Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 52
Perdas




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O carro que Sonya e Harriet escolheram para esperar do lado de fora a retirada do Inibidor era tão velho e sujo que ninguém pensava em olhar duas vezes ao passar por ele. Jorge se juntara a elas após ser liberado do interrogatório com o vigia.

 — Quanto tempo mais vamos ter que esperar para ter certeza de que há algo errado? - Harriet indagou, impaciente com a espera. O esconderijo lhes proporcionava uma visão completa da janela solitária da fábrica, mas não lhes permitia ver a varanda em que Nelly e Gally foram pegos pelo Ruivo.

Ela olhou para Jorge, esperando que ele respondesse, mas o homem continuou observando a fábrica de queijo.

 — O restante deles voltará a qualquer momento e não será nada bom se os dois tiverem que enfrentar todos aqueles caras. - Sonya acrescentou, tentando chamar sua atenção.

 — Vocês ficam aqui, aconteça o que acontecer. - ele disse, enfim. — Foram as únicas encarregadas de sinalizar o momento certo para o Berg vir e nos levar, hermanas.

 — E no momento também somos as únicas, além de você, que sabem que há algo errado. - Harriet replicou.

Com um suspiro, Jorge abriu a porta barulhenta do carro e saiu, mais que impaciente com a demora de Nelly e Gally. Ele pôs a mão na arma que guardava na parte de trás da calça apenas para verificá-la, aproximando-se da construção estranha. Ele parou de frente para ela, observando-a com toda a minuciosidade que a distância lhe permitia, mas era impossível deduzir o que se passava com Gally e Perenelle. Quando ele fez que voltaria ao carro, viu uma figura correndo em sua direção. Primeiro viu o rosto assombrado, depois reconheceu Aris. O garoto ofegava ao parar na frente do homem, dobrando-se sobre os joelhos para recuperar o fôlego. Ele estava no grupo que manteria parte dos homens da fábrica longe com a desculpa sobre os Cranks. Jorge sentia o perigo à espreita das palavras dele.

 — Eles descobriram... Sabem que tem algo errado... Saí logo antes de começarem uma briga com a gente. - Aris disse.

 — Você foi seguido? - Jorge perguntou com a mão tensa no ombro dele.

 — Não... Não sei...

Jorge, no entanto, viu uma segunda figura vir pelo mesmo caminho que o garoto, mas em direção à fábrica. Ele fez sinais sugestivos para as garotas e verificou se estavam sozinhos na rua, depois puxou Aris para ajudá-lo.

Os dois aproximaram-se em silêncio do homem, que era mais baixo que Jorge. O hispânico conseguiu imobilizá-lo, cobrindo sua boca para garantir a quietude da rua, enquanto Aris o desarmava. Com um movimento imperceptível pelo pescoço do refém, Jorge o deixou inconsciente. Aris meteu desajeitadamente o revólver capturado no cinto e agarrou as pernas do homem, enquanto Jorge segurava os braços e o puxava para uma caçamba de lixo.

 

Na fábrica, o segundo andar possuía uma sala com um cheiro forte mas suportável de queijo, onde agora os homens estavam reunidos. Garent e Hilston, o homem de rabo de cavalo que o colocara de volta aos trilhos da calma perante os reféns, eram os únicos em pé, mas tão pensativos quanto qualquer outro do grupo ali. Haviam tentado entrar em contato com o restante deles pelo comunicador, mas em vão. Não deram o menor sinal de terem ouvido a mensagem. Alguns na sala ainda estavam à espera de uma resposta, relanceando para o aparelho.

 — Devíamos usar esses dois para mostrar ao resto deles que não estamos de brincadeira. Seja o que for que estão fazendo com os nossos, eles não iriam continuar. – um homem de barba vestindo um sobretudo olhava para cada um dos companheiros enquanto falava.

 — Eles são do CRUEL. Não vão poupar justo crianças no plano para conseguir o que querem. – Hilston rebateu. Ele e Garent sabiam disso melhor que ninguém ali.

 — Não acho que sejam do CRUEL. – Garent se pronunciou com o olhar perdido no chão, recebendo a descrença do namorado em resposta. Ele devolveu sem o mínimo de abalo, o sotaque alemão o deixando ainda mais assustador. — Não preciso de mais nada para saber como reconhecer alguém que odeia aquele pessoal, Hills.

