Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 58
Paraíso Seguro




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Após darem certeza a Vitor de que ele não seria expulso do Berg por enquanto, eles partiram para o próximo tópico a ser discutido: como Kenan e Teresa haviam conseguido o Inibidor.

 — Tem alguma chance de eles estarem vindo atrás de nós nesse momento por causa do roubo? – Florence perguntou para os dois.

  — Vão levar bastante tempo para perceber como a máquina foi roubada de fato. Digamos que eu posso ser uma boa manipuladora. – Teresa disse e Perenelle ergueu uma sobrancelha àquilo. A maioria ali tinha pleno conhecimento disso. — E Kenan... deu uma ajudinha.

  — Ah, tá bom! – o garoto replicou sarcástico.

Ela soltou uma risada, mordendo o lábio por puro entusiasmo e orgulho de terem tido sucesso na missão, mas aquele simples ato fez o sangue de Thomas ferver. Mais alguma demonstração de intimidade entre Kenan e Teresa e o antigo Corredor começaria a desconfiar.

  — Fiz a maior parte do trabalho. Ela usou dos dons maquiavélicos dela para convencê-los de que a coisa estava feia na fábrica e os tiros que ouvimos deixaram tudo bem convincente. Treinei um pouco de boxe na cara deles e voilà, tínhamos a localização exata do Inibidor. – Kenan contou.

  — Estava mesmo no trem? – Minho indagou.

  — Sim. No último vagão. – Teresa se balançava sobre as pernas. — Aproveitamos uma parada que ele fez para tirá-lo com um carrinho de mão que estava lá dentro e então começamos a tentar chamar Mallory pelo comunicador deles.

  — Isso foi logo depois do... hum... Pote de Gel Ambulante ali me contar do plano que vocês estavam executando. – a cirurgiã emendou, apontando para Minho ao perceber que não sabia o nome dele. — Achei que todos vocês sabiam o que esses dois estavam fazendo.

  — Empurramos o carrinho para fora e corremos para bem longe, onde ninguém poderia nos notar. – Kenan continuou. — E o restante vocês já sabem.

Perenelle suspirou profundamente, lembrando-se da angústia que sentira ao pensar que sairiam da fábrica sem a máquina. Ela abaixou a cabeça e cobriu o rosto com a mão para soltar mais uma risada satisfeita.

 — Mandou bem. – Harriet cutucou Teresa com um intenso olhar de aprovação. A garota devolveu com um sorriso de canto, sentindo que talvez estivesse no caminho da redenção. Ela olhou para Thomas, que a encarava, sério, encostado a um beliche.

 — Próximo tópico. – Minho disse, chamando a atenção dela.

 — Água. Comida. Gasolina. – ela leu no bloco. — Suprimentos.

 — Não quero que pareça que minha opinião importa, mas acho que seria melhor se não fizéssemos mais tantas paradas. – Andrômeda comentou.

 — Não será preciso. Vamos alçar voo direto para o nosso cafofo. – Jorge uniu as mãos num estalo, levantando-se com entusiasmo.

Um coro de “finalmentes” e vivas encheu o quarto, junto de sorrisos e suspiros de alívio. Brenda pediu que todos fizessem silêncio para que pudessem ouvir o que ele tinha a dizer.

 — Reunimos algumas informações que temos sobre lugares adequados, mas vamos mesmo para o norte da Ásia. É uma das partes do planeta menos afetada e há lugares isolados por lá que podem ser úteis. – ele esclareceu.

 — Quer dizer uma ilha? – Agatha indagou, com um ligeiro tom de esperança.

Jorge fez um curto aceno positivo com a cabeça.

 — Visitei algumas, anos atrás. Se estiverem tão bem quanto me lembro, hermanos, eu particularmente já chamo de casa.

 — Perfeito! – Florence exclamou, seguida de mais outros vivas das meninas.

 — Vamos precisar fazer desse lugar um lugar seguro. – Sonya ergueu o tom de voz para chamar atenção. Todos ficarem quietos. — Realmente seguro. Então, acho justo que saibamos quem vai estar lá.

