Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 51
Tudo pelo manquitola




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As pessoas por aquela cidade pareciam viver de modo aparentemente normal. Um trio de mulheres passou por nós conversando e carregando comida. Tinham as feições cansadas, mas saudáveis. Observaram-nos por longos segundos até sumirem numa esquina.

O hospital era a construção mais bem conservada, limpo até do lado de fora, com portas de vidro polidas e janelas blindadas. Da rua era possível ver pessoas armadas no telhado, como se protegessem o lugar. A recepção estava quieta e ocupada apenas por uma mulher rechonchuda atrás da bancada, concentrada em papéis ao redor de si. Naquele momento desejei que Mallory estivesse ali para falar; às vezes o medo de ficar no controle das coisas me assaltava. Mike e Kenan haviam insistido para que ela permanecesse no Berg e assim o Fulgor não fosse estimulado a agir muito rápido em seu organismo. Ela ficara apenas pelo pedido deles, eu sabia, e eu reconhecera em seus olhos o desejo de ter mais tempo com os filhos.

Discretamente, todos nós guardamos as armas e nos aproximamos da recepcionista. Gally pigarreou para chamar sua atenção. Sua roupa possuía um crachá no peito com o nome de Willow e, se não estivesse onde estava, pareceria apenas uma civil comum que achava necessário carregar uma identificação.

Ela olhou para cada um de nós como se procurasse uma doença.

 — Sim?

 — Tem algum chefe por aqui com quem possamos falar? – Gally perguntou, olhando ao redor brevemente antes de encará-la.

 — Do que precisam?

 — Um Inibidor. Uma máquina grande, costuma ser usada para... congelar cérebros, ou coisa assim. – ele tirou o desenho que guardara no bolso e mostrou a ela.

 — Fazemos só atendimento básico aqui. E todos os Cranks foram removidos, por isso... – tirou um aparelho de trás do balcão e o ergueu. – vou precisar fazer a verificação.

Agora agradecia por Mallory ter ficado no Berg.

O aparelho me lembrava o do portão de Denver. Willow espetava nosso dedo com um alfinete e o sangue era colocado numa plaquinha com sensor azul.

 — Podemos dar uma olhada no hospital? – perguntei, enquanto Sonya acabava de cobrir a ponta do dedo com o algodão dado pela mulher.

 — Podem, mas é perda de tempo. Levaram essa máquina daqui. Está com nossos amigos mais receptíveis.

 — Onde?

 — Trezentos metros à frente. Há uma antiga fábrica de queijo, deve ter alguém por lá. A cidade é pequena, somos pouco mais de cento e sessenta habitantes ao todo, então é melhor pensarem bem antes de tentarem alguma coisa. Os vigias gostam de dar tiros em forasteiros que ficarem reunidos ou parados na rua por mais de dois minutos.

 — Só estamos aqui pela máquina. – Harriet afirmou. Se eu estivesse no lugar da recepcionista, ouvindo-a dizer aquilo com tal seriedade, nunca acreditaria.

 — Que bom.

Willow voltou ao seu assento, como se seu trabalho se resumisse em verificar Imunes todo os dias.

Saímos do hospital e seguimos pela rua. Pude ver os vigias no telhado atentos a nós, segurando armas grandes parecidas com Lança-Granadas. Do modo mais discreto que pude, deixei minha faca por dentro da manga do casaco, com o cabo na mão. Certamente aquela segurança toda era pelos Cranks, e eu não imaginava que utilidade o Inibidor teria fora de um hospital, mas já tinha visto o suficiente sobre que tipo de pessoas habitava o mundo agora.

Encontramos a fábrica, mas, assim que pude observar bem, parei de andar. Todos os outros fizeram o mesmo, certamente com a mesma dúvida que eu. Ela era ao contrário? De frente para a rua, uma parede lisa se erguia, com apenas uma pequena janela quadrada um pouco alta demais. Olhei para o que normalmente seria os fundos e vi algo parecido com uma varanda.

 — Talvez devêssemos ser amigáveis primeiro. – Andrômeda sugeriu.

 — Não ouviu dizer por aí? Sou a simpatia em pessoa. – Gally ironizou, franzindo o rosto para a construção. Niels riu baixinho.  — Observar é o que vamos fazer primeiro.

