Na Minha Vida escrita por André Tornado


Capítulo 19
O sol que brilha no céu


Notas iniciais do capítulo

No capítulo anterior:
Correndo sem parar, Paul, George e Ringo conseguem fugir dos guerreiros canibais e chegam ao barco. Depois de uma prova de natação muito dramática, John também chega ao barco e finalmente os quatro abandonam a ilha deserta.



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O combustível terminou mais ou menos uma hora depois de terem saído da ilha. Ringo podia jurar que ainda conseguia ver os contornos daquele lugar infernal e amaldiçoado, onde tinham fugido pela própria vida, quando o motor se calou com um gorgolejo, anunciando o fim da gasolina. Estavam ainda demasiado perto da ilha e o baterista, que não sabia nadar, entrou em pânico ao considerar a hipótese de as marés levarem-nos de volta a esse sítio, já que iriam ficar à deriva, mas John ameaçou-o com um dos remos, obrigou-o a sentar-se e a remar para não apanharem essas famosas marés.

Levaram a tarde toda a remar, revezando-se entre os quatro e no fim do dia, mais esgotados do que nunca, comeram cada um o seu fruto rosado – George e Ringo tinham conseguido reunir dez frutos e depois pararam quando apareceram os guerreiros e tiveram de ir socorrer Paul – o que dava uma ração individual de um fruto por dia, metade de um fruto no terceiro dia e depois já não teriam mais nada para comer.

Ainda consideraram racionar o primeiro fruto, mas quando terminaram a discussão, optando por uma votação para ver o que iriam fazer e que fosse consensual entre todos, já George tinha comido o seu, tão esfomeado estava e todos fizeram o mesmo.

Deitaram-se a dormir, embalados pelas ondas e despertaram na manhã seguinte com o corpo massacrado, os ossos moídos, cheios de sede e de fome, conservando, todavia, alguma esperança de que iriam ser resgatados por algum barco que passasse por aqueles mares.

Conversavam um pouco, optavam por longas horas de silêncio, simplesmente sentados nos bancos, a contemplar o oceano infinito que os levava devagar para algum lugar. O barco baloiçava suavemente e o céu estava limpo. Por um lado, era uma sorte, não se avistavam nuvens e não tinham mais essa preocupação para apoquentá-los, pois aquela embarcação não se aguentaria numa tempestade, se apanhasse esse mau tempo. Afundaria num instante. Por outro lado, sem qualquer nuvem, o sol tórrido brilhava e o seu calor impossível açoitava-os com uma violência insuportável.

— Eu quero tanto, tanto, tanto um cigarro! – lamentou-se John.

— Eu também – anuiu George desmoralizado.

Tinham rasgado faixas das blusas para atarem na cabeça, mas assim ficavam com os torsos descobertos e queimavam a pele nesses lugares expostos. O nariz de Ringo já estava a descascar e riam-se todos por ele estar tão vermelho das queimaduras. Depois era a vez de Ringo devolver as risadas de escárnio, apontando-lhes o mesmo estado deplorável dos narizes deles.

John perguntou:

— Tu fumas, miúdo?

— Hum-hum…

— Isso faz-te mal.

— A ti também. E não me chames de miúdo, não sou assim tão mais novo do que tu. E nem vale a pena perguntares-me a idade. Não ta direi!

— Certo, Georgie.

A voz de Paul arrastou-se, áspera por conta da boca seca:

— Parem com a discussão… Parem de me lembrar que eu já devia ter largado esse vício. Mas quando a Jane me deixou, regressei ao tabaco. O meu maço de cigarros ficou com o meu telemóvel, no escritório.

— O meu ficou todo destruído na areia da praia.

— O teu maço de cigarros?

— O meu telemóvel, John!

— O meu telemóvel também, Georgie. Mas conseguimos fazer fogo…

— Será que é assim tão difícil para ti chamares-me pelo meu nome? George?!

— Eu também fumo e estou calado – alfinetou Ringo a acariciar o saco de dinheiro. Desde que o recuperara, nunca mais o tinha largado e dormia agarrado a este. – E que interessa o raio dos cigarros e a falta que nos faz?

— Se tivesse um cigarro impedia-me de pensar no meu estômago vazio – explicou John um pouco brusco.

— Porque é que não o tratas por Richie? – provocou George. – Ele não gosta.

— É mais divertido irritar-te… Geor… George!

Paul mandou-os calar com um “chiu” prolongado que o fez tossir. Puxou a guitarra acústica e começou a passar os dedos pelas cordas, fazendo soar vários acordes que ecoaram no silêncio do mar.

