Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 32
A melhor noite das nossas vidas


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
John, Paul, George e Ringo descobrem-se no interior de um clube, em cima de um palco e resolvem, para continuar a fuga... tocar e cantar. O público é difícil mas a sua atuação é cheia de rock 'n roll e de energia e parece que começa a correr bem...



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/734139/chapter/32

O gerente do clube aplaudia e fazia um comentário ao ouvido do apresentador que meneava a cabeça como um boneco de mola, daqueles que saem de uma caixa colorida. A excentricidade da sua roupa remetia para essa imagem.

Estariam a fazer comparações com a banda original, não se importando a mínima com aqueles usurpadores e impostores. Talvez o tal Johnny se fizesse acompanhar de uns músicos medíocres, talvez esse Johnny tivesse dado à sola e os quatro, providencialmente, ao aparecerem de rompante no clube, tivessem resgatado aquele estabelecimento de um eventual marasmo, de um provável vandalismo por clientes descontentes e mais agressivos que esperavam ter uma banda a tocar para se distraírem enquanto consumiam a sua bebida alcoólica preferida. Eles estavam a dar conta do recado e não havia a necessidade de expulsá-los do palco. Podiam continuar desde que mantivessem o nível elevado. Noção que não se cruzava no seu pensamento, não possuíam um objetivo preciso no que se relacionasse àquela apresentação, iam improvisando à medida que o tempo se alargava, nem se lembravam mais que estavam a fugir à polícia…

Os aplausos provenientes da sala e que lhes eram dirigidos operavam a derradeira magia e eles sentiam-se muito melhor. Uma sensação de que o seu empenho, todo aquele suor, as dores nos dedos e nos braços, as dúvidas e as desafinações estavam a compensar.

Ringo terminou o cigarro e apagou a beata no chão. George acercou-se do microfone e cumprimentou a audiência com um arrojo inédito. Estava muito corado por causa do esforço, pelo que ninguém percebeu que ele também enrubescera de vergonha.

— Boa noite, senhoras e senhores. Vamos continuar com a nossa atuação com uma canção… mais para o cómico.

Paul encolheu os ombros para responder à pergunta de John sobre o que o mais novo estaria a preparar. Estavam a navegar à vista, sem farol, sem cartas, sem bússola, ao sabor do vento e das marés. Deviam continuar comprometidos naquela aventura e apoiarem-se mutuamente. Sem problema nesse quesito, encontravam-se imersos naquele contrato tácito.

George começou a cantar “Three Cool Cats”, canção composta por Leiber e Stoller que tinha sido um lado B obscuro de um disco do grupo The Coasters. John e Paul reconheceram a canção e providenciaram os coros de apoio, cantando algumas partes também. Juntavam-se no único microfone e a harmonia vocal, que já tinha sido exibida naquela noite – ou naquele início de tarde, eles não sabiam quanto tempo já se tinha passado – agradava às pessoas que batiam palmas, que se desdobravam em exclamações de espanto.

De seguida, John anunciou que iriam continuar no tom humorístico e que aquela era uma piada entre eles. Se alguém percebesse do que se tratava, o seu amigo capitalista que tocava viola-baixo pagaria uma bebida ao feliz vencedor do concurso. Paul negou enfaticamente, mas teve de se calar quando John arrancou com os acordes de “Money (That’s What I Want)”, uma composição de Gordy Jr. e de Bradford que foi cantada pela primeira vez por Barrett Strong, que também escreveu alguns êxitos para o grupo The Temptations.

Dinheiro. Falava-se de dinheiro.