Eu concordava plenamente. Demos a volta na fábrica para que os vigias do hospital não pudessem nos ver e Gally espiou por trás da quina para a varanda, e fiquei logo atrás de seu ombro para fazer o mesmo. Não havia muito que ver. A alguns metros, materiais de construção, canos cortados, troncos de árvore, queijo podre estavam espalhados até um muro de cimento manchado mais à frente. A varanda possuía uma rede, uma mesa e uma cadeira de balanço. O vaso de flores rosa ali parecia deslocado. Estava para comentar, quando um rangido alto me assustou. A integrante do Grupo B da qual eu ainda não sabia o nome estava abaixada atrás de nós, segurando uma pequena porta vai-e-vem aberta na fábrica. Olhei para ver se não havia alguém por perto que tivesse ouvido e me aproximei com os outros.

 — Tem gente lá dentro. – ela sussurrou.

 — Francamente, Florence... – Sonya murmurou impaciente, esfregando o rosto e descansando a mão sobre o peito. A menina devia ser a mais nova entre todas elas, com no máximo doze anos. No Berg, quase disse para que ela ficasse com os outros até voltarmos, e então lembrei que ela vivera o Labirinto e o Deserto. A última coisa que as pessoas podiam fazer era nos subestimar.

Abaixei-me ao lado dela e abri a portinha com a maior cautela possível. Era do tamanho de uma porta para cães. Espichei o pescoço para dentro, já completamente enjoada com o cheiro forte de queijo. O lugar era muito maior do que parecia por fora. Armações de metal e escadas iam até o teto como andares. Havia caldeiras, mesas, e o mais importante: pessoas. Todos homens entre os vinte e cinquenta anos. Eles estavam espalhados, conversando, digitando em notebooks estranhos, escrevendo alguma coisa nas paredes. Não tive ideia do que pensar sobre aquilo, até um círculo deles no centro ser defeito e revelar um velho numa cadeira, amarrado e sangrando, risonho. Um pouco afastado dele, estava o Inibidor.

Respirei fundo e me recolhi devagar, puxando a porta comigo.

 

 

O Berg estava em silêncio. Estávamos todos apinhados no corredor da porta de carga, o único espaço ali dentro que conseguia nos comportar de uma vez só. Eu tinha apoiado minhas costas na porta de carga e cruzado os braços após todos contarmos o estado da cidade e especialmente da fábrica, e ninguém dizia nada desde então. Sairmos todos juntos por uma cidade desconhecida para encontrar a máquina por Newt todos tinham apoiado de primeira, mesmo que a maioria não o conhecesse. Todos eles, acima de tudo o Grupo B, despertavam-me um fascínio cada vez maior desde o resgate na Caixa, e eu estivera pensando sobre o quão bem tudo poderia correr caso continuássemos assim. Contudo, precisei focar no presente perante o silêncio deles.

Eu entendia: naquela fábrica eram todos homens torturando alguém sem motivo aparente. E a mais adulta de nós era Mallory. Os rapazes conosco eram fortes e a capacidade deles de sobreviver às Variáveis do CRUEL provava tudo. Mas não sabíamos do que aquelas pessoas eram capazes, nem qual era o tipo de governo ali. Por mais que eu quisesse, sabia que não poderia entrar lá sozinha, caso desistissem de Newt.

 — E se formos procurar nas outras cidades? Ela disse que havia mais unidades. – um dos Clareanos sugeriu, apontando para Mallory. Eu me lembrava de ter tratado ferimentos sérios dele no Sangradouro. Se não me enganava, seu nome era Ferb.

 — Vamos precisar de mais um abastecimento para chegar lá, muchacho. – Jorge disse. – Não tenho certeza de onde exatamente vamos conseguir ou se chegaremos antes de cairmos como uma mosca morta.

 — Eles têm um tanque de combustível no quintal. – Gally comentou como se isso resolvesse a questão. Até o momento, parecia ser o mais decidido a ir e enfrentar aqueles homens.

