Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 57
Reunião




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— Como... – Perenelle começou sem saber o que falar, então só pôde rir de felicidade.

— Achávamos que eles... – Thomas também fraquejou ao perceber que entrara no Berg antes de saber onde Teresa estava.

— Onde vocês se enfiaram? – Gally perguntou de uma vez.

Teresa soltou uma risadinha e se entreolhou com Kenan. Algo semelhante a óleo fervente encheu o estômago de Thomas com o ato.

— Estão todos bem?! – Mallory surgiu de dentro da cabine do piloto correndo, caçando os gêmeos entre todo aquele pessoal. — Ah, que bom! – ela abraçou Kenan tão forte que o rosto do garoto ficou vermelho. Sem soltá-lo direito, ela puxou Mike e fez o mesmo, e o Clareano riu por cima do ombro dela. Novamente, aquele ar constrangedor para os Grupos, que se resumia em inveja, assaltou o ambiente.

— Quem está pilotando? – Jorge perguntou.

— Ah, o piloto automático. – Mallory respondeu de qualquer jeito e voltou a dar atenção aos filhos, enquanto Jorge resmungava algo como “Que mulher maluca” enquanto ia para a cabine.

Perenelle olhou ao redor, contando quantos haviam. Não faltava ninguém. A mulher, o bebê, a menina e o homem que tinham ficado no Berg estavam na entrada de um compartimento principal, quase escondidos.

— Caçarola está bem? – Minho perguntou para a antiga cirurgiã.

— Está ótimo. Acordou há um tempinho, mas o coloquei para dormir outra vez. Não o incomodem.

— E Newt? – Thomas conseguiu a atenção de todos nesse instante.

Mallory relanceou para Perenelle e lhe deu as costas, abrindo espaço entre os adolescentes até a outra mãe, trazendo-a para mais perto de todos. As sardas da mulher se destacavam bastante na pele clara dela e seu cabelo castanho descia quase até o seu quadril. Estava mal cuidado, mas, ainda assim, com traços faciais tão delicados e maternos, ela tinha todos os olhares masculinos sobre si, inclusive do homem casado.

— Como você deve ter imaginado, aqueles congelados não duraram todo aquele tempo que vocês passaram lá. – Mallory disse, de braço dado com a mulher. Perenelle quase sufocou. Não tinha pensado nisso. — Então essa gracinha se dispôs a ir buscar mais e ele continua estável. Descobrimos que alguns moradores daquela cidade horrível tinham se mandado há pouco tempo sem o mínimo de preparo e um freezer estava dando sopa numa das casas.

A Clareana riu outra vez, sentindo os olhos umedecerem.

— Obrigada. – ela disse com todo o sentimento para a mulher de cabelo castanho. — A propósito, qual o nome de vocês?

— Agatha. E este é o Albner. – a mãe apontou para o bebê em seu colo.

Alguns Clareanos se entreolharam, por um momento esperando que ela dissesse um nome um pouco diferente. O pequeno Albner se inclinou e puxou a trança da menina de Grupo B ao lado, e ouvir a risada de felicidade dele foi a declaração de que as coisas seriam melhores dali em diante.

— E eu sou Kay. – a menina resgatada disse.

— Ah, de Katherine. – Dmitri tinha um ar de sabe-tudo.

— Não. Kay. – ela replicou, séria, e os meninos começaram a zombar do Clareano.

Ficou claro que a menina era bastante ranzinza apesar da pouca idade. Ela tinha a pele marrom-escura e os olhos pretos brilhantes sob a luz do Berg. Seu macacão comprido estava cheio de remendos, como se tivesse costurado um pedaço de pano de cada lugar por onde passou. Uma cicatriz em forma de corte chamava atenção em seu pescoço pela grossura, o que preocupou Mallory desde o começo. Ela estava descalça, mas não parecia incomodada com o clima da nave.

— Eu não disse para você calçar aqueles tênis? – Mallory indagou rispidamente para Kay, que fez uma cara zangada para a mulher, mesmo que respondesse com o tom mais educado possível.

— Eles estão muito folgados.

