Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 59
Sequelas




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 Jordan não conseguiu dormir naquela primeira noite no Paraíso Seguro. Ao sair do Berg no meio da madrugada para descarregar a ansiedade que preenchia seu corpo, descobriu que não era a única.

  Três meninas do Grupo B estavam reunidas numa rocha onde as ondas do mar batiam. Figuras a quem ela não podia associar com certeza perambulavam pela praia aleatoriamente. Se não estivesse com muito sono, poderia afirmar que havia alguém andando em círculos no topo da Rocha. Ela reconheceu Niels sentado numa árvore, balançando os pés no ar. Gally estava numa rocha muito mais distante, com os pés mergulhados na água salgada.

 Essa foi a primeira de muitas noites assim.

 Todos aqueles que viveram o Experimento sofriam agora com algum grau de ansiedade, depressão, ataques de pânico... Mallory, com pouca precisão, conseguiu diagnosticar Florence com o transtorno do estresse pós-traumático após as primeiras semanas no Paraíso. Thomas, Minho, Sonya e Caçarola eram os mais propensos a passarem noites em claro, especialmente por conta de Newt. A preocupação em relação a todos os aparelhos que o mantinham vivo era constante. A irmã já havia passado a noite inteira chorando escondido após um susto com um breve defeito no Inibidor. As lembranças com Newt agora montavam seus sonhos e pesadelos, ao mesmo tempo em que inflavam o afeto pelo garoto. Sentou-se muitas vezes com Thomas e Minho e conversou sobre o antigo Segundo em Comando. Ela descobriu muito sobre o irmão a partir disso, mas nunca sentiu ser o suficiente, por isso tentava ajudar de um jeito ou de outro na produção da Cura.

 Ninguém ficou surpreso quando Jordan teve seu primeiro ataque de pânico durante uma noite e o segundo enquanto estudava o trabalho de Finn Guilterson. Frequentemente ela era vista com olheiras fundas ou dormindo durante um Conclave. Houve uma busca séria por ela através de toda a Ilha quando adormeceu no meio da enorme Floresta enquanto coletava frutas, um conselho de Mallory como distração. A cirurgiã era a única sem medo de opinar a respeito do empenho exaustivo dela na Cura. Jordan ficava facilmente irritada quando a chamavam para qualquer outra coisa no horário em que se ocupava com o trabalho. Muitos a evitaram por semanas pela tamanha grosseria que ela adotou em seu dicionário; até que foi feito um escândalo na tenda das meninas e Sonya se sentou para conversar seriamente com ela. Jordan não pôde deixar de se sentir envergonhada com a menção de que todos estavam ligeiramente decepcionados. Os Clareanos foram os que mais tentaram ajuda-la com todo aquele estresse e, em consequência, os que mais ouviram desaforo.

 O processo de produção da Cura não era fácil e todos sabiam, porque todos tiveram acesso à “receita” na estreia de um Conclave. Jordan reconheceu que precisava se recompor, não só por si mesma, mas pelos outros que contavam com ela para isso. Logo não teria Mallory para dar o apoio que apenas ela poderia dar.

 Mike sofreu com insônia num primeiro momento, mas isso não foi nada em comparação à depressão que seguiu a morte de Mallory. Se não fosse pela busca imediata por um psicólogo feita nas proximidades, Kenan ficaria sozinho. A cirurgiã demorou mais que o esperado para começar de fato a sucumbir ao Fulgor. Mike e Jordan brigaram seriamente uma vez por conta da esperança do rapaz de dar a Cura à mãe. Mas ela não teve sequer metade desse tempo. Quando as veias escuras já cobriam cada centímetro de sua pele e Edmundo precisou agarrá-la para impedir que se atirasse da Rocha na frente dos filhos, foi que ficou claro o nível a que ela chegara. Mallory precisou ser amarrada a uma árvore no meio da Floresta para ser contida, pois a sanidade ia e vinha sem aviso.

  — Beba. – Jordan disse com as lágrimas banhando seu rosto todo. Ela possuía um copo com um remédio que costumavam usar como calmante, mas desta vez modificado. A Socorrista conseguira fortalece-lo o bastante para que fosse letal a qualquer um. Não podia suportar matar Mallory com um tiro ou coisa parecida.