Toda a gente se sentiu atingida, marcada, influenciada, transportada por aquelas notas musicais exigentes e vistosas. O público reagia alegre e juntava as mãos num incentivo rítmico à música, o gerente estremecia e conferenciava com o apresentador, não compreendia por que razão estava a banda a exigir mais dinheiro. Ringo ria-se atrás da bateria e olhava para o saco castanho a seus pés, George e Paul sorriam ao recordarem o assalto ao Banco Central, John cantava na sua melhor voz rouca antegozando as maravilhas que o seu quinhão no roubo lhe iria proporcionar. Quando terminaram receberam outro aplauso enérgico. Notaram que os empregados se mexiam mais pelo recinto, estavam a servir mais bebidas. A atuação estaria a potenciar o consumo e o gerente estaria, por certo, satisfeito. Embora os donos dos clubes noturnos, ou vespertinos, o avançar do dia tinha-se perdido naquele interior abafado, nunca ficassem agradados com a receita que faziam diariamente e nunca pagavam convenientemente aos músicos que tocavam para eles. Eles iriam ser pagos? Entreolharam-se ao pensarem na mesma questão, ao mesmo tempo.

Mas antes que pudessem beber alguma coisa que lhes aliviasse o calor e a sede, antes de puderem fazer a pergunta sacramental ao gerente do clube que os observava rapace, como se antecipasse algum deslize, como se estivesse a guardar a saída para que eles não abandonassem o palco, George disse que iria cantar uma canção sua.

— Uma canção tua? – estranhou John.

— Tenho canções minhas… Contei-vos no autocarro para Viejos.

— Ah, sim! Claro que sim! – exclamou Paul, apontando com um dedo, os outros dedos a segurar na palheta. Soprou para afastar a franja das pestanas. – Muito bem, Harrison. Avança lá com uma canção tua. O que temos de fazer?

— Começamos em Sol e passamos para Lá. Depois acompanham-me.

John concordou e olhou para Ringo que indicou que estava pronto.

E George tocou a introdução. E George cantou.

 

I’ve got a word or two to say about the things that you do

You’re telling all those lies, about the good things that we can have

It we close our eyes

 

Do what you want to do and go where you’re going to

Think for yourself ‘cos I won’t be there with you

 

Tenho uma palavra ou duas para dizer sobre as coisas que fazes

Contas todas essas mentiras, sobre as coisas boas que podemos ter

Se fecharmos os olhos

 

Faz o que queres fazer e vai onde queres ir

Pensa por ti próprio pois eu não vou estar lá contigo.

 

John e Paul trocaram um sinal de aprovação que fizeram com os olhos, um trejeito com a boca. A canção era boa e continha uma mensagem de emancipação, de descrédito e de esperança negra num futuro em que havia escolhas a serem feitas. Mentiras, verdades, enganos, fantasia e realidade.

 

I left you far behind the ruins of the life that you have in mind

And though you still can see, I know you’re mind’s made up

You’re gonna cause more misery

 

Do what you want to do and go where you’re going to

Think for yourself ‘cos I won’t be there with you

 

Deixei para trás a vida arruinada que tens em mente

E embora ainda consigas ver, sei que tens a cabeça feita

E que vais causar mais desgraça.

 

Faz o que queres fazer e vai onde queres ir

Pensa por ti próprio pois eu não vou estar lá contigo.

 

Seria outro amor perdido, uma canção composta durante um momento de retribuição doce, um recado que nunca seria escutado pelos ouvidos a quem era dedicado, como a moça que partira de comboio e saíra da vida de John? George era do tipo mais circunspecto, tímido, caseiro, estava para casar… Ou aquele seria um recado relacionado com o dinheiro, tão eloquentemente elogiado na canção anterior?

O vil metal nunca causara felicidade, mas ajudava a elevar o ânimo. Ou pelo menos comprava o que era agradável, especial, cobiçado, que, em última análise, proporcionava essa felicidade.

 

Although your mind’s opaque, try thinking more if just for your own sake

The future still looks good, and you’ve got time to rectify

All the things that you should.

 

Do what you want to do and go where you’re going to

Think for yourself ‘cos I won’t be there with you

 

Embora a tua mente seja opaca, tenta pensar mais em teu proveito

O futuro ainda parece promissor, e tens tempo para retificar

Todas as coisas que podes corrigir.