— Olhe para o seu tamanho, nada vai caber direito em você. Vá pegá-los. – ela apontou para os armários do compartimento principal.

Depois que Kay se retirou, o homem se aproximou de Perenelle, fitando-a com extrema atenção. Ele estendeu a mão para um cumprimento.

— Meu nome é Edmundo. E minha mulher é Eldora. Não tivemos oportunidade para agradecer por terem apresentado tanto esforço em nos acolher. – ele acenou ligeiramente com a testa para a porta de carga do Berg, lembrando a falha que ocorrera. Edmundo usava as duas mãos para cobrir a de Perenelle, olhando intensamente nos olhos dela e de Teresa. — Obrigado, em meu nome e de minha mulher. Lamento não ter podido ajudar vocês lá fora, notei que passaram por maus bocados. Mas garanto que minha participação daqui em diante será irrefutável.

Sua calma ao falar, somada ao profundo timbre de sua voz, dava a impressão de nunca ser possível negar qualquer afirmação que partisse de sua boca. Além disso, seus olhos eram como um atrativo proibido. Quem os mirou por mais de um segundo não conseguiu desviar o olhar com muita facilidade. Aquele verde parecia não ter fim, e tinha grande destaque com a barba e o cabelo escuros.

Perenelle sorriu ligeiramente, desejando que assim ele percebesse que podia se afastar. Sentia-se nervosa.

Edmundo deu um passo para ficar ao lado da Clareana e virou o corpo na direção de Yhani.

— Não me lembro que tê-lo visto antes de saírem. – ele disse, apontando. 

— É. – Mallory acrescentou com muito menos inocência que o homem. Perenelle sentiu a clara bronca que levava com aquele olhar e tom. — Nem eu.

Louis surgiu correndo do quarto onde Newt estava, quebrando a atmosfera densa.

— É o Dante. – ele avisou diretamente à Perenelle e ela se apressou com os Clareanos até lá.

Niels estava fazendo massagem cardíaca em Dante, que possuía um curativo no lugar por onde foi feita a transfusão em Hilston. Ele parou os movimentos e colocou a orelha sobre o peito do rapaz para ouvir seus batimentos.

— Funcionou.

— Ótimo, Niels. – Perenelle elogiou com uma mão em seu ombro e colocou dois dedos sobre o pulso de Dante, vendo que ele estava estável. Continuava pálido, mas agora era apenas questão de tempo até melhorar.

— Ele vai ficar bem? – Louis perguntou, sua voz mais aveludada que nunca sob a carga de preocupação.

— Vai. Só precisa de descanso e comida. Temos que resolver esse problema, não acho que sobrou muita coisa. – ela tocou a própria barriga ao perceber a fome que sentia, e ao se virar viu Newt deitado na cama ao lado, a cabeça raspada, o aparelho para respirar, a palidez... Perenelle achava impossível que algum dia aquela imagem não traria lágrimas aos seus olhos.

Louis parou ao lado dela e colocou o braço sobre seus ombros.

— Ele vai ficar bem. – afirmou com a mesma certeza que ela havia feito.

Perenelle soltou uma risada que apenas serviu para desatar o choro. Louis a abraçou e ela enterrou o rosto no ombro dele. Nunca tinham sido próximos na Clareira, mas isso não importava. Newt também era parte da família. E, além disso, depois de tudo que acontecera na fábrica, Perenelle aceitaria qualquer tipo de consolo que aparecesse.

Depois que todos que precisavam receberam atendimento médico, Brenda e os adultos foram conversar sobre um lugar seguro para pousar o Berg, procurar comida e descansar, e Gally e Perenelle empurraram Yhani para um segundo quarto com beliches, atrás do compartimento principal. Até então, o homem não dissera uma palavra, e isso era suficiente para assustar.

A Clareana se sentou na beirada de uma cama, de frente para o cadeirante, e Gally parou de braços cruzados ao lado dela.

— O que está pensando em fazer? – ele perguntou.

Ela ficou em silêncio, analisando Yhani, enquanto Yhani retribuía da mesma forma sem a menor expressão.