 — Aé? Pois eu não preciso de nada para saber que estão brincando conosco. Tenho certeza de que há pelo menos uma dúzia dos desgraçados lá fora esperando a máquina ou nós!

Garent sustentou o olhar silenciosamente, até agarrar uma espingarda da parede e começar a seguir para a saída.

 — Vamos checar. – disse, e logo depois foi impedido por um puxão de Hilston pelo braço. O moreno puxou-se volta, empurrando o outro para trás com o cano da arma. — As coisas ficam complicadas a qualquer momento. Se tiverem mesmo um estoque de comida em algum lugar, com certeza nós queremos.

 — E se estiverem mentindo?

 — Bom, então eu mesmo...

Garent se interrompeu em sua declaração de que os devolveria ao CRUEL. Independente de quem Nelly e Gally fossem, não teria coragem de fazer isso: entregar crianças aos cientistas. Pensar em tal coisa lhe secava o poço inesgotável de palavras que sempre teve.

 — De uma coisa eu sei: eles não são como aquele velho nojento apodrecendo atrás do muro, e por enquanto não merecem uma Sessão. Vamos arrancar o que pudermos deles com a mesma política de sempre.

Uma risada vinda de um homem gordalhão procedeu à fala de Garent.

 — Caramba, Buldogue, sinto sua oxitocina daqui. – Garent reclamou com uma careta e, sem dizer ou fazer mais nada, saiu pela porta.

Hilston se sentou na mesa de madeira comprida que ocupava boa parte da sala, dobrando uma das pernas por cima e pisando inquietamente com o outro pé no chão, imerso em pensamentos.

 — Dê um desconto a ele. Afinal, quantas crianças vimos direito desde Philip? – indagou Arthur, amigo mais próximo de Garent, mesmo sabendo que não receberia uma resposta de Hilston. O casal jamais mencionava o nome do garoto.

Em cima da mesa, um dos comunicadores chiou.

Garent estava apoiado na armação de ferro e observando o grupo lá embaixo. Nelly e Gally estavam quietos, sob a guarda do Flanela, do Ruivo e de Yhani.

 — Qual o ponto em ter um cara desses nos encarando? – Gally indagou num murmúrio à Nelly, que desfrutou da deixa para desviar o olhar de Yhani por um momento e encarar o amigo.

Yhani, o homem na cadeira motorizada, possuía alguma doença séria, da qual a Clareana nunca ouvira falar, que o deformara aparentemente o corpo inteiro. Ele não se movia muito. Seus pés eram dobrados para dentro, de modo que o osso do tornozelo tocava os apoios da cadeira. Suas mãos eram atrofiadas, os dedos dobrados de um jeito estranho, e os braços foram cruzados sobre o colo de um modo não natural por alguém que certamente não era Yhani. A atrofia tomava sua cabeça também, mas isso fez com que ela fosse torta para um lado, e o queixo era muito saliente, o que talvez o impedisse de comer direito.

Perenelle não sentia nada além de assombro e pena pelo homem. Ele não fazia a menor questão de quebrar o constrangimento de encará-los por tanto tempo e a mesma maldade de Garent estava explícita em seus olhos. Perenelle queria acreditar que era remorso dele pela própria situação.

 — Ela... ganhou... o jogo. – Yhani falou pela primeira vez desde que fora trazido, captando a atenção de todos. Sua doença afetava a fala também. Seus lábios precisavam fazer movimentos amplos para que fosse entendido, e ele colocava cada palavra no seu tempo.

 — Como assim? – o Flanela indagou, confuso.

 — O rapazinho... desviou o... olhar... primeiro. – a voz rouca o deixava meio assustador.

Gally meneou a cabeça, inconformado. Pensou em rebater, mas deixou para lá. Já estavam em desvantagem suficiente. Em vez disso, reparou que Perenelle se balançava ligeiramente para os lados. Ele estranhou.

 — Se importa que eu pergunte...

 — Sim. – o Ruivo interrompeu Perenelle, ainda que ela falasse com Yhani. — Não é da sua conta.

Ela resolveu se calar, mas continuou balançando o próprio corpo para se distrair da curiosidade que tinha sobre a doença. Era intrigante, também, que homens como aqueles tivessem a capacidade de acolher alguém como Yhani. Àquela altura da catástrofe, ele não estaria vivo, se dependesse de si mesmo.