 — Apoio. – Dina disse.

Os olhares se voltaram para muitas direções, para aqueles que não conheciam. Mike deu um passo para dentro do compartimento principal e fez um aceno para que Yhani entrasse. Ele foi o primeiro a se apresentar, mas se recusou a contar qualquer coisa sobre sua vida.

 — Acho que temos mais o que conversar do que parece. – Brenda comentou, fitando especialmente os Clareanos Minho, Gally, Thomas e Perenelle.

 — O que ele está fazendo aqui, afinal? – Harriet questionou.

 — Eu decidi trazê-lo. Não era prudente deixa-lo nas mãos daquelas pessoas. – Perenelle disse com firmeza.

 — É prudente deixa-lo conosco? – Sonya rebateu.

 — Claro que sim. Como esperam que ele sobreviva daquele jeito?

 — Ele me parecia muito bem inteirado àquele método. — Aris deu de ombros e se dirigiu a Yhani. — Quantos anos você tem?

O homem o encarou por longos e silenciosos segundos, o que obrigou o garoto a desviar o olhar rapidamente.

 — E se essa cadeira tiver algum dispositivo de localização? – Hiro questionou.

 — Não tem. Já verifiquei. – Gally afirmou.

 — Sendo assim, eles tinham plena confiança nele, o que é automaticamente ruim para nós. – Hiro encarava-o com selvageria.

 — Não vamos devolvê-lo como se fosse um objeto. – Perenelle era quase arisca ao falar.

 — Então vamos deixar ele decidir. – Dina concluiu cinicamente, cruzando os braços na direção do cadeirante.

Yhani tinha a boca meio aberta enquanto acompanhava a discussão, e pousou os olhos pacientemente em cada um deles, ponderando sobre a ideia. Por fim, fitou Perenelle.

 — Eu fico. – ele disse, e até mesmo a Clareana se surpreendeu. Ele não parecia nem um pouco feliz com isso.

 — Por que quer ficar? - Thomas indagou.

 — Eles não poderão… arcar comigo... por muito mais… tempo.

 — Certo. Alguém aqui discorda da ideia? – Harriet perguntou com azedume, totalmente sem confiança no homem.

Andrômeda, Mallory, Kenan e duas meninas ergueram a mão.

 — Conversaremos com vocês mais tarde. - a garota disse a eles.

 — Desculpe, docinho, mas sou uma mulher adulta e tenho plena consciência da minha decisão. – Mallory retrucou. — Se vamos falar sobre esse assunto, vamos falar abertamente. Todos precisam saber os riscos que vão tomar.

Assim que ela dirigiu o olhar para Mike, este se sentiu pequeno e se arrependeu de ter votado diferente da mãe.

 — Também precisamos saber de quem é a opinião que estamos ouvindo. – a garota rebateu sem baixar a guarda, encarando a cirurgiã significativamente.

Com o queixo erguido, Mallory deu um passo para ficar sob as vistas de todos e se apresentou. Não poupou detalhes. Disse o nome, os quatro sobrenomes, a idade, onde nasceu, de quem era mãe e como conheceu Perenelle.

 — E tem isso aqui também. – ela ergueu as mangas da blusa para mostrar as veias coloridas. Mike desviou o olhar. A maioria se afastou de algum modo.

Harriet olhou para Perenelle imediatamente.

 — Trouxe uma infectada a bordo?

 — Não, trouxe dois, lembra? – a Clareana replicou, sentindo cheiro de cimento.

 — Newt está desacordado. – ela frisou cada palavra.

 — O que você faria se ele não estivesse?

Harriet se sentiu envergonhada e olhou para Sonya.

 — É diferente. Ela vai se transformar e vai estar muito bem instalada quando isso acontecer. – Harriet não notou quando Mike trocou a perna em que apoiava o peso, encarando-a com austeridade. Perenelle se entreolhou com ele e soube que não precisava dizer mais nada.

 — Se quiser que ela vá embora, vai ter que se resolver comigo, não com a Nelly. – ele disse, fazendo Harriet encara-lo. — Deixaram esses caras ficarem, então ela vai ter que ficar também.