— Me deixe conversar com ele. – ela respondeu.

— Não vou a lugar algum.

Perenelle o puxou pelo braço para a saída e parou.

— Obrigada por ter feito isso por mim. Você não precisava. Mas eu me responsabilizo por qualquer coisa que acontecer.

— Você sabe que isso não vai acabar bem. E eu teria parte da culpa do mesmo jeito.

— Chame o Thomas. É o nosso embaixador de relações exteriores mesmo, ele pode facilitar as coisas.

Gally fixou nela um olhar extremamente contrariado; depois suspirou, relanceou para Yhani e saiu.

Perenelle se apresentou para o homem com o máximo de cautela que pôde e fez o mesmo por Thomas quando ele se juntou. Yhani continuou calado.

— N-nós queríamos saber mais sobre você. – a Clareana se amaldiçoou por gaguejar. Nunca mais seria a mesma em relação a isso; ela teve a impressão de seu mindinho latejar em protesto. — Imagino que haja muita coisa por trás de tudo aquilo que vimos na fábrica.

Yhani a encarava com vazio. Tanta coisa se passava dentro dele e se os dois ao menos tivessem ideia...

— Vocês vão... se... arrepender. – ele disse.

— Queremos ajudar você. – ela falava calmamente para não se engasgar. — Se soubermos como funciona... a cadeira... medicamentos, talvez... as coisas podem ser muito melhores.

— O que faz... você pensar... que eu... estava mal... lá?

— Eles são brutos. Uma seita de assassinos. Machucaram-nos a sangue frio antes mesmo de termos feito algo. Certamente, não estavam dando a você o que precisava. O hospital era precário, nós vimos, e uma viagem daquela duração até o atendimento adequado poderia te matar.

— Você acredita... ter tanto conhecimento a... nosso... respeito... Então, por favor... por qual motivo... acha... que sou diferente... deles?

Perenelle sentiu a boca secar e não conseguiu pensar rápido o bastante para disfarçar seu olhar para a cadeira. Thomas relanceou para ela demoradamente, decepcionado com aquele julgamento.

— Temos uma cirurgiã conosco e pessoas que conhecem bons lugares. Vamos providenciar tudo de que precisar. – o garoto disse a Yhani com total convicção. — Não faltará nada. Nem mesmo liberdade.

Ele deu um aceno firme antes de se levantar e sair, recebendo de Perenelle um olhar quase incrédulo pela última palavra. Vendo o joystick na cadeira, o que permitia Yhani de se mover sozinho para onde quisesse, ela foi atrás de Thomas. Agarrou o braço dele assim que passaram pelo compartimento principal cheio e entraram no corredor vazio da porta de carga.

— Que papo era aquele, trolho?

— Não me diga que quer obriga-lo a ficar conosco, Nelly. Se ele quiser voltar a ficar com aqueles caras, não poderemos fazer nada a respeito.

— Precisaremos tentar. Convencê-lo. Aquele lugar não é saudável para ninguém, nem mesmo para eles. E as chances de ele morrer pela precariedade de lá são muito maiores que as deles.

— Ele tem idade suficiente para decidir.

— E se a doença afetar seu juízo também?

Thomas ficou em silêncio. Doeria nele mesmo abatê-la com tudo que pensava a respeito.

— Não podemos levá-lo de volta, já deve ter ouvido metade dos nossos planos para onde ir. – ela acrescentou, sentindo por um momento que vencera a discussão.

— Bom, então acho que você realmente foi longe demais. – foi tudo que ele disse antes de se retirar para a cabine do piloto.

Perenelle sentiu o chão sob seus pés sumir, mas o recuperou ao sentir raiva do Clareano. Aquilo era alguma vingança pelo modo como fora tratado? A razão tentou organizar os pensamentos dela, em vão. Sentindo que qualquer lugar para onde ir agora era inadequado, ela apenas ficou longos minutos parada ali.