— Vais cantar, Macca?

— Sim. Querem ouvir?

— Queremos, claro que sim – disse George num tom mais animado.

A guitarra soou hesitante, como num ensaio, a buscar a melodia ideal, perfeita, adequada à letra que o cantor tinha em mente. À quietude do mar juntou-se a quietude dos passageiros desafortunados daquele batel à deriva.

A música tocou-lhes na alma, bonita e singela, como uma carícia desejada e mais fresca do que aquele sol inclemente. Romântica e lânguida, com um aroma subtil de alegria juvenil. Foi delicioso escutar a voz de Paul, enérgica, malgrado as pobres circunstâncias em que todos se encontravam mergulhados.

One day you’ll look to see I’ve gone

For tomorrow may rain, so I’ll follow the sun

Some day you’ll know I was the one

But tomorrow may rain, so I’ll follow the sun

 

Um dia vais perceber que eu fui-me embora

Pois amanhã pode chover, então eu seguirei o sol

Algum dia saberás que eu era o tal

Mas amanhã pode chover, então eu seguirei o sol

Para escutar melhor, porque lhe parecia que dessa maneira ouvia com mais clareza o timbre sedoso da voz do amigo, John fechou os olhos. Esqueceu os cigarros, a fome, a sede, o enjoo, a estúpida solidão, o azar e o destino. Focou-se naquele amor perdido que voava desprendido, carregado naquela letra oscilante como a maré.

And now the time has come

And so my love I must go

And thought I lose a friend

In the end you will know, oh

 

E agora a altura chegou

E então meu amor tenho de ir

E embora irei perder uma amiga

No fim ficarás a saber, oh

Ele sabia que era uma composição recente de Paul. Não se falavam havia alguns meses, desde que ele tinha começado a trabalhar naquela empresa de logística da qual tinha sido despedido – isso parecia ter acontecido havia séculos e não tinha mais qualquer importância naquele instante em que a sua vida perigava dentro daquele barco sem rumo – nem sempre se mantinham num contacto constante e era uma pena e um desperdício, contudo ele conhecia Paul suficientemente bem para saber que aquela canção se relacionava com a Jane. Com a cabra da Jane que tinha deixado o seu amigo e que lhe partira o coração!

One day you’ll look to see I’ve gone

But tomorrow may rain, so I’ll follow the sun

 

Um dia vais perceber que eu fui-me embora

Mas amanhã pode chover, então eu seguirei o sol

Nunca gostara dessa Jane, a estúpida e arrogante, a víbora da Jane. Ela também nunca gostara muito dele porque costumava chamar-lhe tudo o que pensava dela. Isso mesmo. Estúpida, arrogante e víbora. E cabra também, claro, que ele não guardava nada para si quando se tratava de gente com quem embirrava e de quem não gostava. Queria tê-la ali à frente para… dar-lhe um beijo na boca e agradecer-lhe a inspiração. Se não fosse por causa dela, Paul nunca teria escrito aquela canção maravilhosa e delicodoce, tão ao seu estilo peculiar de bom rapaz. E assim John sorriu, satisfeito.

One day you’ll look to see I’ve gone

But tomorrow may rain, so I’ll follow the sun

 

Um dia vais perceber que eu fui-me embora

Mas amanhã pode chover, então eu seguirei o sol

No fim da canção, Ringo limpava as lágrimas dos olhos. Numa voz embargada implorou:

— Peço-vos muita desculpa… Se não fosse por causa de mim não estávamos a morrer dentro deste barco.

Abraçando-se à guitarra, arrepiado, Paul contestou num murmúrio:

— Nós não estamos a morrer.

— O sol está a fazer-te mal, Ringo! – apontou John despertando do seu encanto.

George tentou falar, mas desistiu, apenas moveu a boca, abrindo-a e fechando-a. Agitado, Ringo confessou, a rouquidão a exacerbar a sua emotividade, a tornar o discurso pesado e sincero:

— Oh, estão a ser demasiado bons para mim. Não vos mereço… Não mereço estar com vocês e vocês não merecem estar comigo. A culpa é toda minha. Fui eu que comecei esta série de acontecimentos que nos levou a este momento, ao meio do oceano, à espera… à espera de alguma coisa! Só temos metade de um fruto e depois acabou-se. Não passam barcos aqui e depois acabou-se… Não queria que tivesse sido assim, mas se pudesse adivinhar o que iria acontecer, quando saí da minha casa, no cais antigo, para ir assaltar alguém ou alguma coisa, não me teria levantado da cama, acreditem… É tudo culpa minha. Se eu não tivesse entrado no carro de John, se não tivéssemos ido ao Banco Central e depois raptado o George, a polícia não teria vindo à nossa procura no meu esconderijo e não nos teríamos enfiado neste barco quando estava a anoitecer. Não teríamos ido parar àquela ilha onde vive uma tribo de canibais, não tínhamos estado eu e o George a ponto de sermos comidos, vocês não se teriam arriscado por nós, não era preciso fugir à pressa num barco sem gasolina que agora está a navegar sem rota no mar, sem qualquer perspetiva de salvação. Perdoem-me!!