  — O que eu falei sobre choro, moça? Não gosto de falsidade. E vocês, vocês dois, estão com medo dos trovões? Mamãe vai proteger vocês. A mamãe... – a voz dela falhou e ela sorriu. — A mamãe vai chama-los de Chuva e Neve, porque são tão lindos quanto.

 Há muito tempo Mallory vinha esquecendo coisas como a própria idade, onde estava, o nome dos filhos. Às vezes as memórias voltavam como se nunca tivessem ido, mas ainda assim eram momentos raros a essa altura.

  — Eles não são lindos, garota? – ela tinha um sorriso imenso no rosto, que trouxe lágrimas de divertimento aos seus olhos, que se transformaram numa súplica para que aquilo acabasse. — Está na hora, garota. – Mallory fechou os olhos, deixando uma lágrima escorrer. — Eu não vou a lugar algum.

 Jordan se inclinou na direção dela e despejou o remédio em sua boca, depositando um beijo na testa da mulher. Mallory ainda tinha admiração no olhar quando fitou os filhos durante os últimos segundos. Kenan e Mike sentaram-se de cada lado da mãe pela última vez.  

 Mike passou a exigir que fosse chamado de Roman a partir desse momento; era a única coisa que lhe importava durante a depressão. Sozinho, ele escolheu uma rocha onde gravar o nome da mãe e o lugar na Floresta onde a enterraria. Apenas Kenan teve liberdade para acompanha-lo nisso.

 Em respeito à cirurgiã, cada um dos moradores do Paraíso comeu um caqui, fruta preferida de Mallory, e depositou o caule florado ao redor do túmulo. Além disso, a organização no Paraíso pôde finalmente ser instaurada. Como ela havia planejado, foram escolhidos dez principais líderes que se revezariam no poder em intervalos de uma semana; todos que habitassem a Ilha precisariam conhecer o mínimo de cada cargo (incluindo o produtor da Cura), para o caso de alguém ter de ser substituído; não haveria discrepância na divisão de tarefas por conta de gênero; a palavra “família” deveria descrevê-los mais do que termos como: grupo, tribo, aldeia, armada, sociedade, entre outros. Esse último item nunca tinha sido levado a sério até Mallory partir. Todos sentiram a falta dela de algum modo e não faltaram voluntários a ir procurar ajuda médica para Roman quando ele precisou.

 De todo o espírito de equipe que preenchia a Ilha, Yhani foi a única exceção. Não só porque ele não permaneceu mais que dois meses por lá, mas também pela mentira de que queria ficar com eles. O homem sabotou de inúmeras maneiras os habitantes, todas elas camufladas para que não fosse descoberto. Por muito pouco não destruiu o laboratório da Cura, mas este foi seu último ato. Thomas o pegou no flagra de atear fogo na tenda enquanto Jordan estava lá dentro. Foi feito um Conclave para falar a respeito, mas a única pessoa que fez discussão foi a Clareana. Ainda assim, foi fácil convencê-la àquela altura das coisas ruins que poderiam vir a acontecer se ele permanecesse na Ilha. Decidiram por levá-lo para o mais longe possível e deixa-lo numa civilização saudável, que não pudesse lhe fornecer contato com os homens da fábrica de queijo tão facilmente e tampouco deixa-lo à mercê de Cranks.

 Foi depois dessa viagem, num momento que Jordan tirou para pensar na responsabilidade que lhe cobria pelas atitudes de Yhani, que Thomas tentou mais uma vez uma reconciliação. Não tentava mais com tanta frequência, pois já tinha ouvido o conselho de Brenda para que desse à Clareana o seu tempo; contudo, ele quase podia sentir a culpa que emanava dela.

 Thomas se aproximou em silêncio, parando ao lado dela de frente para o mar. A brisa salgada que tanto servia de consolo para eles agora era quase como um anestésico para os dois. Nenhum deles negava a brutalidade de deixar Yhani num lugar qualquer.