 — Escute... entendo como deve se sentir...

 — Errado. Não faz ideia de como eu me sinto. Por isso, não pense que essa ideia de se livrar de qualquer um assim vai dar certo.

Nenhum dos Clareanos ali tinha visto Mike tão perto de estourar como agora. Na maioria das vezes, ele se limitava às brigas das noites de fogueira ou alguma troca insignificante de socos para esquentar o momento, ir para o Amansador e não ter que trabalhar com o excesso de estresse. Todos eles, inclusive Perenelle, percebiam que Mike iria muito além pela mãe se fosse preciso.

 — Tudo bem. – a líder do Grupo B disse por fim e olhou para Andrômeda com uma clara pose de quem não queria perder a firmeza.

 — Meu nome é Andrômeda Mildred.

Sua pausa deu tempo suficiente para que ouvissem a risada de Dmitri, que foi repreendido por um cutucão de Louis.

 — Eu trabalhava para o CRUEL. Cresci no meio deles depois que meu tio me levou para me criar lá. O nome dele era Hans, ele era médico...

 — Espera, Hans? - Minho interrompeu e olhou para Nelly. — O mesmo que tirou nossos implantes?

 — Sim. - foi Andrômeda quem respondeu. — Ele era um dos neurocirurgiões mais especializados, não queria fazer parte dos planos do CRUEL, mas sabia que era o lugar mais seguro que existia. Então me deixou lá quando fugiu.

 — E então? - Dina incentivou.

 — Nunca mais ouvi falar dele. Fiquei próxima de Ava Paige, ela queria garantir que eu sofresse da lavagem cerebral que meu tio negou, e com o passar do tempo me aperfeiçoei em… um pouco de cada coisa. Eu conhecia tudo que estava por trás dos Experimentos da Fase 3, e então soube que houvera fugitivos: a maioria de vocês aqui. Entrei em contato com Jordan na esperança de que ela conseguisse se juntar a vocês e resolver tudo aquilo. E… funcionou.

O silêncio se fez presente pelos próximos segundos, enquanto todos digeriam o relato, e especialmente o fato de que ela fizera parte do alto escalão do CRUEL, que era o mais indigesto.

Com o tempo, deram prosseguimento às apresentações.

 

Em poucas horas de viagem, eles estariam na ilha. Todos, com a exceção apenas de Yhani, estavam pondo expectativas. Mallory apresentara na reunião um planejamento para o local: hierarquia, tarefas, preparação da cura, instruções para lidar com Newt.

 — Precisei manter a cabeça distraída enquanto eles estavam lá na fábrica. - ela comentou particularmente com Perenelle, e não era preciso fazer esforço para saber que se referia a Mike e Kenan.

 — E aí, ele já começou a aceitar o novo nome? - a Clareana perguntou, fazendo anotações no verso da folha de planejamento.

 — É claro que não. Não sei como você aceitou o seu tão cedo.

 — Nunca deixei realmente de querer saber sobre a minha verdadeira vida. O fato de Mike ter a chance de passar um tempo com você é… invejável, se posso ser sincera.

 — Garota, não sou alguém que meça palavras. Fico feliz que ele tenha Kenan, no fim das contas.

Perenelle parou de escrever a fim de ponderar sobre aquilo.

 — Mallory, se não se importa que eu pergunte…

 — Nunca conheci o pai deles. - a mulher adiantou. — Não tradicionalmente, pelo menos. Eu queria ter filhos, mas sempre odiei a ideia de casar. Além disso, quem é que precisa de um macho tirando toda a decência que posso ensinar aos meus bebês? Kenan é um príncipe! Sabe tudo o que tem que saber sobre o pai e nunca o vi reclamar de como as coisas são. Agora, sobre o Roman…

 — Olha, - Perenelle riu. — não posso dizer que é um príncipe, mas… eu não podia ter pedido por um amigo melhor.

 — Sabe-se lá. Ele viveu apenas com meninos a vida inteira e aqueles malditos cientistas tiraram tudo que ele tinha antes disso.