 — Talvez devêssemos conversar com eles. Explicar o que está acontecendo e tentar fazer algum acordo. – Teresa abriu a boca justamente quando eu mais queria que não o fizesse, mesmo sabendo que qualquer ideia ali devia ser colocada em questão. Eu não olhava para ela desde o acidente com a porta de carga e muito menos tocara no assunto. Ela parecia fazer o mesmo.

 — Qual seria o problema, afinal, em trocar aquela coisa por algum humano aqui dentro, não é, cara de mértila? – Minho disse, irônico, mas encarando-a com raiva.

 — Ele está certo, não temos nada para oferecer a eles. E não me parece boa ideia dizer que queremos trazer um infectado de volta à vida. – Kenan emendou.

 — À vida saudável. – corrigi.

 — Eu acho que devíamos entrar lá quebrando tudo. – a voz de Brenda veio da porta para o quarto de Newt.

 — Gosto dela. – Gally disse, apontando para ela.

 — Caras, achei que estávamos tentando fazer algo bom aqui. – Caçarola disse meio decepcionado, meio crítico. – Newt não ia querer que machucássemos alguém para salvar ele.

 — Eles estão fazendo exatamente isso lá dentro, machucando alguém. – Gally replicou.

O antigo Cozinheiro tinha falado a verdade, no entanto. Talvez decidir o que fazer começasse a ficar mais fácil se Newt fosse lembrado como alguém que um dia também estivera numa posição de comando.

 — Thomas, o que você acha? – Brenda perguntou.

Thomas ergueu a cabeça como se até então estivesse pensando no quanto seus pés eram grandes. Ele encarou o grupo por pouquíssimo tempo antes de desviar o olhar para o chão, num menear de cabeça perdido.

 — Estou com o Caçarola. Criar uma confusão não vai ajudar. Mas agir com cautela também não. – ele disse.

 — Tem algum plano ou não tem? – perguntei de uma vez, impaciente.

 — Não vai descobrir se não ficar calada. Qual o seu problema com ele desde que começamos a viagem? – Harriet indagou com fervor.

 — Só quero pegar aquela máquina.

 — Não, tem alguma coisa...

 — Eu atirei em Newt. – Thomas confessou, e Harriet se interrompeu no mesmo instante.

 — Thomas... – Sonya murmurou fracamente, um misto de surpresa e mágoa em seu rosto.

 — Sinto muito. Ele... – Thomas arfou, de repente muito nervoso. – Sinto muito, Sonya, mas juro que não quis fazer aquilo.

 — Mentiu para mim? – ela me fuzilou com o olhar.

Abri a boca para responder, mas qualquer explicação era vazia.

 — Sinto muito.

 — É tudo que vocês têm a dizer? Sinto muito? – ela se alternava entre nós dois, o peito subindo e descendo rápido numa respiração raivosa.

 — Devíamos voltar a falar sobre a máquina. – Mallory sugeriu.

 — É melhor procurarmos em outro lugar. – Ferb repetiu.

 — Podemos ir até uma cidade mais próxima para pegar combustível e então...

 — Há maneiras de ataca-los sem muito prejuízo...

 — E quanto ao tamanho daquela coisa?

 — O trem passa por baixo do centro da cidade a cada duas horas...

 — Precisamos de um lugar seguro antes de nos arriscarmos assim.

 — O Berg pode ficar de prontidão para fugirmos...

As vozes saíam de todos os lados, alguns deles conversavam uns com os outros como se realmente acreditassem que estavam sendo ouvidos. As opiniões eram diversas e agora estavam bem mais divididas. Eu não tinha boas lembranças de reuniões assim.

 — Talvez desistir de mantê-lo vivo seja o melhor.