 Jordan respirou fundo, mas vacilou na expiração com a vontade de chorar. Olhou para o além, ponderando. Não importava mais o que Thomas havia feito naquela rodovia. Ela já havia perdido a razão milhares de vezes desde que Newt entrou em coma; a grosseria com a qual tratava Thomas já era por comodidade, porque era muito mais fácil se enterrar na produção da Cura e humilhá-lo na frente dos outros sem pensar do que deixar o orgulho de lado e pedir desculpas. Podia imaginar Newt dizendo que aquilo era uma maldita e mertilenta estupidez.

  — Me desculpe. – ela sussurrou para o chão.

  — Você não prec...

  — Me desculpe. – Jordan cercou-o num abraço que quase os derrubou. Havia se esquecido do quanto lhe fazia bem a amizade de Thomas, a liberdade com ele, a parceria que sempre tiveram. Não percebera até então o quanto o perdão dele era valioso. — Eu falei um monte de plong, você não merecia ter passado por aquilo e muito menos ter ouvido o que ouviu. Me perdoe, Thomas.

 Ele retribuiu o abraço sem hesitar, afagando o ombro dela.

  — Foi só uma grande mértila.

 Jordan sorriu por cima do ombro dele e se afastou.

  — Senti sua falta. – ela disse.

  — Também senti a sua.

 Com a reaproximação dos dois Clareanos, Jordan descobriu que Thomas e Brenda não eram mais os mesmos do Deserto. Brenda era esperta o suficiente para começar cedo a poupar ambos de tentativas falhas; o antigo Corredor ainda tinha aquele brilho no olhar sobre Teresa e todos percebiam; Jorge foi o primeiro a dar à amiga o toque de que precisaria repensar no que estava se metendo. Thomas mal pôde perceber o quanto ela ficara abalada em admitir tudo aquilo que ele não possuía coragem para admitir. Mas Brenda não ficou sobrando na Ilha; pelo contrário, na verdade.

 Thomas não havia perdoado Teresa ao ponto de conseguir dirigir a ela mais do que cumprimentos formais e recados. Sempre que imaginava os dois tendo uma conversa, lembrava-se das mentiras que serpentearam para fora de sua boca com tanta facilidade. Thomas tentava, todos os dias, encontrar uma brecha que o fizesse confiar outra vez, mas nunca a via.

  — Talvez você não esteja dando a devida chance. – Jordan opinou.

 Após ouvir isso e ser forçado pela Clareana a ir até Teresa na Rocha, Thomas, por alguma razão, sentiu o peito mais leve. Ainda que fosse estranho ver Jordan ajudando-o tão diretamente com Teresa, isso tornava a atitude ainda mais segura; era óbvio que o rapaz estava infeliz com o status da relação dos dois e, no fim das contas, Jordan não tinha nada a ver com o que sentiam.

  — Oi. – Teresa cumprimentou com um sorriso radiante quando ele despontou na Rocha.

  — Ei... Não tem medo de cair daqui de cima algumas vezes? – Thomas se aproximou com as mãos nos bolsos, indagando a si mesmo se não possuía, talvez, uma pergunta mais imbecil.

 Teresa negou com a cabeça com um meio sorriso e voltou-se para frente, abraçando os joelhos. Daquela altura, o mar parecia ainda maior.

 Os dois mergulharam num silêncio ansioso. Queriam, mas não sabiam o que falar. Thomas admitiu a mesma posição em que ela estava, mas esmagando as próprias mãos. O rancor lutava para se libertar de dentro dele e o garoto até deixaria, se não fosse pelo medo de isso afasta-la ainda mais. Ele abriu a boca ao respirar fundo e as palavras escaparam.

  — Você se arrepende... do que fez? – ele olhava nos olhos dela, clamando silenciosamente por uma resposta em que não fosse difícil acreditar.

 Teresa se voltou para ele com a boca apertada numa linha.

  — Às vezes, Thomas.

 Ela decidiu não acrescentar nada; já tinha deixado claros seus motivos.

  — Faria de novo? – ele indagou.