 — Eles souberam se organizar sozinhos, Mallory, são responsáveis…

 — Ora, era o mínimo esperado! Enfim… Não me resta muito que fazer. - a mulher observou as próprias veias, alisando-as, e num movimento abrupto as cobriu com a manga da blusa. A força foi tamanha que Nelly notou um pedaço do pano pairar em direção ao chão, enquanto Mallory agia naturalmente ao sair do aposento.

 

Pouco tempo mais tarde, Perenelle e os Clareanos estavam reunidos ao redor de Dante. Tanto Caçarola quanto Eldora haviam acordado bem dispostos graças aos cuidados de Mallory. O antigo Cozinheiro estava bem humorado, sabendo que a viagem agora era em rumo a um destino digno. Dante parecia igualmente feliz, ainda que fraco.

 — Não vejo a hora de colocar a mão na massa outra vez. - ele vibrou, esfregando as próprias mãos.

 — Só se for em espinhos de peixe. - Niels zombou. — Espero ter um trabalho mais decente, uma ilha não é o mesmo que a Clareira.

 — Tem razão. É claro que algumas modificações terão que ser feitas. - Perenelle concordou.

 — Eu vou continuar no meu cargo, valeu. - Minho cruzou os braços.

 — Vai correr da Harriet. - Louis sussurrou alto para Dante e os garotos deram gargalhadas.

 — Arrumem um quarto, vocês dois. - o asiático devolveu.

 — Ela está louca para pegar você, cara, acho que é só uma questão de quando ela vai ter privacidade, para não ferir o próprio orgulho. - Dmitri disse. — Devia dar um jeito nisso.

 — Vocês falam como se conhecessem garotas a vida inteira. - Perenelle tinha os braços cruzados, esforçando-se para ficar séria, mas a conversa era patética a seu ver.

 — Acho que o instinto fala por todo o resto nessas horas. – Dmitri falava com um ar superior, e Perenelle se sentiria ofendida, se não tivesse convivido com isso mais tempo do que era capaz de calcular.

 

A chegada ao que muitos começaram a chamar de Paraíso, ou Paraíso Seguro, foi carregada de uma turbulência difícil de conter. Muitos tinham lágrimas nos olhos enquanto saiam andando e correndo para explorar, gritar, rir. Ninguém tinha dúvidas de que a primeira atitude a ser tomada era fazer uma festa de boas vindas naquela noite.

A melhor notícia era que, aparentemente, o lugar não havia sido habitado antes deles, e isso só aumentou a credibilidade de Jorge quanto à indicação. Havia apenas areia, mato e mar por toda parte, indo além do que a vista era capaz de alcançar. Era perfeito. Uma imensidão limpa das mãos do CRUEL, do Fulgor, de toda aquela realidade que tinham sido obrigados a engolir do pior modo possível. Era quase inacreditável, mas o preço que pagaram para chegar até ali, com juros e dívidas, tornava tudo realista.

A floresta ficava bem centralizada na ilha, e à margem dela havia uma rocha imensa, que se estendia além da copa das árvores. Seu topo tinha alguns metros achatados que futuramente serviria de esconderijo para uma Teresa prestes a ser aceita na vida de Thomas outra vez; também serviria como refúgio para Harriet, nos maiores momentos de crise com Minho; Louis e Dante fariam uso do local escondido com mais frequência, sempre juntos, ocupados com o que não era da conta de ninguém. O conjunto de árvores chamou muita atenção porque era rico em frutas e muitas vezes parecia ser maior do que era e dava a impressão de que o outro lado da ilha nunca chegaria. O Grupo B não perdeu tempo em começar a coletar um pequeno lanche para mais tarde, e Harriet já conversava com Sonya sobre fazer cestas com os cipós.