 

Faz o que queres fazer e vai onde queres ir

Pensa por ti próprio pois eu não vou estar lá contigo.

 

As guitarras emprestavam a densidade à letra, criavam a atmosfera de desilusão, de sermão que pretendia encaminhar quem se transviara ou simplesmente fazer uma despedida seca a quem fora importante, um dia. A mensagem era a de usar a própria cabeça para definir um caminho que fosse certo, qualquer que esse fosse. Sem julgamentos, sem segundas intenções, sem moralismos.

As palmas ruidosas do público indicaram que a canção agradara. George agradeceu com uma vénia, dobrando as costas. O gesto caiu bem entre os outros, pois todos o acompanharem na mesura. Até Ringo se levantou do banco e fez o mesmo agradecimento à audiência.

— Uh... Muito profundo! – comentou John impressionado.

— Obrigado…

— Gostei da letra – indicou Paul. – Devemos pensar por nós… sempre.

— Ajudados pelos amigos – completou John.

— Sim! Com uma pequena ajuda dos nossos amigos – concluiu Ringo.

George sorriu.

— Claro… Juntos somos mais fortes.

O público estava a assobiar. Pedia mais música. Pelo canto do olho John notou o gerente a agitar as mãos, a incitá-los para que prosseguissem com a atuação. O homem era sinistro, o contrário do apresentador que era faiscante no seu casaco de lantejoulas. Sombras e luz.

Paul apontou para trás das costas.

— Está ali um piano.

John esqueceu o gerente charlatão, mais o seu amigo flamejante.

— Sim, Macca… Vais tocar?

— O que achas? – disse Paul abrindo um enorme sorriso.

— Ah, teclas! O Paulie não resiste às teclas!

Paul retirou a viola-baixo, passando a faixa por cima da cabeça, agarrou-a com as duas mãos e estendeu-a ao amigo.

— Tocas baixo por mim?

— Estás maluco? Nunca na vida... Antes tinha de mudar as cordas.

— Eu vou improvisando uma melodia e tu mudas as cordas.

— Definitivamente, estás maluco… George!

— Tocamos sem baixo – avisou Harrison encabulado. Ele também nunca tocaria baixo, a sua paixão eram as guitarras, seria sempre a guitarra e ponto final.

John encolheu os ombros.

— A ver se estou preocupado… Tocamos sem baixo. Tu fazes a linha mais grave na guitarra, George. Como no início. Dependendo do que o Paul for tocar, mas acredito que não vai ficar esquisito. Vai ser uma espécie de balada, de cançoneta de bar de hotel.

— Gostas muito de dar ordens.

— Sou o líder desta banda!

A irritação subiu ao rosto de George que ficou ainda mais vermelho. Bufou e rangeu os dentes.

— Ele é o Johnny e nós somos os Moondogs – lembrou Ringo.

— Ah… Claro… Ainda bem que podemos contar contigo para sabermos essas coisas – resmungou o guitarrista e voltou a apertar tarraxas para afinar o seu instrumento, para deixar de encarar John. Ringo abriu os braços sem compreender o que tinha dito de errado.

Paul sentou-se no banco almofadado com veludo azul. Um holofote projetava-se tenuemente sobre o local, iluminando-o com uma luz esparsa. Passou os dedos pelas teclas de marfim. Como todos os instrumentos daquele clube, o piano também estava desafinado, mas podia conviver com essa ligeira oscilação. Mordeu o lábio inferior enquanto tocava algumas passagens acentuadas por acordes simples. Encontrou o tom certo e começou.

 

You never give me your money

You only give me your funny paper

And in the middle of negotiation

You break down

 

Nunca me dás o teu dinheiro

Apenas me dás o teu papel esquisito

E no meio das negociações

Vais-te abaixo

 

E era verdade.