 — NÃO! – eu gritei assim que ouvi isso, mesmo sem saber quem dissera. Minha voz saíra bem mais alta que o pretendido e por isso todos se calaram. Queria que apenas o dono daquela frase me ouvisse, mas meu sangue já fervia dentro de mim. – Ninguém aqui pode dizer o que é o melhor a se fazer, ok? Estamos em mais de trinta pessoas aqui, isso está completamente fora de questão. A maior parte de vocês não teria já se arriscado nessa cidade se não fosse pela minha insistência, mas Newt é minha prioridade. Não vamos fazer votação. Não vamos obrigar ninguém a ir por um desconhecido. Mas se tem uma coisa que posso dizer a respeito de Newt é que ele nunca deixou de estender a mão a alguém que precisasse, gostando ou não. Isso ficou explicado depois com as tatuagens que recebemos, em que ele era denominado O Grude. Há quem diga que isso é por ele ser o “grude” que nos manteve unidos na Clareira; mas eu acho que não. Newt é chamado assim porque, uma vez que você o conhece, nunca mais quer deixa-lo. Ele está infectado, ele agiu como uma besta na frente das pessoas com que mais se importava, sim. Mas por trás de tudo isso tem um ser humano fascinante que podemos salvar. Vamos parar de brigar por isso e começar a brigar com o Fulgor. Com o que o CRUEL provocou.

Quando meu poço de palavras secou, percebi que eu tremia e que todo o meu sangue tinha subido para a cabeça. Devolvi o olhar da maioria que me encarava, mas com esforço. Era mais fácil confrontar as pessoas com socos do que com palavras.

 — As decisões que tomávamos no Labirinto eram todas com base na unanimidade. – Florence disse com a voz tímida, mas dirigindo um olhar firme e significativo para o Grupo B. – Talvez fosse melhor se continuássemos assim.

 — Como isso podia funcionar? – Minho indagou com desprezo.

 — Fazíamos cada uma entender do melhor jeito o pensamento da maioria, assim não havia inimizades que nos forçasse a piorar nossa situação lá. – esclareceu.

 — Era alguma terapia ou o quê? – Dante indagou.

 — Quase isso. Mas estávamos em risco com os Ceifeiros e toda a perda de memória, então era óbvio que se nos separássemos ou deixássemos alguém sozinho, nossas chances diminuiriam.

Supus pela lógica que por Ceifeiros ela se referia aos Verdugos. Talvez realmente houvesse mais do Grupo A se não tivéssemos sido tão radicais na Clareira.

 — Ajudamos a pegar a máquina. – Harriet disse, seguida de vários acenos afirmativos das meninas e Aris. – Além do mais, é irmão da Sonya. Não tem discussão da nossa parte.

Suspirei em alívio e meneei a cabeça em agradecimento. Jorge e Brenda se entreolharam. Alguns Clareanos remexiam-se sobre os pés, coçavam a cabeça, olhavam para qualquer coisa que não fosse viva.

 — E aí, seus cabeções, como vai ser? – Minho indagou, autoritário.

 — Claro que estou dentro. – um menino de voz aveludada e cabelo ruivo, Louis, afirmou, mas os outros continuaram calados.

 — Pessoal, Newt não foi colocado como Segundo em Comando por escolha dele. – Thomas incentivou.

Se ainda estivéssemos na Clareira, certamente aquela pequena parcela seria completamente ignorada e o restante agiria de acordo com o que queriam, como acontecera no Conclave sobre meu Banimento e de Herman. Mas tínhamos muito mais liberdade ali fora, e qualquer um poderia nos deixar se quisesse.

 — Que monte de plong. – Dante resmungou, mas assentiu com a cabeça e aprumou os ombros em cumplicidade.

 — Tudo pelo manquitola. – outro, Dmitri, afirmou.

Os outros apoiaram, e assim todos foram concordando em ir conseguir o Inibidor.

 

 

O contato da parede fria da casa contra as minhas costas machucadas era o único alívio das últimas horas. Gally, Jorge e eu precisávamos esperar até que a nossa deixa fosse dada e pudéssemos entrar na fábrica com mais segurança. Era para ser rápido, mas os minutos se alongavam. O corredor escuro entre as duas casas da rua foi o único esconderijo razoavelmente decente que conseguimos encontrar. Os habitantes da cidade pareciam estar seguros com seu sistema de vigilância, para aparentemente não terem feito algum bunker ali.

 — Acho que um daqueles atiradores está vindo. – Jorge comentou, espiando a rua atrás de nós por trás de uma quina, depois olhando para o outro lado.

Fomos mais para o fundo do corredor e nos abaixamos atrás de uma caçamba de lixo. Os homens passaram trotando ridiculamente, olhando ao redor, levando em mãos o que pareciam espingardas, mas de cano grosso e mais curto. Gally e eu nos entreolhamos brevemente.