Sem sombra de dúvidas, o mar foi o que mais encantou. Minho talvez não fosse Corredor na ilha, mas seu talento pendia para o lado do esporte de todo jeito e seu corpo já clamava para conhecer o que podia da vastidão azul. Muitos não tardaram em dar um mergulho, por mais que Mallory gritasse que poderia haver tubarões. No entanto, ela não deixou de entrar um pouquinho também com a desculpa de que nenhum tubarão ia querer uma Crank; Kenan não tirou os olhos dela nem por um segundo. Alguns Clareanos apostaram corrida nadando, mas, ao descobrirem que não nadavam tão bem ainda, acabaram criando uma guerra de quem afoga mais pessoas ao mesmo tempo. Quando se viram cansados, voltaram à margem, para perto de um conjunto de rochas onde Vitor estava em pé.

 — Posso ensinar vocês. – o calouro disse em meio às risadas e conversas deles, que pararam para olhá-lo.

 — A afogar o Dmitri até a cara dele deixar de ser tão mertilenta? – Dante zombou, levando um soco no braço.

 — A nadar. Mar era o que não faltava onde eu vivia, faço isso tão naturalmente quanto respiro.

 — Então por que você está aí parado como um peixe pescado? – Minho retrucou. O antigo Corredor sabia que não precisava da ajuda de Vitor para nadar como um profissional.

 — Para saber qual das mocinhas eu vou ter que salvar primeiro.

 — Dante! – Perenelle gritou de algum lugar e surgiu na frente dos garotos sabe-se lá como. — O que está fazendo?

 — Nada. – ele respondeu com a voz mais aguda.

 — Não pode fazer “nada” enquanto não estiver cem por cento!

 — Ah... É por isso que às vezes vejo uns pontos pretos em alguns lugares?

A Clareana suspirou alto.

 — Tirem ele daí! – exclamou.

Assim que a cabeça do garoto pendeu em semiconsciência, os amigos o ampararam e o guiaram até à areia.

 

O dia começava a sumir vinte minutos depois que chegaram à ilha e isso frustrou Perenelle; ela esperava que Newt não precisasse passar a noite no Berg mais uma vez, porque queria muito dormir ao ar livre. Ela deixou isso de lado ao começar a ouvir todos falando sobre comemoração, descanso e paz. Desistiu de comentar sobre fazerem alguma tenda improvisada para ele agora.

A maioria estava reunida ao redor da fogueira, sentada em troncos que conseguiram encontrar, conversando sobre os mais diversos assuntos. Kay e Albner estavam mais afastados, deitados num amontoado de folhas contra a base da Rocha. Sonya tinha acabado de ajudar uma amiga a empurrar o último tronco para o círculo e viu a menina brincando com os cadarços do tênis. Ao se aproximar com os próprios calçados pendurados nos dedos, notou a frustração na expressão dela.

 — Quer ajuda? – a loira perguntou, assustando Kay.

 — Eu me viro.

Mas a menina apenas se encostou na Rocha para olhar Albner e o brinquedo de borracha em forma de urso que ele manipulava.

 — Eu tinha um desse quando era mais nova. – Sonya comentou ao se sentar ao lado do bebê, encarando o objeto. — Acho que foi minha mãe quem me deu. Meu irmão sempre me entregava ele quando havia alguma tempestade. – ela riu. — Mas eu sempre devolvia, ele precisava mais do que eu.

Kay olhou para ela com curiosidade.

 — É aquele na nave, não é? As pessoas falam.

 — Ah, sei exatamente quem estava fofocando por aí. – Sonya meneou a cabeça, pensando em Dina, e calçou seus tênis. — Dá para acreditar, sou dois anos mais nova e tenho que bancar a primogênita. – ela tinha o tom irônico enquanto pegava os cadarços para amarrá-los, prendendo a atenção da menina. — Mas ele vai acordar, sim. E vou ajuda-lo a chutar a bunda de todo mundo que duvidou da força dele. – Sonya puxou o laço final.

 — Vocês perderam a memória, não foi? – Kay perguntou, agarrando seus cadarços e repetindo o processo que vira.

O sorriso de Sonya vacilou um centímetro.