Era o seu cartão de crédito que tinha suportado todas as despesas. O dinheiro, essa malfadada fortuna que residia no interior de um saco castanho de tecido, não servia para nada a não ser para fazê-los correr, para fazê-los suar e ter medo. Era um senhor que os escravizava…

Entraram as guitarras, os pratos da bateria. A canção tornou-se surreal, inflou numa esfera transparente de harmonia e paz, outro mundo, um mundo bonito de som e de sensações. Envolveu o palco, a sala, o clube inteiro. Todos escutavam em reverência a melancolia implícita naquela composição de Paul McCartney. O peito de John encheu-se de orgulho. Não era uma cançoneta simplória de bar de hotel.

 

I never give you my number

I only give you my situation

And in the middle of investigation

I break down

 

Nunca te dou o meu número

Apenas te dou a minha situação

E no meio da investigação

Vou-me abaixo

 

Então, uma mudança. O momento tornou-se pertinente, perene, eficaz. Houve um pequeno sobressalto com um acorde mais rico, os dedos de Paul afundaram-se nas teclas, a sua voz assumiu um tom mais realístico. Antes era uma lamentação, agora era a experiência dura.

Gostava de cantar com os olhos fechados e fechou-os. O piano soava rude, a sublinhar cada frase, cada comoção. Era uma história, igual a tantas outras, de quem se sentia perdido e desfeito. Depois de pensar por si próprio havia o mundo para enfrentar…

 

Out of college, money spent, see no future, pay no rent

All the money’s gone, nowhere to go

Any jobber got the sack, Monday morning, turning back

Yellow lorry slow, nowhere to go

But, oh, that magic feeling, nowhere to go

 

Fim da faculdade, dinheiro gasto, sem futuro, sem pagar a renda

Todo o dinheiro se foi, nenhum lugar para ir

Aceitar qualquer trabalho, na segunda de manhã devolvê-lo

Uma carrinha amarela lenta, nenhum lugar para ir

Mas, oh, aquela mágica impressão, nenhum lugar para ir

 

George entrou espetacularmente com a sua guitarra, John compunha o ritmo das teclas com as suas cordas, Ringo inspirava-se na melancolia da melodia que Paul arrancava do piano.

Então, uma ilusão. Um sorriso.

 

One sweet dream, pick up the bags and get in the limousine

Soon we’ll be away from here

Step on the gas and wipe that tear away

One sweet dream came true today.

 

Um sonho maravilhoso, agarra nas malas e entra na limusina

Em breve estaremos longe daqui

Para na estação de serviço e limpa essa lágrima

Um sonho maravilhoso tornou-se realidade hoje.

 

Estava a ser como cantavam.

Um sonho maravilhoso tornava-se realidade.

Música, leveza.

Hora de apartar a tristeza, de limpar as lágrimas, de olhar o horizonte.

Aplausos da plateia. Um aplauso gigantesco. Houve quem se pusesse de pé e gritasse “bravo!” como na ópera.

Havia mais, muito mais, depois daquele dia. Daquela tarde que era uma noite que continuava a ser tarde no mundo e eles ali enfiados, numa bolha mágica com as suas guitarras, com a sua bateria, com um piano, longe de tudo mas tão perto do que verdadeiramente eram.

Não se resumia a um saco castanho cheio de dinheiro.

Eram deuses. Eram imortais. Eram a essência pura das suas almas artísticas. Havia dois lados. A realidade e a fantasia. Eles moviam-se entre esses mundos, deslizando como astros luminosos que alumiavam ambas as facetas. Pintando o que era escuro, tisnando o que era branco. Eles influenciavam, eles modificavam, eles experimentavam.

Principalmente estavam a criar música e sentiam-se esplêndidos.

Estava a ser a melhor noite das suas vidas.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O concerto dos quatro rapazes prossegue e o público finalmente começa a corresponder ao que está a acontecer naquele palco acanhado.
Duas canções dos Beatles, uma do George Harrison, outra creditada ao Paul McCartney em que eles revelam o que pensam sobre aquela situação toda.
Pensar pela própria cabeça e dinheiro...
O grupo afirma-se e assim continuará enquanto continuam também a tocar.

Próximo capítulo:
Grupo.