 — Olha, o que é que eles precisam conversar? Temos comida, vocês nos dão a máquina e recebem quarenta e cinco por cento do que produzirmos. – Gally disse impacientemente, encarando os homens, mas resolvendo ignorar Yhani. — Não pode ser nada muito difícil de decidir.

 — Tem razão! – a voz de Garent ribombou pelo ambiente, enquanto ele descia as escadas barulhentas com os colegas. — Mas não gosto de surpresas e temos ido bem em evita-las. – ele contornou os dois Clareanos e se apoiou no espaldar de Gally, encarando-o de perto. — Chegou a hora de ajudarem nisso.

 

Thomas observava a cela abarrotada de homens com certa preocupação. A prisão da cidade era relativamente pequena e se situava quase fora dos limites dela, ou seja, distante o bastante para que o risco de serem encontrados fosse o menor. No entanto, o andamento das coisas fora bagunçado.

O grupo de Thomas não esperava realmente encontrar uma horda de Cranks no ponto para o qual haviam decidido guiar os homens e dar tempo a Nelly e Gally, então isso gerou uma imensa confusão. Todos se ajudaram a levar e prender os Cranks nas celas, mas os homens pegaram os jovens na mentira. As meninas do Grupo B se revelaram ótimas lutadoras e foram as responsáveis por desarmar e imobilizar a maioria dos homens. Os meninos foram agraciados com as armas conquistadas, pois não tinham saído do Berg com muitas. Era um milagre terem saído vitoriosos; o Grupo A conseguira bons hematomas e Andrômeda um tiro de raspão acidental no braço. Thomas se perguntava por quanto tempo mais teriam sorte.

 — Temos que sair daqui. Rápido. – ele disse a Minho, que acabava de trancar o corredor para as celas. Os homens teriam sérios problemas se os Cranks conseguissem sair de trás das próprias grades, pois estavam no mesmo bloco.

 — O quê? E se conseguirem escapar? – o asiático indagou.

 — Não acho que podem ser contidos pelas grades de uma cela. – Teresa emendou.

 — Já temos eles presos. Tirei isso de um deles. – Thomas ergueu um comunicador.

 — Eles avisaram os outros? – ela arregalou os olhos.

 — Provavelmente. Precisamos voltar e ter certeza. Me parece melhor do que o plano inicial.

 — Nunca é melhor do que o plano inicial. – Andrômeda comentou, encostada contra uma parede e cobrindo o curativo improvisado feito. Mallory havia sugerido que levassem bandagens.

 — Aé? Fizeram muito isso enquanto nos tratavam como ratos e viu que não deu certo? – Minho indagou com selvageria.

 — Chega. – Thomas disse, mas a garota não se daria o trabalho de retrucar. Ele puxou seu próprio comunicador do bolso e chamou por Sonya. Montando o plano, haviam pensado que manter com ela o outro comunicador que possuíam seria o mesmo que manter com Perenelle, mas com mais segurança. Não deu muito certo.

 — Tudo certo? — a loira perguntou do outro lado.

 — Qual a situação aí? – Thomas devolveu.

 — Bem, estamos dando um jeito.

Thomas e Minho se entreolharam.

 — Dando um jeito em quê? – Minho indagou.

 — Aris foi seguido quando saiu daí, agora estamos tentando dar um jeito de fazer o cara não nos apunhalar pelas costas... Jorge! Ah, que droga...

 — Por que Jorge está com ela? – Brenda indagou, os olhos arregalados.

 — Ei, e quanto a Nelly e Gally? – Thomas disse ao comunicador, tentando não entrar em pânico.

 — Não sabemos, Thomas. Eles entraram e não saíram ainda. Nem um sinal. Talvez devêssemos reagrupar.

 — É, só talvez. – Mike ironizou.

O comunicador chiou e silenciou, e Sonya de repente não disse mais nada.

 — Vamos voltar para a cidade e ver o que podemos fazer. – Thomas sugeriu.

 — Ótimo plano. – Minho respondeu. Andrômeda deixou seu queixo cair com a confiança nas palavras do garoto. Thomas percebeu-a e acrescentou:

 — Já vimos o que podemos fazer em maior número. Se aconteceu algo com eles, podemos evitar que fique pior.

Ela balançou a cabeça, indignada. Era estranho para Andrômeda depender diretamente de como o rapaz planejava as coisas. Já julgara imprudente todo o modo dele de agir no Labirinto e no Deserto, mas nunca precisara temer pessoalmente por isso. Seu trabalho era ficar apenas por trás dos monitores e pranchetas. O único incentivo para seguir as ideias de Thomas agora era a porcentagem de acertos que ele teve antes.