 — Foi. Mas não importa. Não ouviu falar da história do filho perdido? – ela apontou para Mike. — Parece que ficaram quase dez anos sem se ver e Harriet quase foi incinerada com um olhar dizendo que queria mandar Mallory embora.

 — A esperança é a última que morre.

Kay ficou satisfeita ao ver o resultado triunfante nos cadarços e só então olhou para Sonya, na qual se podia ler certo arrependimento por ter ajudado a menina.

 — Foi mal. Minha mãe costumava dizer que eu preciso ser mais cortês. Nunca entendi o que isso significa, mas todos sempre me olham com essa sua cara de sem dono quando sou sincera.

Sonya fechou os olhos e riu fracamente. Aquela tatuagem gravada na pele de seu pescoço sinalizava claramente que ela teve um dono por bastante tempo.

 — Você só precisa escolher melhor as palavras. – ela disse.

Edmundo se aproximou delas com as mãos nos bolsos da calça, que estava imunda. Ainda assim, Sonya notou, ele conseguia parecer inigualavelmente elegante.

Kay se arrastou no chão um pouco para longe dos dois, mirando a areia.

 — Desculpe interromper a conversa, mas minha mulher quer falar com uma de vocês. – ela apontou para Sonya, referindo-se ao Grupo B ou qualquer uma das meninas mais velhas.

 — Está tudo bem? – a loira perguntou.

 — Só queremos entender melhor o que aconteceu com vocês em relação ao CRUEL. Eu estava pensando até se não seria interessante que fizéssemos uma roda amigável desta vez.

Sonya estava prestes a dar uma resposta positiva, mas então pensou no restante de seu Grupo e no quão bem as conhecia.

 — Entendo sua boa intenção, Edmundo, mas não sei se é uma boa ideia fazer todos reviverem aquilo tudo. Nem eu gosto de pensar a respeito.

 — Claro, tudo bem. De todo jeito, seria bom se nos reuníssemos nessa noite. – ele fez sinal com a cabeça em direção à fogueira.

Sonya olhou para Kay, que agora segurava um Albner adormecido em seus braços.

 — Vá em frente. – a mais nova disse e assistiu aos dois se afastarem.

 

Perenelle acabava de sair da floresta com um pano servindo de saco para as frutas que colhera pouco depois do anoitecer. Era a única de faltava no círculo, mas ela podia ver o quão bem estava se desenrolando a interação entre todos. Mais uma vez, não teve assim tanta vontade de se reunir a eles. Por alguma razão, sentia-se diferente, como se não fizesse parte do grupo. Perenelle sentia-se como uma Clareana, uma Socorrista... um rato de laboratório. Era como se essas fossem as únicas coisas que poderia ser em sua vida.

Ela descansou o saco ao lado de uma Kay adormecida e entrou no Berg, este longe o bastante para que ninguém ouvisse a porta de carga se abrir. Mas não passou totalmente despercebida.

Nelly sentiu náusea ao pisar no quarto onde Newt repousava; suas entranhas se embolaram em melancolia. Ela apoiou a testa no antebraço, este apoiado no beliche, e fechou os olhos. Seu corpo desejava um choro de alívio, de alguém que não sabia onde colocar os pensamentos. Sua garganta doeu com o aperto. De repente sentiu que Newt estava sentado, olhando para ela, consolando-a apenas com sua presença, entendendo o que ela sentia. Ela não conseguia fazer sair as lágrimas, por mais que tentasse. Faltava alguma coisa, mas não sabia o quê.

 — O que eu faço... O que eu faço... O que eu faço... – Nelly repetia em sussurros.

Estava tão acostumada a lutar, chorar pelas mesmas angústias, preocupar-se sempre com as mesmas coisas, lamentar por tudo que não tinha. Havia aprendido a conviver com isso tudo; era como se, sem aquilo, ela não fosse ninguém. Se Newt ao menos estivesse ali para preencher seu espaço no coração dela... A saudade a corroía. E se tempo demais se passasse e ela aprendesse a conviver sem ele também? O que aconteceria? Nelly balançou a cabeça em negação àquilo. Nunca seria capaz de viver sem ele; não conseguia imaginar tal absurdo. Mas mesmo assim, e se a cura não funcionasse?