Foi possível ouvir a voz de Minho a alguns metros. Ele e mais alguns de nós precisariam convencer os vigias e, pelo menos, boa parte dos homens da fábrica, de que um grupo de Cranks se aproximava da cidade. Assim, ficariam longe dali até que pudéssemos entrar e tirar o Inibidor. Gally havia se oferecido para entrar por conta própria e fora apoiado pela maioria; Jorge era nossa melhor chance contra aqueles homens; e eu tinha ido parar ali pelo argumento de Louis que envolvia o quanto Herman ficara machucado no Conclave sobre nosso Banimento.

Cautelosamente, voltamos a espiar pela quina a situação com os vigias. Os homens da fábrica acabavam de sair para a rua. Trocaram algumas palavras com Thomas, bem sucedido ainda em sua função de embaixador de relações exteriores, e assim todos eles começaram a caminhar pela rua, para o mais longe possível. Esperamos mais alguns minutos e saímos do esconderijo. Gally e eu seguimos na frente, uma vez que Jorge portava nossa melhor arma. Andamos rápido, quase correndo, e virei no corredor que levava à varanda da fábrica, parando contra a parede.

Um homem chamou atenção da rua, gritando, e então percebi que Jorge era o único que não me acompanhara. Gally estava logo ao meu lado, colado na parede, o pescoço torcido de modo que pudesse ver o que acontecia. Eu não conseguia ouvir coisa alguma. Fiz que tentaria ver, mas o Clareano esticou o braço na frente e sacudiu a cabeça em reprovação, encarando-me sério. Apontou para os fundos, onde ficava a varanda, e me forcei a segui-lo para lá. Fiquei abaixada na elevação do chão da frente da fábrica e ele se escondeu atrás da pilastra.

 — O que foi? – indaguei em voz baixa, olhando para a rua vez ou outra, esperando por Jorge.

 — Um cara o levou.

Meus olhos se arregalaram por um segundo.

 — Parecia hostil?

 — Não. Na melhor das hipóteses, vai interroga-lo.

O silêncio imperou por um momento. Jorge, ainda que falsamente, liderara aquele grupo de Cranks no Deserto. Ele saberia lidar com os caras que, certamente, ficaram na fábrica melhor do que nós. Gally parecia pensar nisso também ao parar de verificar a rua e olhar para mim.

 — Vamos. – ele disse.

Na falta de janelas que permitissem uma averiguada do interior da fábrica, tínhamos decidido entrar pela porta da frente. Alguém dera a ideia de tentarmos entrar pelo telhado enquanto montávamos o plano; todos fingiram não ouvir. Não era menos arriscado. Abaixei-me perante o trinco para ver o lado de dentro, e antes que eu pudesse ter qualquer ideia de quantos homens haviam permanecido, ouvi um som parecido com o do trinco sendo aberto, e então o de borrifo, que veio diretamente para o meu olho.

No movimento para me afastar, eu me desequilibrei e caí sentada, puxando o ar de uma vez só e prendendo para não gritar de susto, cobrindo a boca. Meu olho queimava como o inferno. Balancei os pés, batendo-os na madeira, angustiada. Fechei meus dois olhos com força e senti como se uma das pálpebras raspasse. Queria gritar, mas só o que fiz foi soltar um gemido choroso. Que tipo de sistema de segurança era aquele?!

 — Nelly?

Cobri o olho com as duas mãos e o esfreguei sem pensar, até sentir Gally puxar meu braço com violência. Eu lutei contra, cegamente, e ele manteve a força. Lágrimas brotavam dos meus dois olhos. Pisquei várias vezes, tentando me controlar. Gally estava certo, pois eu não podia esfregar aquilo ainda mais. Cerrei os punhos de modo que as unhas feriram minha pele, continuando a piscar freneticamente, puxando e soltando o ar para reprimir a vontade de gritar.

Gally livrou minhas mãos ao perceber que eu não me debateria mais. Abri os olhos e encarei os dele, esperando que dissesse alguma coisa sobre o que via. Ele comprimiu os lábios como quem se depara com um pequeno mas insignificante empecilho.