  — O CRUEL me obrigou. Prefiro não pensar nas nossas vidas com eles outra vez.

  — Eu devo ficar no escuro então? – Thomas mirou o horizonte, balançando a cabeça.

 Teresa sentiu o próprio rosto esquentar. Parecia realmente não haver a mínima chance de o Clareano algum dia confiar nela de novo. Ela teve vontade de se levantar e ir embora, mas precisava daquele lugar até para ajuda-la a se livrar da frustração.

  — Desculpe. – Thomas disse, para a surpresa dela. — É que você, sabe, conseguiu ser bem convincente lá no Deserto.

  — Não poderia ter sido mais mentirosa. Não acho que nossa história tenha sido “um teste ridículo”. Foi real para mim.

 Thomas concordou num aceno de cabeça, o que Teresa considerou a coisa menos romântica que ele já fez.

  — Mas fomos ridículos. – ela admitiu. — Nunca vou esquecer sua cara quando Aris me beijou.

  — E aí, ele tinha mesmo sapinho?

 A cara de nojo de Thomas a fez soltar uma risada. Ela viu o sorriso dele, teve esperança, e involuntariamente a risada se tornou uma gargalhada repleta de graça. Era por causa de detalhes idiotas assim que o coração de Teresa estava fechado para qualquer outra pessoa. Não era o tempo que passou com ele o responsável por tudo que sentia; era Thomas. Na visão da garota, não havia nenhuma representação melhor de audácia, empatia, nobreza, divertimento e bondade. Ela podia cruzar céus e mares e mentir o quanto pedissem para que mentissem; o sentimento ainda estaria ali, restrito, preservado.

 Kenan tinha sua própria bondade e nobreza, mas Teresa sentiu que não era o certo no momento em que percebeu o que acontecia. Ela jamais contaria a Thomas o ocorrido na terceira semana no Paraíso. Naquele dia, tinha evitado de propósito ir encontrar o Clareano para uma tarefa em conjunto, pois já estava saturada dos olhares de desprezo dele. Quando chegou à árvore em que Minho deveria ter deixado os cipós para um banco ser montado, descobriu que o antigo Corredor não fizera questão de deixa-los no chão. Com um suspiro, ela arregaçou as mangas e escalou. Perguntava-se a necessidade do garoto de subir tanto para pegar cipós, quando finalmente se sentou num tronco para trazer a cesta até si. Ela foi pendurada no braço e Teresa esticou o pé para pisar no próximo galho, sem perceber que a cesta estava agarrada num cipó que Minho usara para prendê-la. Ao ser puxada, ela se soltou da garota e a distraiu. Teresa deslocou o tornozelo e caiu entre folhas e ramos em direção ao chão. A queda foi interrompida por dois braços fortes e seguros. Ela soltou todo o ar que prendera com o susto.

  — Acho que estou mesmo no Paraíso. – Kenan disse sorrindo.

  — Obrigada. – Teresa sorriu de volta, mas se arrependeu de ter usado tal palavra como se se referisse ao elogio. Ela segurava o ombro dele para testar seu próprio tornozelo, sentindo-se mais inválida do que fora possível até então.

  — Precisa de ajuda? – ele perguntou.

 Teresa apontou para a cesta que pendia lá em cima.

  — Precisamos de bancos. – disse.

  — Ah, sem problemas. – foi a vez dele de arregaçar as mangas, e em menos de dois minutos estava de volta, inclusive com o cipó que causara o acidente.

  — Obrigada de novo.

  — Conte comigo.

 Kenan deu tapinhas no próprio ombro e ela se apoiou nele para voltarem à praia.

 Durante os dois dias seguintes, Teresa teve toda a assistência de que precisava a partir do momento em que Kenan ouviu as recomendações de Mallory. Ela não se sentiu confortável ao aceitar um lanche que o gêmeo fizera quando Thomas estava por perto, mas não podia fazer desfeita. Ainda assim, sabia que dar esperanças seria pior.

  —... convenci minha mãe a ir para Denver, já que era lá que tudo acontecia. Eu sabia que ela precisava do meu irmão de volta, talvez até mais do que eu. – Kenan contava.