 — Pretende passar a noite aqui?

A voz interrompeu seus pensamentos num momento tão oportuno que ela achou que tivesse imaginado. No entanto, sentiu o aroma tropical espreita-la. Nelly piscou muitas vezes antes de se virar.

 — Como foi que entrou?

 — Aquele muchacho lá fora descobriu um controle reserva da nave. – Vitor ergueu o objeto. — Pensei que seria uma boa se alguns dormissem nos colchões, e vi você entrando. Pensou na mesma coisa?

Ela observou os beliches e afirmou com um “uhum”.

 — Mike vai ser o primeiro maricas a reclamar do chão. – ela acrescentou para soar convincente e foi começar a puxar o colchão de uma das camas.

 — Ei, como é seu nome, de novo?

 — Jordan. – o pé dele foi cutucado para que o colchão pudesse ser arrasado para fora do quarto.

Vitor ajudou-a em silêncio, desocupando a cama acima de Newt.

 — Esse não. – ela disse e recebeu um olhar interrogativo. — Sim, vou passar a noite aqui.

 — Juntando com outro colchão, cabe pelo menos três pessoas aqui.

O sentimento de amizade invadiu a Clareana com seu modo de falar, mas não era o que ela sentia em relação a ele agora. No máximo, achava-o muito folgado.

 — Esse não. – repetiu.

Os dois reuniram todos os colchões numa pilha no corredor da porta de carga para que os carregassem.

 — Tem certeza de que não quer dormir ao ar livre? Posso garantir que faz muito bem. – Vitor insistiu.

 — Acredite, já fiz muito isso. – ela tateou os bolsos à procura do controle do Berg e o rapaz ergueu os dois pendurados em seus dedos.

 — Não sou ninguém a te dar um conselho, Jordan, e Deus sabe o quanto sou ruim nisso. Mas estamos trocando experiências lá na fogueira, seria bom se estivesse lá. – Vitor deu de ombros e se remexeu sobre os pés, mergulhando nas íris da garota. — Assim que perdi meu irmão, depois de passar semanas vendo-o se transformar numa besta, quando implorou para morrer, decidi que ficaria sentado no deserto onde eu estava para esperar algum Crank me alcançar. Nós vivíamos um pelo outro desde que nosso pai e minha madrasta se sacrificaram. Que droga eu ia fazer dali em diante senão virar um assassino para suprimir a raiva que eu sentia? – ele soltou uma risada e desviou o olhar. — Juro que não sou mais tão suscetível. Eu sabia que era injusto e não podia fazer nada a respeito. E então eu percebi que pior ainda seria deixar uma injustiça me vencer. Eu levantei, bebi a garrafa inteira do uísque que Vinícius idolatrava, e continuei andando. Não lembro de nada dos primeiros quilômetros dessa jornada. – Vitor abriu um sorriso amistoso quando Perenelle riu. — Mas aqui estou eu.

Ela assentiu com a cabeça e correu os dedos pelo cabelo para respirar fundo. Vitor mediu-a com o olhar e apertou o botão do controle para baixar a porta de carga. Cada um sustentou um lado da pilha de colchões, carregaram-na para fora e desfizeram-na perto da fogueira.

 — Para ser honesto, no fim das contas, eu me sinto em casa. E nem precisei beber desta vez para arranjar coragem e subir naquela nave. – Vitor inclinou a cabeça na direção dela antes de voltar para o círculo.

 

Foi um pouco difícil organizar todos de maneira justa nos colchões; precisou ser feito um acordo de reveza pelos dias seguintes. A maior parte do Grupo B quis uma cama decente, mas era unânime o senso de que os mais velhos tinham prioridade, especialmente Yhani. Ainda assim, Mallory se ofereceu para dormir numa árvore. Vitor, Thomas e Minho gostaram da ideia. Perenelle não chamou atenção ao seguir de volta para o Berg. Em menos de duas horas todos conseguiram cair no sono, sabendo que tudo aquilo era só o começo.


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