O grupo todo voltou para a cidade, mas não se deram o trabalho de se espalhar como na primeira vez. Agruparam-se atrás de um conjunto de prédios e Thomas chamou Sonya pelo comunicador outra vez, mas não houve resposta.

 — Não podem ter sido contidos por apenas um cara. – Caçarola disse, incerto.

 — E se Aris não foi seguido por apenas um? – Teresa recomeçava a se mostrar tudo, menos um estímulo para Thomas. Ele a ignorou e tomou a dianteira do grupo de novo, cidade adentro.

Foram beirando as ruas, passando por trás das construções quando possível, até chegarem ao ponto onde Sonya e Harriet deveriam estar. Viram o carro destruído e não deixaram de notar o sangue no vidro traseiro. O único sinal das meninas era o comunicador no chão, que Thomas pegou e guardou consigo.

 — E agora? – Brenda perguntou com a preocupação evidente.

Thomas apertou outro botão em seu comunicador antes de falar:

 — Mallory, diga que ainda está em posição com o Berg.

 — Sim, claro. Por que estão demorando tanto?

 — Vamos mudar o plano.

Thomas não tinha ideia de que, bem ao lado, numa das casas mal tratadas pelo tempo, uma mãe solteira e seus três filhos pequenos eram obrigados a ficar calados e aceitar a invasão dos homens que seguiram Aris, e olhavam as quatro figuras deitadas na sala de estar.



— Vocês vão dizer exatamente onde a escória de vocês está. – Garent murmurou para o rosto de Gally, que fez uma careta e torceu o nariz com o mau hálito do homem.

 — Ah, cara... – ele resmungou, virando a cabeça para o outro lado, mas teve o queixo agarrado e foi forçado a encarar o moreno.

 — Fim da linha, garoto. Seus amigos de guarda do outro lado da rua foram descobertos e podem não estar mais entre nós.

Perenelle perdeu as palavras. Seu corpo esquentou de pânico sobre o que ele dizia. Sonya e Harriet estavam com problemas? “Como isso aconteceu?”, ela se perguntou, apavorada.

 — De novo: não trabalhamos para o CRUEL. – Gally disse.

 — Eu acredito em você. – Garent sorria abertamente, um sorriso assustadoramente bonito. — Nós vamos todos nos reunir, deixar as máscaras de lado, e então vamos conversar sobre o que todas essas crianças querem com um Inibidor.

A verdade de tudo estava na ponta da língua de Perenelle. As coisas já tinham desandado o bastante. Mentir apenas traria o pior. Sabe-se lá o que houve com o grupo de Thomas.

 — Também vão nos dar a localização exata do tal estoque de vocês. – Garent acrescentou.

Perenelle fechou os olhos. Não podia em hipótese alguma se permitir mencionar Newt. Tentou encontrar paz dentro de si, manter a calma e conseguir pensar, mas sentia-se cada vez mais perdida.

 — Denver. – Gally respondeu.

 — Gally, pare... – a Clareana sussurrou. Precisavam parar de mentir a torto e a direito, não ia levar a nada. Se ao menos tivessem saído do Berg com uma história racional em mente... Como puderam imaginar apenas uma guerra armada pelo Inibidor?

 — Está prestes a ter um treco, menina? – um homem de camisa social indagou ao notar o estado dela.

 — Talvez devêssemos ir com mais calma com esses dois. – Garent disse sem um pingo de seriedade, e em seguida acertou o punho no estômago de Gally. O garoto gemeu e grunhiu, para depois puxar o que devia ser todo o ar da fábrica para si. O som tornou as mãos de Perenelle ásperas e o gosto de sal fez sua boca salivar. Gally estava vermelho enquanto tossia.

Garent saiu de perto dele e se agachou na frente da Clareana, tirando uma faca do cinto e exibindo-a como se precisasse. Mais rápido do que ela pôde acompanhar, ele subiu e desceu a faca em direção ao braço de Nelly, mas acertando apenas a madeira de apoio da cadeira. O coração dela subiu para a garganta.

 — Somos o governo e a proteção da cidade, então o que fazemos aqui não é nenhum ato egoísta ou estranhamente para a nossa diversão. Vocês devem saber o que é querer proteger os seus. Infelizmente, já falharam nisso com aqueles do outro lado da rua, mas podem continuar tentando. Tragam o restante aqui e poucos, talvez nenhum, vão sair machucados.

