, que foi um êxito na voz do grupo musical feminino, The Shirelles, o lado B de um disco cujo lado A tinha sido um tremendo sucesso no início dos anos sessenta do século XX, mudando algumas palavras pois a letra falava de… Bem, falava de rapazes e de moças que beijavam rapazes e ficava um pouco estranho numa voz masculina com a veemência de Ringo Starr.

Ele cantava razoavelmente bem. Não tinha o alcance vocal de Paul, de John ou mesmo de George, os três tinham-se revelado como cantores competentes, adequados ao rock e a melodias mais populares, Ringo possuía todavia uma voz que combinava com um certo estilo que invocava o vaudeville, o malicioso, o duplo sentido, a sedução do homem simpático, a perdição da mulher leviana. Podia ser usado noutras canções, com uma letra mais inteligente do que aquela última, antes de “Boys”, o elemento gozador do grupo, o palhaço sério que com as suas atitudes desarmantes quebraria a monotonia.

A assistência desdobrou-se em palmas ensurdecedoras quando o baterista estava a rematar a música com um rufar dos tambores e dos pratos, ao mesmo tempo que proferia um “Obrigado! Muito obrigado!” genuíno e verdadeiramente encantado. Os rapazes agradeceram noutra vénia e sentiam-se deliciados com a resposta do público sempre que faziam essa cortesia, pois o entusiasmo como que fervia na penumbra da sala.

John fez um sinal a Paul, incitando-o a que avançasse com outra canção ou com uma ideia de canção, que fosse provocadora, que fosse delicada, que fosse cómica. O baixista sorriu e fez outro sinal a George.

Uma claridade ofuscante arredou as sombras do clube e eles, no palco, ficaram encadeados. A onda de uma maré avassaladora branca e leitosa invadiu o espaço, estendendo feixes de luz até todos os cantos. Eles levaram um braço ao rosto, estreitaram os olhos para perceber o que estava a acontecer. O gerente soltou um urro de indignação e de descontentamento. Escutaram-se outros gritos, uma ordem berrada:

— Todos quietos! Que ninguém se mexa! Para o chão! Para o chão!

O apresentador com o seu casaco de lantejoulas deu um salto e refugiou-se atrás do gerente, murmurando assustado que não sabia o que se passava. A ausência de música permitiu que se escutassem as vozes de todos, dos que ordenavam vindos na sequência do maremoto luminoso, das pessoas que gritavam surpreendidas e que se levantavam das mesas, os copos a estilhaçarem-se em cacos de vidro, o par que assistia à apresentação desde os reposteiros, o gerente e o apresentador, o primeiro que estremecia de fúria, que avançava para deter aquela invasão, contrariando a ordem de não se mover.

Então, os rapazes perceberam o que estava a acontecer na sua perplexidade, que mimava os frequentadores também perplexos daquele estabelecimento de diversão, de bebida, de música, de escape. A polícia entrava pelo clube adentro. A polícia tinha-os descoberto!

A polícia gritava para que fossem obedecidos. Que todos fossem para o chão! Para, deste modo, identificarem os seus alvos. Os braços estavam esticados, objetos negros estavam nas suas mãos. Pistolas! Armas mortais!

A adrenalina lançou uma chicotada ao seu sistema nervoso. No início, eles não se mexeram, petrificados numa sensação esmagadora de terror.

O alarido obrigou-os a reagir. John arrancou a guitarra e atirou-a sem qualquer cuidado para trás das costas. Escutou-se um som distorcido pelo amplificador, as cordas que tangeram com o impacto.

— Corram! – pediu aos companheiros.

George imitou-o, mas descartou-se da guitarra com mais cuidado, pousando-a no chão. Agachado, enfiou a cabeça entre os ombros e olhou em volta. Não sabia que direção tomar. Paul fez a pergunta que lhe incendiava a mente em pânico.

— Correr para onde, Johnny?

John apontou para a porta de chapa que ele tinha descoberto no início, na parede oposta àquela onde se penduravam os reposteiros e que constituía a entrada para o palco, que o gerente e o apresentador estiveram a guardar durante o espetáculo.

— Por ali! Por ali!

Ringo gritou:

— Paul!

Quando ele olhou teve de erguer os braços para apanhar o que o baterista lhe enviava. O saco do dinheiro que voara pelo ar e que Ringo atirara. Descartou-se da viola-baixo no movimento seguinte, encostando-a ao piano, com cuidado idêntico ao demonstrado por George. Escutou-se um apito agudo de feedback, os instrumentos estavam perto demais das colunas de som.

John receou que a porta estivesse trancada, afinal existia outra passagem que conduzia ao palco. Pensou rapidamente que se assim sucedesse iria abri-la a pontapé. A urgência tinha-lhe incrementado as forças, tinha-o tornado arguto, conciso, pragmático.

Algumas pessoas começaram a protestar pela interrupção da festa. A música estava ótima, perguntavam o que os músicos tinham feito, por que motivo estavam a prender a banda. A polícia insistia em mandá-las para o chão. Uma muralha de agentes avançou pela sala na direção do palco, compacta, talvez uns sete ou oito homens. As pistolas em riste. As ameaçadoras pistolas que podiam disparar a qualquer momento para que a ordem de imobilização fosse obedecida.