Horas mais tarde, todos já haviam descansado e comido de alguns improvisos que conseguiram na área desabitada em que Jorge decidira pousar o Berg. O dia começava a nascer. Um céu alaranjado iluminava a terra seca ao redor e uma brisa fresca, às vezes quente, os ajudava a ter uma digestão digna, que não os levasse a passar mal depois. Tinham decidido comer do lado de fora do Berg, alguns estavam se sentindo claustrofóbicos dentro da nave, principalmente por conta da temperatura baixíssima. Mallory fora a primeira a se voluntariar para esticar as pernas devidamente e ir procurar comida, e agora estava deitada no topo da nave, deixando suas pernas sob o fraco sol. Caçarola e Eldora, esposa de Edmundo, foram tratados com prioridade em relação à comida, e Mallory fez questão de guardar alguma coisa para Dante quando este acordasse.

Kay e Florence brincavam com Albner, que parecia nunca ter visto antes tanto espaço para brincar. A cidade onde haviam encontrado alimento despontava a alguns quilômetros de distância e vez ou outra elas precisavam agarrar o bebê de bochechas rosadas quando ele começava a correr para lá. Não havia muito barulho além do das risadas deles. A maioria conversava baixinho ou aproveitava os minutos de paz em silêncio. Yhani seguira para bem longe deles para observar o horizonte e ninguém conseguia ver qualquer movimento da parte dele.

Perenelle ficara pouco tempo do lado de fora. Não podia negar que sentira falta do sol e do calor, do oxigênio e de alguma liberdade para respirar com calma, mas também não gostava da ideia de deixar Newt sozinho no Berg, relativamente excluído. Novamente, ela estava deitada ao lado dele. O Inibidor estava logo atrás do beliche, ligado dependente apenas de duas baterias. Dois braços metálicos saíam da máquina e se dirigiam às têmporas do garoto, servindo-lhe a hipotermia induzida e todos os nutrientes de que ele precisava. Fora decidido procurar uma sonda mais tarde pela qual ele pudesse ser alimentado e não acordasse tão fraco quanto a máquina podia deixa-lo. Para que não sofresse com a mudança brusca de temperatura, Mallory achou melhor elevar poucos graus do Berg à medida que se aproximavam de seu destino.

Perenelle sentia-se ainda tão cansada que conversava com ele em pensamento. Os últimos eventos continuavam se repetindo assustadoramente e a criatividade nunca estivera tão afiada. Incontáveis vezes se pegou imaginando rumos muito piores que tudo aquilo podia ter tomado.

Tirando-lhe de seus devaneios, passos foram ouvidos no corredor ao lado. Ela prestou atenção, esperando que alguém aparecesse para falar com ela, mas quem quer que fosse seguira para outro cômodo. Virando-se em direção à parede e fechando os olhos para tentar cochilar um pouco, ela se lembrou de que todos haviam saído e combinado de entrarem juntos, para que o calor do lado de fora não aquecesse o Berg.

Perenelle se levantou devagar e silenciosamente da cama e passou pelo corredor da porta de carga, checando a cabine do piloto e o compartimento principal, onde Caçarola e a mulher de Edmundo repousavam. Em seguida, se dirigiu para o segundo quarto e acendeu a luz deste, vendo um garoto de costas para ela e de frente para a pia do banheiro. Não era nenhum dos Clareanos. Ela esticou a mão para uma luminária, sem tirar os olhos dele, e ergueu-a assim que foi vista pelo reflexo do espelho e ele se virou.

Os dois se encararam por longos segundos, ambos com a respiração acelerada.

— Quem é você? – ela perguntou.

Ainda que seu peito subisse e descesse descontrolado, ele ergueu suas mãos lentamente num sinal de paz e encarava a garota com seriedade. Ele parecia ter pelo menos vinte anos, não era muito forte, tinha porte médio, mas parecia saber lidar com situações problemáticas. Sua pele era parda e o cabelo muito escuro, e as vestes pretas chamavam atenção de um modo estranho.

— Quem é você? – Perenelle repetiu entre dentes, dando dois passos lentos na direção dele.

— Campestre. Vitor Campestre. – a pronúncia dele soou estranha aos ouvidos dela. Lembrava alguma coisa tropical, mas não soube identificar.