Fora um excelente resumo do que tinha sucedido até ali. Se a ocasião não fosse tão dramática, John teria aplaudido, mas refreou a vontade de fazer mais uma das suas piadas com aquilo. Sentou-se ao lado de Ringo.

— Ei, companheiro. Até que tem sido divertido. Lembra-te, não faço nada disto por ti. Faço-o por causa dos cem mil euros que estão dentro desse saco castanho e que me pertencem. Combinado? Nem penses que nos enganas com essas lamúrias. Vamos todos sobreviver e vamos todos comemorar a nossa vitória sobre todas estas dificuldades. E viver como pequenos príncipes, durante, pelo menos, alguns dias, pois cem mil euros não darão para satisfazer todas as minhas excentricidades.

Paul e George também se sentaram no mesmo banco de Ringo e afirmaram a sua solidariedade, a sua amizade, a sua vontade em superar aquele momento difícil. Também falaram no seu quinhão do dinheiro roubado e, entre as lágrimas, Ringo riu-se. Juntos e próximos uns dos outros, abraçaram-se, relembraram alguns detalhes com humor. Era uma história interessante e de tal modo extraordinária que até daria um bom argumento para um filme. E perdoaram-no.

No entanto, na manhã do quarto dia, as coisas já não pareciam tão otimistas. Sem comida, sem água, com um enorme mar azul a rodeá-los até perder de vista, a situação não melhorara e o problema só se agudizara.

John despertou. Os outros dormiam, em posições estranhas e desconfortáveis, cada um no seu recanto do pequeno barco. Debruçou-se sobre a borda do barco. Encheu uma mão em concha com água e passou-a pela cara, pelos lábios ressequidos. Teve a tentação de bebê-la, mas sabia, de todos os filmes que vira sobre naufrágios e de homens perdidos dias a fio no mar em botes salva-vidas, crestados pelo sol e enfraquecidos pelas privações, que era mortalmente perigoso beber água salgada. Começava por alucinar, depois os seus rins parariam e morreria envenenado pelo seu próprio sangue, lenta e dolorosamente.

Era tentador, porém. Tanta, tanta água… Fresca, abundante, disponível.

Deixou o braço pendurado do lado de fora, cotovelo apoiado no parapeito, a fixar embrutecido o mar ondulante e profundo, de uma cor azul baça que cintilava quando recebia a luz do sol nascente. Haveria peixe nas profundezas. Tartarugas, baleias. Vida. E eles a morrer ali em cima.

Houve movimento, o barco oscilou. Paul acordava, esfregava os olhos e notou John naquela postura desistente. Juntou-se a ele, agachou-se com ele.

Paul abraçou John pelos ombros. Puxou-o para si e encostou a sua cabeça na dele, com um longo suspiro. Fechou os olhos e sentiu o calor do outro, o leve bater do coração, a tão simples menção da existência. Era bom estar vivo, era demasiado bom e custava-lhe estar a ver sofrer aqueles que o acompanhavam naquela provação. Via no reflexo dos outros o que ele próprio estava a experimentar, o sofrimento, a degradação gradual do físico. A proximidade era tal que John não aguentou e murmurou:

— Ei, Macca… Estou desesperado… mas não estou assim tão desesperado!

A graçola era outro sinal de que ali existia um espírito único, brilhante, extraordinário, que concentrava uma beleza criativa sem igual. Paul emocionou-se ainda mais. Com a voz a tremer disse:

— Gosto muito de te ter como meu amigo. És o meu melhor amigo.

O corpo de John balançou e Paul não soube dizer se era por causa das ondas, se era uma resposta afirmativa expressa através de um assentimento corporal. Lamentava que tivessem estado tão afastados naqueles últimos tempos, que se vissem somente na rua e que trocassem um sucinto “olá, como tens passado? Bem e tu? Na mesma. Pois, até à vista”. Eles tinham tanto em comum e não se encontravam com frequência, como o deviam ter feito, desde que tinham saído da escola. Para mostrar as canções que escreviam, para saírem juntos e engatarem mulheres desocupadas e oferecidas.