Perenelle engoliu em seco e tornou a fechar os olhos, tentando conter as lágrimas. Não sabia ao certo o porquê, mas aquilo era pior que o Mosteiro. O que faziam lá com as pessoas era desumano, sem dúvida, principalmente porque usavam uma crença como desculpa. Mas tudo ali na fábrica parecia ser a situação mais angustiante em que já estivera. Eles corriam o risco de morrer ali e, consequentemente, matar Newt. Depois de tanto trabalho e desgaste para mantê-lo a salvo, tanto esforço emocional e mágoa, podiam perdê-lo por um plano mal formulado.

Ela abriu os olhos e esses cruzaram o espaço direto até Yhani, que a observava com a apática expressão que a deformidade lhe obrigava a ter. Nelly, envergonhada, sentiu as lágrimas pingarem para as bochechas.

 — Ela está zoando, não é? – um rapaz sardento desdenhou, apontando para o estado de Nelly e olhando para Garent.

O moreno puxou a faca de volta com uma carranca. A Clareana se negou a olhar para Gally.

 — Lamento, não tenho coração mole. A única saída de vocês é entregar seus amigos. – o líder disse.

Gally tentou pensar, bolar um plano, mesmo que precisasse mentir mais um pouco para ganhar tempo. Podiam dizer onde estavam Thomas e os outros, e depois levar os homens até um lugar com a desculpa de ser onde estava o estoque, e então os enganariam e iriam embora de uma vez para conseguir o Inibidor em outro lugar. Mas e se mais deles se machucassem no meio tempo? Mais deles podiam morrer. Sem contar que talvez vissem Newt no Berg e tudo estaria perdido. As entranhas de Gally se retorciam só de imaginar.

Perenelle seguia basicamente a mesma linha de pensamento, tentando encontrar uma saída que não envolvesse mais ninguém além deles, e o nervosismo lhe fez soltar um soluço.

 — Podemos tirar outras coisas de vocês se quiserem ir mais devagar. – o gordalhão, Buldogue, disse, aproximando-se de Perenelle. Garent sorriu para o homem, balançando as sobrancelhas em aprovação.

 — Eu... sugiro... rapidez. – Yhani parecia sorrir também, mas era impossível ter certeza.

Gally e Perenelle compartilhavam do mesmo pensamento: como alguém que acolhera Yhani conseguia agir de modo tão brutal com eles?

Garent riu enquanto o gordalhão se colocava atrás de Perenelle e se inclinava ao seu lado. A garota sentiu seu sangue esquentar, mas não conseguia decifrar suas emoções além da repulsa pelo gosto de metal da sinestesia. Seu coração batia ferozmente contra o peito, como se não quisesse presenciar o que estava por vir. A lâmina de uma faca surgiu ao lado de seu rosto, reluzindo cinicamente. A respiração dela se acelerou pois sentia a barba do homem contra seu cabelo.

Garent cruzou os braços com ar de interesse. Gally não conseguia tirar os olhos dos dois ali, principalmente da completa imobilidade de Nelly.

 — Isso não vai nos fazer falar. - o Clareano avisou numa voz trêmula. Seu olhar alarmado para o líder era um claro sinal de fraqueza.

Garent riu fraco, devolvendo o olhar brevemente, enquanto o Sardento, com talvez vinte e um anos, soltava uma gargalhada.

 — Se isso não fizer vocês falarem… - o jovem murmurou, estranhamente divertido com aquilo. Seus olhos faiscavam ansiedade.

A faca desceu pelo braço de Perenelle, enviando-lhe calafrios pela espinha. Podia ouvir a voz do líder do Mosteiro em sua mente mandando tirarem as roupas dela. Ela pensou em Norma, na Mulher de Sutiã, e a infinidade de imagens que se seguiram em sua mente fariam parte de seus pesadelos para sempre, quer se tornassem reais ou não. O homem riu ao ouvido de Perenelle, e seu estômago se contraiu de um jeito estranho. Não queria vomitar e se mostrar ainda mais fraca, mas assim ela começava a ficar tonta. Ela fechou os olhos, pensou em Newt, na cor amarela. O que quer que acontecesse, seria por ele. Trocaria qualquer coisa que aqueles homens quisessem pela saúde de Newt.

Pensar nisso fez aflorar um leve sorriso no rosto da Clareana, e lágrimas em seus olhos.