 — Consegue enxergar, certo? – disse num tom de concessão.

Eu revirei os olhos com um gemido e me levantei. Cautelosamente, ele se aproximou da porta, tocando nela com a ponta dos dedos algumas vezes para se certificar de que não havia nenhuma armadilha ali. Meu olho esquerdo ardia e lacrimejava sozinho, molhando minha bochecha, e era com dificuldade que eu prestava atenção no que fazíamos. Gally abriu a porta devagar. Eu peguei seu pulso e o puxei de volta.

 — Acho melhor voltarmos e pensarmos num plano melhor. – sugeri, certa de que parecia mil vezes mais patética com meu olho vermelho e lacrimejante.

Gally soltou um suspiro meio impaciente e olhou para a porta, tentado.

 — Sabe que todos os outros já estão correndo um risco enorme agora mesmo, não sabe? – ele disse, severo.

 — Que não vai valer de nada se formos ainda mais imprudentes. Precisamos de Jorge.

Eu sabia que não havia muito no que pensar. Newt precisava da máquina, o único jeito era irmos pegá-la. Mas toda cautela parecia pouca e, ali, daquele jeito, parecíamos mais vulneráveis que nunca. Chegava a lembrar do quanto fomos manipulados pelas Variáveis do CRUEL.

 — Não podemos mais agir sob esse tipo de influência. – meu murmúrio fraco foi o bastante para ele entender que era à organização que eu me referia, e ele concordou.

Soltei o ar de uma vez só, aliviada que pudéssemos pensar em algo mais elaborado, e meu peito doeu quando trouxe tudo de volta ao me virar para sair e levar um susto. Descontraído, um homem se colocava em frente à varanda, uma das mãos no bolso, a outra girando uma caneta entre os dedos. Minha garganta fechou. O rapaz sorriu de lábios e olhos fechados numa expressão cínica.

 

Ele tinha o cabelo ruivo solto sobre os ombros e uma barba branca esticando-se em ponta até o peito. Sua camisa lilás estava tão manchada que não consegui distinguir qual o desenho nela. Se eu tivesse pensado em desistir um pouco mais cedo...

 — Invadir uma propriedade privada costuma trazer dor de cabeça. – sua voz era jovem, quase de um adolescente de quinze anos, mas ele certamente tinha quase trinta. Uma nota musical gritante, que eu não sabia nomear, acompanhava-a. Mesmo com a síndrome de Savant, o que eu menos conhecia era música. Pelo menos isso não era relevante na hora de roubar um Inibidor. — Então... – ele deu de ombros, como sinal para que falássemos.

 — Precisamos de uma coisa. Acho que podem nos ajudar. – falei.

 — Porque eu ajudaria ladrões, certo?

Eu estava prestes a tomar o cabo da faca na minha mão, sem tirar os olhos do Ruivo, mas foi de trás de mim que alguém agarrou meu pulso e torceu minha mão em direção às costas. Algo me atingiu na dobra da perna, obrigando-me a cair de joelhos. Vi Gally se debatendo antes de ser atingida com algo forte o suficiente para me apagar.

 

 

Ao nosso redor havia pelo menos dez caras diferentes nos observando. Um deles espremia uma espinha do braço com grande interesse; outro bebia um caldo escuro de uma tigela. Considerando que há pouco tempo estavam agredindo um idoso, lidar com pessoas como nós devia ser rotina para eles.

Gally e eu estávamos atados a cadeiras, a dele manchada com sangue. Aliás, tudo estava manchado com sangue, principalmente o chão. O lugar agora parecia muito diferente do que eu havia visto antes. Era maior e mais ocupado. O Inibidor não estava mais à vista, e, a julgar pelas marcas no chão de coisas que estiveram no mesmo lugar por muito tempo, ele não era o único a ter sido escondido.

Materiais de construção estavam amontoados num canto, alguns dispostos com certa ordem. Havia duas mesas de trabalho, estantes e prateleiras. Nas paredes, números e letras estavam escritos com tinta branca, mas sem formar nada que nos ajudasse a entender o que significavam.