— Adoro-te, Paul McCartney.

Paul engoliu em seco.

— Eu também te adoro, John Lennon.

Entretanto, os outros dois ocupantes do barco já tinham despertado e deparou-se-lhes aquela cena piegas, comovente, retirada de um quadro da pior das novelas televisivas. George e Ringo entreolharam-se, envergonhados.

Pelo sacudir dos ombros, parecia até que John e Paul choravam, com as cabeças unidas, derramando lágrimas que partilhavam com uma tristeza indefinível. A emoção era contagiante e impossível de ignorar.

Os olhos de Ringo estavam aguados e ele pestanejou. George sentou-se no banco e encolheu-se, o outro sentou-se ao lado dele, agarrado miseravelmente ao seu precioso saco de dinheiro.

— Estou carente e…

— Ei, não te conheço assim há tanto tempo para fazer uma confissão parecida – explicou George. – Ou para… para chorar contigo ou o que quer que seja que aqueles dois estão para ali a fazer.

— Mas eu também estou a precisar de um abraço – choramingou Ringo.

George esfregou os próprios braços como se estivesse com frio. Revirou os olhos e acedeu, relutante.

— Está bem… Isto é demasiado estranho, pelas barbas de Neptuno!

Durante um longo momento, os quatro rapazes mantiveram-se abraçados, a consolarem-se mutuamente na sua desgraça e nos seus medos. Se choraram fizeram-no sempre em silêncio, embaraçados com toda a vulnerabilidade demonstrada. Passaram minutos, horas assim até que voltaram a adormecer, cansados e famintos. Nem ânimo possuíam para inventar uma canção que lhes levantasse a moral, para pedir ao outro uma cantiga maliciosa cheia de sentidos dúbios para distraírem o cérebro e o estômago que roncava num protesto contínuo.

George estava a vomitar quando Paul acordou pela segunda vez, naquele dia. O calor era atroz, o brilho intenso daquele clima impiedoso de canícula ofuscava-lhe a visão. Aproximou-se do rapaz e esfregou-lhe as costas. Ele não estava verdadeiramente a expelir nada de uma barriga vazia. Eram só espasmos e espuma esverdeada.

Num canto, Ringo cantarolava e John fingia que ainda dormia, a respiração acelerada, num estado de inquietude e de raiva.

A ironia suprema, julgou Paul delirante, estar ali porque tinham fugido de canibais e para acabar no meio do mar a tirar à sorte para saber quem comeriam primeiro para tentar salvar os outros. John haveria de dizer, como já o tinha dito, que George era demasiado magro para ser comido, que se recusaria a roer ossos. A boca de Paul encheu-se de saliva. Roer um osso, naqueles instantes, seria tão bom!...

O rapaz olhava para o horizonte, com o queixo apoiado na borda.

— O que estás a ver? – perguntou Paul desinteressado.

— Mar…

— Mar – repetiu mecanicamente.

— E um barco enorme de pesca…

— E um barco enorme de pesca – tornou a repetir.

John deu um pulo.

— Um barco?! – gritou.

— Como sabes que é de pesca? – estranhou Ringo, espevitando-se.

George tinha endireitado as costas, apoiou as mãos na borda, apertou a fibra de vidro. Semicerrou as pálpebras para definir se o vulto que se desenhava na lonjura não seria uma miragem derivada da fome. John foi para junto dele. Paul colocou as duas mãos sobre a testa para cortar a luminosidade. O seu coração desatou a bater loucamente. Ringo soluçou.

— Porque tem aquela armação com que se puxam as redes – respondeu o rapaz mais novo.

— Um barco! – gritou John, novamente.

Uma onda de euforia sacudiu os quatro rapazes, sacudiu a embarcação que se agitava perigosamente sobre a água. Havia gritos, acenos, uma felicidade recuperada das cinzas da sua condição condenada e irremediável.

Estavam salvos.


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Notas finais do capítulo

Outro capítulo intenso - mas que terminou bem.
Os quatro rapazes sofreram um pouco, perdidos em alto mar, mas foram salvos.

Apesar de ter sido um capítulo pesado, recheado de momentos muito emotivos, teve música e deixo-vos a ligação para a canção I'll Follow the Sun
https://www.youtube.com/watch?v=OgCkeYGlNXc
(por enquanto vou conseguindo encontrar as canções originais dos Beatles).

A partir deste ponto eles já são um grupo muito unido. Ringo uniu-os em circunstâncias especiais, mas eles já nem se importam com o que aconteceu. O importante é continuarem aquele caminho.

Próximo capítulo:
Uma viagem em terra firme, para variar.