Quando se deu conta, estava cerrando os dentes com extrema força, e o gordalhão não estava mais tão perto. Ter tantos olhares sobre si nunca a fez tão vulnerável. Era difícil controlar a si mesma daquele jeito. Mesmo Gally a fazia se sentir pequena agora. Ele era um garoto.

Perenelle engoliu e apertou os olhos, abolindo esses pensamentos. “Gally não é nada como esses homens”, ela se repreendeu.

 — Onde está o resto de vocês? - Garent perguntou diretamente à Clareana.

 — Vocês pod-

 — Ah-ah! - Garent ergueu na direção de Gally um revólver, tirado sabe-se lá de onde, impedindo-o de continuar falando. — Fale sem permissão e vou arrancar sua língua com um tiro. - ele olhou para Nelly, puxando uma cadeira e pondo um pé sobre ela. — Quero que ela fale.

Ela respirou fundo para tomar o controle da situação ou pelo menos dela mesma. Ele queria que ela falasse. Ela precisava falar.

 — Não-o precisamos fazer a-as coisas desse jeito. - sentiu o chão sumir sob seus pés com aquela gagueira. Inspirou mais uma vez, prendeu, e então soltou. Seu coração precisava deixá-la se concentrar.

 — A cada vez que você gaguejar, vou empurrar mais a lâmina. - disse o Buldogue, assustando-a com o surgimento repentino. Ele colocou a faca na jugular da garota.

 — Sabe que poderiam ter evitado que seus amigos lá de fora morressem se tivesse vindo fazer um acordo desde o começo, não é? - Garent disse extremamente sério.

Perenelle franziu o rosto. Seu grupo nunca teria feito isso após ver como o velho tinha sofrido nas mãos deles.

 — Algumas cidades são sustentadas pelo dinheiro, mas nós vivemos do bom e velho escambo. Era só mostrarem o estoque de vocês. - ele continuou.

“Sonya e Harriet não podem estar mortas. Elas estavam com o sinalizador para avisar o Berg da nossa saída. Poderiam tê-lo disparado se algo desse errado”, Perenelle pensou, esperançosa. “A menos que não estivessem com ele no momento… Mas estariam. Claro que estariam…”. Ela olhou para Garent, tentando encontrar qualquer sinal de blefe na expressão dele. Mas era o homem quem estava analisando-a.

 — Onde estão seus amigos? - ele perguntou.

 — Vamos deixar e-eles fora disso. - a lâmina pinicou sua pele com a pressão. O gordalhão aproximou mais seu rosto dela, e ela sentiu a respiração dele tão pesada que lhe causava agonia. A barba voltou a tocá-la, do cabelo à pele.

Gally mal conseguia olhar e não tinha ideia de como estava conseguindo segurar sua língua; ver a Clareana começar a empalidecer daquela maneira era torturante.

 — Se não trouxerem eles aqui, vamos matar vocês e cobrir qualquer rastro. - Garent continuou, enquanto Buldogue soltava seu hálito contra o pescoço de Nelly. A garota moveu a cabeça para o lado, com receio da aproximação, e a mão grande dele forçou-a a se endireitar. As queimaduras em suas costas gritaram. — A cidade inteira sabe lutar contra intrusos, então podem ter certeza de que estão em desvantagem. Não vai restar um para levar o Inibidor daqui. Tem alguém que não pôde acompanhá-los nessa invasão? Alguém que depende do Inibidor?

Perenelle o encarou imediatamente. Eles encontraram o Berg?

 — Ninguém seria estúpido de trazer alguém jovem demais para uma missão dessa. Alguém com… não sei, menos de quatroze anos? - ele acrescentou.

Havia o bebê no Berg. E Perenelle não sabia a idade da menina desconhecida que saíra com eles do complexo do CRUEL… Mas ela era nova...

Sonya tinha quinze anos. Eles sabiam até demais sobre as meninas que ficaram do outro lado da rua, Perenelle percebia isso. O cheiro de ovo podre tomou seus sentidos e seu corpo esquentou. Sonya e Harriet…

 — Trazer seus amigos aqui garante mais uma trégua do que deixá-los escondidos. E eu posso matar ele. - apontou para Gally. — Já foi responsável pela morte de alguém?

Perenelle lutou. Não ia deixar isso acontecer. Não podia ceder àquela pergunta.

 — Já? - Garent repetiu. — Cranks saem de si, mesmo que sejam conhecidos. Já matou um Crank?