O pontapé não foi necessário. John rodou a maçaneta e abriu a porta. A chapa reverberou com um som metálico ao girar nos gonzos e ao bater contra a parede nua. Ele tropeçou nos caixotes de papelão que juncavam aquele corredor escuro. Afastou-os com os pés, correu. Não via nada à frente mas acreditava que dali conseguia chegar à rua. Seria uma espécie de arrecadação, uma passagem secundária, um acesso às traseiras. Chamou pelos amigos.

— Paul! George! Ringo!

O mais novo passou a seguir empurrado por Paul que verificava que estavam mesmo todos a fugir. Chamou pelo baterista, desesperado.

— Vamos, depressa. Vem por aqui!

Ringo atrapalhou-se com o banco, a perna esquerda, de alguma maneira, ficou presa ou talvez tivesse sido o tecido das calças que se enganchou nalguma protuberância dos bombos, no pedal, no que fosse. Ringo caiu de borco derrubando a bateria e o microfone que se desprendeu do pé metálico e começou a rebolar pelas tábuas do palco, até cair da borda com um barulho grave aumentado pelas colunas de som.

O sangue de Paul fugiu-lhe do rosto e ele empalideceu.

— Rin-Ringo… – gaguejou.

Sentiu um puxão no seu casaco remendado. George puxava por ele por se ter alarmado ao distinguir, nos limites do palco, os olhos focados e raivosos de um dos agentes. Não eram apenas vultos indistintos que avançavam imparáveis na sua direção. Já se viam os olhos, estavam muito perto. A polícia acercava-se perigosamente deles e do lugar onde eles estavam. Paul correu atrás de George e de John, que gemeu ao dar uma cabeçada na parede. Praguejou, infletiu numa direção que o levava para a direita, incitou os outros a virarem, a continuarem atrás dele, vislumbrou uma faixa de luz no chão e acreditou que se tratava de uma segunda porta. Acertou. Tateou rapidamente a chapa, encontrou a maçaneta, rodou-a. O ar frio da rua bateu-lhes na cara. Saíram para o exterior e continuaram a correr. Já tinha anoitecido e havia um véu de neblina que toldava a luz dos candeeiros acesos. Paul olhou por cima do ombro e viu que Ringo não vinha com eles.

Ringo tinha sido apanhado pela polícia!

— Esperem!

Mas ninguém estava com disposição para escutá-lo. Nem iriam escutá-lo. Paul fechou as pálpebras com força, cerrou os dentes, desiludido por não ter voltado para trás para socorrer o companheiro que caíra, zangado porque toda a gente era egoísta quando se tratava de salvar a pele. Até eles que, minutos atrás, estavam a tocar e a entender-se musicalmente na mais perfeita das harmonias. Na mão tinha o saco do dinheiro que se sacudia por cada passada que dava e odiava aquilo, o que continha, o que representava.

Estavam novamente a fugir pelas ruelas tortuosas das traseiras daquele quarteirão. John chefiava o cortejo fugitivo e quando entraram numa rua mais larga, viram a avenida principal à sua esquerda, as árvores a espreitar, a calmaria doce de um início de noite em que os reclamos se acendiam por cima das cafetarias, dos restaurantes, das lojas de conveniência que labutavam num horário mais tardio. Foram até à avenida mas estacaram logo a seguir, no passeio recentemente varrido.

Os carros da polícia estacionavam mais adiante, à porta do clube onde também existia, sobre a porta principal de entrada, um reclamo a piscar que anunciava o nome daquela casa. Dali não conseguiram ler o nome do clube e nem tentaram lê-lo.

Escoltado por dois agentes, algemado com as mãos atrás das costas, Ringo saía do clube. Cabisbaixo e aos encontrões, Ringo avançava prisioneiro, sob custódia das autoridades. Um dos agentes meteu-lhe uma mão sobre a cabeça e obrigou-o a entrar, vergado e derrotado, num dos automóveis que mantinha as sirenes rotativas ligadas. Laivos de vermelho pintavam aquela detenção e davam à cena uma aura lúgubre.

John entreabriu os lábios para murmurar:

— Oh!...

Só se tinha apercebido que o baterista não vinha com eles naquele instante. Paul não o podia censurar. Pela mudez fúnebre de George, o mesmo se passava com o guitarrista. Aceitou o desnorte dos amigos, desculpou-os com a ânsia da fuga, com o melindre de toda aquela situação, com a emergência de escaparem ao destino. Ele, Paul McCartney, também não tinha ido em socorro de Richard Starkey.

Desanimados, refugiaram-se num beco silencioso.

Sentaram-se ao lado de um mendigo. Paul pousou o saco entre as pernas fletidas, escondeu a cabeça nas mãos. Deixaram-se ficar, calados e amofinados. O mendigo não lhes disse nada.


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Notas finais do capítulo

E a polícia finalmente apanhou-os!
Ou melhor, apanhou o Ringo - o que não deixa de ser tragicamente irónico pois ele é de facto o único bandido assumido desta história.
Mas eles já são um grupo... Um grupo de bandidos, um grupo musical, um grupo de amigos. O que poderá acontecer agora?

Antes convido-vos a rever o concerto que os rapazes deram no clube. Aqui fica o link para a playlist. Não estão todas as canções, pois algumas não se encontram disponíveis, mas estão quase todas, especialmente as versões de outros artistas. Tentei juntar apenas apresentações ao vivo, pelo que não estranhem a fraca qualidade pois tem que ver com o equipamento de som da época...
https://www.youtube.com/watch?v=5gbb1gLhI3o&list=PL_30PemdEPVSPYIP5OqikNqNt9_gOzKzR

Próximo capítulo:
A coisa certa.