  — Foi bem corajoso querer sair de um lugar onde já estava habituado. Deve ter um coração muito grande. – Teresa sorriu de canto e desviou o olhar, enquanto Kenan continuava a encará-la com ternura.

  — É, acho que sim.

  — Não deixe que as pessoas destruam isso, mesmo que as suas intenções sejam boas. Às vezes simples não é para ser.

  — Ela o encarou significativamente na última frase, e Kenan a princípio não entendeu, até ler nos olhos dela a carga de insinuação. Ele sorriu de canto.

  — Certo.

 A ausência de Roman durante tanto tempo de sua vida deixou em Kenan um buraco negro que ele sempre reconheceu possuir. À medida que crescia sem o gêmeo, tentativas de suprir a necessidade de um confidente e parceiro começaram a se manifestar com as pessoas que o rodeavam. No entanto, não era muito bom em fazer amizades, e geralmente as meninas se apaixonavam facilmente por ele. Guardava com carinho as memórias de cada um dos quase incontáveis relacionamentos que teve. Sempre tentava ir com calma e dar um tempo a si mesmo, mas a carência o matava e não queria terminar com a mãe, por mais que se orgulhasse de como ela foi capaz de criar os filhos sozinha. No Paraíso Seguro, felizmente, ele conseguiu se dar muito bem com uma das garotas do Grupo B e, agora, Roman não sairia de suas vistas.

  — Preciso parar de insistir nessa mistura. Na próxima vez vai ser a minha cabeça a cair. – ela disse enquanto juntava os cacos de vidro do chão.

  — Eu disse a você que ele tinha escrito “duas gotas”. – Vitor usava uma pá e uma vassoura para limpar o laboratório.

 Jordan o encarou com uma carranca que só o fez gargalhar.

  — Não dá para te levar a sério com uma sobrancelha a menos. – ele zombou. — A boa notícia é que foi do mesmo lado em que você perdeu um dedo.

  — Como isso pode ser uma boa notícia? – questionou brandamente, recebendo outra risada em resposta. — E aliás, se eu não consegui decifrar direito o que Guilterson escreveu, não vai ser você que vai conseguir.

  — Não conseguiu decifrar direito?

  — Estou fazendo testes com algumas possibilidades. Não é como se ele tivesse usado um caderno de caligrafia alguma vez.

  — Você vai conseguir.

 Jordan meneou a cabeça, colocando dentro de um balde de água um corte fino no dedo.

  — Não sirvo de nada se não conseguir. – ela murmurou.

 Vitor relanceou para ela algumas vezes sem parar de varrer.

  — Devia parar de dizer isso.

  — Ninguém nunca negou. – a Clareana tinha um sorriso de escárnio no canto dos lábios.

  — Estou negando agora. Afinal de contas, quantas vezes Kay pediu para que você a ensinasse a fazer curativos?

  — É, depois disso ela causou uma infecção em Dante. Aquilo só rendeu constrangimento para alguém que queria provar ainda saber ajudar alguém...

 Vitor largou a vassoura de modo que ela estalou ao bater no chão. Jordan o viu colocar os dedos sobre as lacrimais para reunir paciência.

  — Achei que Sonya tinha conversado com você sobre isso. – ele murmurou. — A única razão para não ter conseguido ensinar a menina foi por que estava preocupada com a Cura e com Newt.

  — Você não entende, não é, trolho? Esses vacilos que eu cometo me deixam cada vez mais próxima de fracassar nesse laboratório.

  — Como?

  — Eu era uma Socorrista. Minha mãe era médica, sei tudo o que sei por causa dela. Se eu não posso ensinar alguém a fazer o que praticamente está no meu DNA, então Newt está morto.

 Ela parou de falar no instante em que percebeu sua garganta se fechar. Seus olhos marejaram ainda enquanto o encarava, e as veias de seu pescoço pareciam querer saltar. Jordan comprimiu os lábios, cerrando os punhos para reunir palavras.

  — São raras as vezes... em que eu sei por que continuo tentando salvá-lo.