 — O estoque está em Denver. - ela tentou se esquivar.

 — Por que havia apenas um adulto com vocês? Aquele hispânico… Onde estão seus pais? Um tio ou uma tia? Você tem irmãos?

 — Não teremos nada pa-para oferecer se não formos até lá antes que os Cranks des-struam tudo.

O Buldogue fez tanta força que a cabeça de Perenelle vergou com a lâmina. Gally forçou as amarras.

 — Você matou seus pais? - Garent perguntou. A apatia do semblante dele deixava tudo pior. — Deixaram você só com lembranças antes mesmo de se tornar adulta? Ou você tirou isso de si mesma?

Perenelle estava vidrada nele àquela altura, ainda que precisasse agora olhá-lo por cima do próprio nariz. Garent parecia mais um psicólogo agora, considerando seu tom e olhar. O que Nelly mais precisava era de um psicólogo…

 — Sente falta deles? Da sua mãe?

Ele percebeu a mudança na expressão dela, o fraquejar do olhar.

 — Sente falta da sua mãe?

A barba desceu pelo pescoço dela e a faca seguiu por seu peito. Nelly lembrava claramente das veias vermelhas e negras que sua mãe possuíra, aquelas que o Fulgor deu a ela; aquelas que não teriam estado lá se não fosse pelo CRUEL; assim como Newt não estaria naquela situação se não fosse pelo CRUEL. Eles criaram o vírus, ela sabia como livrar a humanidade dele. Newt precisava do Inibidor…

A lâmina agora se encontrava no pulso de Perenelle, o fio roçando de um lado para o outro como uma serra. Aquilo ardia, não fazia nenhum corte. Garent engatilhou a arma e se aproximou de Gally, apontando para a cabeça dele. O sangue dela borbulhou.

 — Me conte onde eles estão ou eu puxo o gatilho. - Garent disse.

 — E-eu não sei… - “É claro que sabe, responda direito”, pensou sozinha. A lâmina fez um corte em seu pulso, mas ela mal sentiu. Gally começava a suar.

 — Onde eles estão? - a boca da arma tocou a testa de Gally. Nelly viu a pele dele se mover com o toque, viu o peito do Clareano se movimentar mais rápido. A temperatura despencou. O ar cheirava a pimenta.

 — Escute… Eles podem ter saído de lá. O plano era distrair vocês só por um tempo, eu juro!

 — Não precisa prometer, apenas diga onde estão.

 — Eles… Escute… Preste atenção… - mas era ela quem não prestava atenção.

Garent balançou a cabeça numa falsa compaixão e fitou a testa de Gally. O som do gatilho foi ouvido. Um grito escapou da boca dela, reverberando. O gatilho continuou sendo puxado, várias vezes, incansavelmente. Mas não havia estouro. Gally estava do mesmo jeito: tremendo, vivo. O barulho do gatilho vinha dos homens ao redor. Todos seguravam armas descarregadas, todos puxavam os gatilhos.

 — Eles… Eles… - as palavras não vinham. Ela não conseguia raciocinar, apenas encarar a arma.

 — Onde vocês foram distrair os nossos? - Garent perguntou e o som dos gatilhos cessou imediatamente.

Buldogue agora subia uma das mãos pelo ombro de Nelly e descia por seu peito. A faca estava no dorso de sua mão.

 — Foi… Foi no-no fim da cidade.

A lâmina alcançou o dedo mindinho e desceu completamente, firme e decidida, arrebatando toda a carne à disposição. Ela tentou puxar a mão, mas estava atada. A dor veio, fez seu espaço e se instalou, abrindo caminho por cada nervo do corpo da garota, atacando cada célula com a mesma destreza que o Fulgor. O grito disparado dela arrebatou os ouvidos de todo mundo. As lágrimas desceram finalmente dos olhos de Nelly. O fôlego para descarregar a dor na própria garganta era desconhecido, mas duradouro.

Era espantosa a quantidade de sangue que se derramava. O vermelho vivo manchava o braço da cadeira e formava uma poça descomunal no chão. Perenelle recomeçava a berrar a cada vez que olhava. Seus próprios olhos pareciam enviar intensas correntes de dor à sua mão. Seu raciocínio nunca estivera tão zerado. Estava sem Newt. Estava sem o Inibidor. Estava sem a capacidade de se curar. Estava sem o dedo mindinho.


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