— Como entrou aqui?

Ele acenou com a cabeça para o lado de fora.

— Entrei com aquelas meninas. Quando passaram correndo pela multidão.

A Clareana franziu a testa tentando entender do que ele falava. E então se lembrou do breve relato que Sonya tinha feito sobre como saíram da fábrica. Nelly desejou estar segurando uma arma de verdade.

— O quanto você ouviu enquanto esteve aqui? – perguntou.

Vitor sentiu que precisava ser cauteloso e apontou para o banheiro.

— Fiquei escondido dentro do armário.

Perenelle olhou por debaixo do braço dele, fazendo os cálculos. Pareceria duvidoso para alguns, mas ela constatou impossível que ele coubesse ali dentro.

— Fale a verdade.

— Escute... – Vitor relaxou os ombros, ainda que soubesse não ser uma boa ideia baixar a guarda na frente de nenhum deles. — Morei por cinco anos na cidade que vocês invadiram. Participei de algumas reuniões importantes, mas nunca fui uma parte... deles. Não sou um assassino.

— Todos nós somos assassinos hoje em dia. - ela rebateu, decidida a esgotar qualquer argumento que ele achava que tinha.

Ele engoliu para recuperar as palavras, ouvindo uma nota musical grave acompanhar a frase dela. Junto a isso, veio uma sensação fria que arrepiou sua nuca. Vitor soube que ela particularmente não se orgulhava de dizer isso.

— Eu tinha um irmão. Meio-irmão. Mais velho. Me ensinou tudo que sei antes de... sucumbir – ele resumiu, sem saber direito como ligar as palavras do modo adequado.

— Inclusive se esconder para ouvir a conversa alheia?

— Eu só estava esperando o momento certo. Independente do que eu ouvisse, queria sair daquele lugar e essa nave foi a chance. Todos que vão embora de lá acabam sendo mortos mais tarde. Garent é paranoico com fofocas, acha que todo mundo quer ataca-los. Então manda um grupo atrás de quem deixa a cidade e mata sem que ninguém desconfie.

— Você está tagarelando.

— Mereço uma chance tanto quanto qualquer um dentro desta nave.

— Não fale do que não sabe.

— Sei que há crianças aqui, um bebê, pessoas doentes. Me mande de volta para a cidade e vai arriscar todos eles serem entregues para Garent.

— Ou podemos te largar aqui no meio do nada e ir embora.

— E somar a isso uma consciência pesada pela morte de alguém que, pelo que se sabe, é inocente até que seja provado o contrário.

Perenelle sentiu seu ego ser ferido com uma lâmina cega. Sem o seu consentimento, a mulher Pagã que matara na surdina assaltou seus pensamentos, influenciando seu juízo. Ela teve um mau pressentimento e já se culpava por alguma tragédia que tinha chance de vir.

— Não está em minhas mãos. Espere os outros entrarem. - foi tudo que ela conseguiu dizer antes de seu estômago embrulhar de atordoamento.

Os dois esperaram no corredor da porta de carga até que todos entrassem de volta no Berg. Ela apontava para ele uma pistola que muito provavelmente estava descarregada, mas isso era compensado pela careta irritada dela e o gosto de podridão forte que ele sentia.

— Você não tem um casaco sobrando? – Vitor perguntou, esfregando as mãos.

Perenelle suspirou no momento em que a porta de carga foi aberta. Ela se levantou, balançando a arma como sinal para que ele permanecesse sentado, e a multidão começou a entrar. Alguns entravam conversando e por isso não notaram a presença estranha. Mas Brenda, que fazia parte de uma conversa com o Grupo B, parou, olhou para Vitor e interrompeu o falatório, chamando a atenção do restante.

— Está na hora de termos uma reunião. – Perenelle anunciou, sem abaixar a arma.

Todos se reuniram no segundo quarto, onde podiam se distribuir pelos beliches e aproveitar melhor o espaço. Yhani ficou no compartimento principal com a desculpa de que não estava interessado na reunião, mas todos o imaginavam prestando atenção em cada palavra.