 O pano que usava para secar as mãos foi jogado de qualquer jeito sobre a mesa e ela se largou sentada numa cadeira. Vitor trocou a perna em que apoiava o peso antes de se aproximar dela com cautela. Ele sentia suas mãos escorregadias e a cor rosa da voz dela parecia pintar cada canto do local. Jordan começou a esfregar com raiva o dedo que voltava a sangrar, sem se importar com a dor que isso espalhava. Vitor se pôs sobre um dos joelhos perante ela e obrigou-a a parar, colocando o pano sobre o ferimento. O toque das mãos dele ao redor da sua trouxe o gosto de maçã à boca da garota. Ela fechou os olhos para tentar se acalmar com isso e franziu o rosto ao sentir que Vitor quebrava o espaço entre eles.

  — O que está fazendo? – ela indagou, abrindo os olhos para se certificar do quão distante estava o rosto dele.

  — Jordan... Eu vou sempre estar aqui. – Vitor tinha os olhos fechados, aproveitando o cheiro de menta que o cercava, subindo as mãos pelos braços dela.

  — Vitor... – ela disse com cautela. — Tire as mãos de mim.

 Ele encarou os olhos dela, de repente sentindo-se mais quente, mas obedecendo.

  — Você precisa tirar um tempo dessa história toda, pensar em outra coisa para conseguir se livrar desse peso. – as mãos dele repousavam na cadeira e na mesa, e seu rosto não se afastara nem um centímetro.

 Jordan balançou a cabeça em negação e trouxe o próprio corpo para trás enquanto o afastava com a mão. Ele a puxou de volta pelo cotovelo e, no momento em que ela sentiu os lábios dele roçarem nos seus, foi empurrado com um soco na boca. A Clareana se levantou e deu um passo para circundar a cadeira, mas Vitor a trouxe de volta para a frente da mesa.

  — Jordan, você não tem obrigação nenhuma de se prender.

 Ela tentou livrar o próprio pulso, sem conseguir acreditar que ele estava mesmo interpretando as coisas daquela maneira. Vitor a trouxe para ainda mais perto pela cintura.

  — Você precisa ver as coisas de um ângulo diferente.

  — Não quero.

 Ele investiu outra vez, todos os seus sentidos tomados pela menta, e Jordan o empurrou pelos ombros para conseguir espaço e desferir um chute no abdômen dele.

  — Eu não quero. – ela repetiu.

  — O quê? – Vitor arfava, incrédulo como alguém que acaba de sair de um transe.

  — Vá embora.

 Ele olhou para o chão, sem entender a si mesmo, depois virou as costas e saiu depressa da tenda. Dois minutos depois, durante os quais Jordan ficou apenas assimilando o que acontecera, Gally entrou carregando uma bolsa. Descansou-a no chão com uma careta pelo peso dos tubos de ensaio e dos papéis e notou-a imóvel, olhando para o chão.

  — Tudo bem?

 Após alguns segundos, Jordan o encarou com a cabeça pendendo por cima do ombro.

  — Pode fazer um pouco da sua receita secreta para mim?

 O Clareano olhou brevemente por onde Vitor havia saído, estranhando, e assentiu com a cabeça.

 Gally fez sua famosa receita da Clareira pela primeira vez em muito tempo, percebendo que quase se esquecera do preparo correto. Os dois sentaram-se para desfrutá-la dentro da tenda. Jordan não estava com muita vontade de sair dali tão cedo, o garoto percebeu isso e não custou muito para que ela lhe contasse o que acontecera.

  — Alguém vai dormir de olho roxo. – ele comentou ao fim da narrativa, bebericando de seu pote de vidro.

  — Talvez não o olho, mas...

  — Quero dizer que eu vou ter uma conversa com ele.

 Jordan riu fracamente, balançando a cabeça.

  — Quem te viu, quem te vê. – disse. — Vamos fazer um Conclave para falar das regras de novo, assim ninguém vai precisar levar uma surra e garantimos que nada desse tipo se repita.

 Gally baixou seu copo enquanto a encarava pelo canto do olho.

  — Claro, Newt. – ele disse sério, as sobrancelhas curvadas para cima na carranca habitual. Ela sorriu de canto.

  — Nem parece que um dia eu e você fomos praticamente a mesma pessoa, não é?

  — Fomos?

  — Não lembra por que o CRUEL achou uma boa ideia nos colocar numa sala para bater um papo quando éramos pequenos? Eles achavam que a tendência agressiva que nós dois tínhamos acabaria se anulando mais tarde se nos conhecêssemos. Pior que os mértilas acertaram, ham? – ela o cutucou com o cotovelo, zombeteira, e Gally sorriu forçadamente, preferindo voltar a beber.

 Ele não mentira quando dissera semanas atrás que não se apaixonou por Jordan outra vez no minuto em que recebeu suas memórias de volta. Contudo, foram apresentados pela primeira vez num momento muito delicado da vida de cada um e Gally agora não achava ser possível que pudesse sentir o que sentiu por ela por qualquer outra pessoa. Pela primeira vez desde que teve a amnésia, reconhecia haver algo errado em si. Seu constante mau humor na Clareira se devia muito ao buraco nele durante aqueles dois anos, mas este não foi preenchido quando Jordan subiu pela Caixa, porque já não era mais como antes. Do instante em que ela quase o socou ao chegar, podia-se considerar que os dois estavam revivendo tudo que houve entre eles no CRUEL, reconstruindo. A diferença era que agora não se viam em segredo, conheciam outras pessoas, tinham outras âncoras, tinham cicatrizes. Então, por mais que Jordan amasse Newt, teria uma ligação inigualável com Gally; e por mais que Gally soubesse que jamais poderia se interpor entre a Socorrista e o Segundo em Comando, viveria com aquela atração suprimida. E enquanto ele não percebesse isso, não saberia dizer o que sentia por ela.

  — Pode fazer o anúncio do Conclave? Gostaria que Vitor se borrasse um pouco nas calças. – Jordan disse e ele assentiu.

  — Vou tentar ficar longe dele até lá.

 Um silêncio confortável se prolongou, enquanto um formigamento apareceu no fundo da mente de Gally.

  — Thomas conversou com você depois que voltamos da última cidade? – perguntou.

 Ela imediatamente soube do que ele queria falar e assentiu com a cabeça ainda encarando o chão.

  — Preferimos não descer o Berg, tinha muito entulho. Não temos certeza, mas é difícil esquecer aquela cara de plong. – Gally disse.

  — Não me importo se era ele, Gally. Não quero que Herman chegue perto dessa Ilha nem em pensamento. – respondeu rancorosa. O rapaz ficou em silêncio como quem entende o que ela sente. — O CRUEL usou muitos nomes de cientistas conosco. Todos fizeram algum bem, todos tiveram um papel fundamental na humanidade. Mas o Herman em quem eles se inspiraram foi um especialista em anatomia que contribuiu para a ciência provando que tirar os olhos de gêmeos enquanto estão vivos e em funcionamento não os faz continuar funcionando ao serem trocados de corpo, “principalmente” se são de negros ou evangélicos.

 Gally não conseguia produzir uma palavra enquanto sentia seu braço arrepiar.

  — Parece que o CRUEL sabia exatamente que tipo de pessoa ele era. – Jordan murmurou. Suas mãos suavam e por isso decidiu pensar em outra coisa. — Li tudo isso num arquivo antigamente. Foi lá que eu descobri de onde veio meu nome. – ela sorriu ligeiramente. — Os Criadores sempre tentaram conseguir os diagnósticos que minha mãe possuía sobre minha sinestesia e a Síndrome, mas ela nunca os deixou chegar perto, e bem no começo resolveram me chamar de Perenelle porque era a esposa de algum alquimista e alguém de quem sabiam bem pouco também.

 Gally passou a mão pela cabeça.

  — Sei que um dia eu disse coisa diferente, mas prefiro Jordan.

 Ela sorriu em concordância.

  — Tudo certo com você? – ele perguntou, levantando.

  — Tudo. Obrigada. – ela sorriu ligeiramente antes de o ver sair com as mãos nos bolsos do casaco.


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