Minho e Gally ficaram bem ao lado de Vitor, enquanto Jorge parou em pé atrás, de braços cruzados.

— O que temos na pauta? – Harriet perguntou, vendo Teresa fazer anotações num bloco de papel.

— Bastante coisa. – ela respondeu.

— De volta aos velhos tempos. – Minho disse entre um suspiro, espalmando as mãos nas coxas antes de tomar o bloco para si. — Certo, vamos por ordem. Comecemos por...

— Por você fechar a matraca, pelo amor de Deus! – Harriet exclamou, tirando o caderninho da mão dele e devolvendo à Clareana. — É óbvio pelo que vamos começar.

Todos olharam para Vitor.

— Depois vamos lembrar quem está no comando. – Minho pontuou, recebendo um cutucão de Thomas.

— Ele disse alguma coisa a você? – Thomas perguntou a Nelly.

Vitor se empertigou para falar, mas foi interrompido por ela.

— Disse que fez parte da alta sociedade com aqueles caras. Morou lá por alguns anos e não podia ir embora por vontade própria porque Garent mata todos que tentam. Pensei em larga-lo aqui mesmo e seguirmos caminho, mas ele ouviu muita coisa que não deveria.

— Posso fazer ele esquecer. – Minho rebateu.

— Como você foi parar lá, muchacho? – a voz de Jorge soou sinistra aos ouvidos do rapaz.

Vitor respirou fundo, sentindo aquele desconforto que qualquer um sendo julgado num Conclave sentia.

— Eu fui criado pelo meu irmão mais velho na América do Sul, mais ou menos depois que o Fulgor se instalou no mundo. Nós vivíamos num... hum... num grupo; é mais fácil chamar assim. A família mais velha e Imune por ali era a que administrava. Muitas pessoas chegavam no começo, até que... bom, não havia mais quem chegar, todos foram sendo mortos pela doença ou os Cranks, e tivemos alguns sacrifícios lá também. – Vitor parou o relato para impedir o impulso de cuspir ao sentir o gosto de casca de mamão, que tanto odiava. — Não tínhamos muitos recursos, mas construímos muros para impedir a entrada de Cranks e não-Imunes infectados. Um dia, um de nós, até hoje não sabemos quem, deixou um infectado entrar e poucos saíram vivos. Ninguém que restou teve condição de recriar o grupo, então viajei sozinho por meses fugindo de Cranks pelo mundo, até encontrar aquela cidade e decidir ficar. Era o melhor que tinha me aparecido.

— E seu irmão? – Florence perguntou sem pensar, recebendo algumas olhadas discretas de repreensão.

— Ele não era Imune. – Vitor disse brevemente.

— Qual a sua relação com o CRUEL? – Perenelle indagou sem rodeios, voltando ao que interessava. Não podia deixar de pensar em Denver ao ouvir sobre muros.

— Relação? Eu vivia na América do Sul, por acaso sabem alguma coisa sobre aquele lugar?

— Está se sentindo bem à vontade, não é, cara de mértila? – Minho zombou. — Do que ele está falando? – dirigiu-se a Brenda.

— A América do Sul foi o primeiro alvo do vírus. O crescimento demográfico era maior lá e a economia não era muito valorizada. O CRUEL quis priorizar a segurança nos países mais ricos, então aquela parte do mundo ficou muito mais feia do que já tinha ficado com os Clarões.

— Ou seja, eles não estavam nem aí para nós. – Vitor continuou. — Por lá, a Benção era apenas uma lenda. Foi só quando me juntei àquela sociedade que soube que era verdadeira. Fico pensando o quão teria sido melhor se meu irmão tivesse tido o mínimo contato com esse negócio.

Os antigos Indivíduos se entreolharam, compartilhando o pensamento reconfortante de que o rapaz não tinha nenhuma ligação com o CRUEL. Melhor ainda: ele tinha rancor deles. Todos perceberam naquele momento que isso era o mínimo necessário para que pudessem conviver harmoniosamente com quem entrasse em suas vidas.


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