Nenhum deles estava armado, mas eu tinha sérias dúvidas sobre a função da caneta que o Ruivo ainda girava na mão. Minha paranoia talvez nunca fosse curada.

Um homem de pele marrom-escura e usando dreads se aproximou, deixando um buraco no círculo perfeito, puxou uma cadeira de madeira e se sentou na nossa frente, curvado sobre os joelhos.

 — Vocês são daqui? – perguntou num sotaque alemão forte.

Fiz de tudo para continuar a fita-lo. Eu não tinha certeza da minha expressão, mas não queria parecer mais intimidada.

 — Há algum tempo nós fomos. – Gally respondeu. Logo percebi que fazer parecer que tínhamos algo em comum com eles talvez fosse o melhor caminho.

O homem alternou o olhar entre nós dois, analítico.

 — Eu cresci aqui. Ninguém lamenta mais que eu as perdas que essa cidade sofreu. — ele disse, mas sem um pingo de dor na expressão. — Nomes?

Automaticamente eu olhei para as paredes. As letras estavam dispostas acima de uma combinação de números, alguns seguidos de um símbolo de caveira muito bem desenhado. Corri os olhos por algumas delas rapidamente e não demorou para que algumas começassem a se parecer com algo familiar. “Aplu”, “Sonija”, “Sanmo”. Paul, Josian, Mason. Eram nomes com as letras fora de ordem.

Voltei-me para os outros e percebi que Gally e os homens me encaravam, parecendo aguardar. Gally tinha dito o nome falso ou verdadeiro?

 — Perenelle. — muita sinceridade não parecia boa ideia.

 — O quê? — um deles indagou de trás de mim e fez um som estrangulado, como se tentasse repetir o que eu disse. O cara ao lado riu.

 — Só estão amarrados aí porque tentaram invadir nosso lugar. Sejam honestos e talvez nos tornemos amigos. Sou Garent. O que querem aqui? — o moreno disse, tão simpático que quase fui convencida.

 — O Inibidor. — respondi prontamente.

Eles continuaram em silêncio. Aquele que comia parou para nos encarar.

 — Será que eles falam alguma coisa que faça sentido? — o Ruivo inicial estava claramente confuso.

 — Para que querem isso? — Garent indagou, parecendo muito seguro sobre o que ouvia, ainda que com a testa franzida.

 — Estamos produzindo nossa própria comida. Precisamos da máquina para congelá-la e ter um estoque. — as palavras jorraram da minha boca antes mesmo que eu pudesse pesa-las.

 — E de quanto seria a nossa parte se déssemos o Inibidor a vocês? — Garent se levantou enquanto perguntava.

Gally e eu nos entreolhamos tensamente. Aquilo geraria uma série de mentiras…

 — Quarenta e cinco por cento. — o Clareano respondeu e acrescentou para ser mais convicto: — De tudo que já congelamos.

Garent soltou uma gargalhada carregada de divertimento. Ele se aproximou mais, trazendo o cheiro forte de suor e queijo para cima de nós.

 — Quarenta e cinco por cento de quanto? — perguntou.

Eu estava prestes a responder, mas percebi que não possuía palavras para aquilo. O que significava? Gally parecia ter a mesma dúvida, abrindo e fechando a boca várias vezes. Garent ergueu uma sobrancelha.

 — Deem-me um número do total que produzem por mês. — acrescentou e esperou, e continuávamos sem resposta. Eu não tinha ideia de como inventar aquilo de um modo convincente. Ele suspirou. — Sendo tão difícil fazer cálculos mentalmente, deviam me levar até lá para conhecer o estoque.

 — Não podemos. — adiantei, mas sem desculpa alguma.

 — Estamos sem combustível e é uma viagem longa. Além do mais, estávamos procurando por armas que pudessem nos livrar dos Cranks que estão tentando nos invadir. — Gally tinha uma calma inacreditável ao mentir. A seriedade em sua expressão não podia ser mais convicta.

 — Eles estão atacando todas as comunidades agora? — o mais baixo deles perguntou diretamente a Garent, os braços cruzados em interesse.

Garent tirou o olhar dele para pôr em nós, e seu semblante se tornou desconfiado gradativamente. Ele deu passos lentos para mais perto de mim, olhando nos meus olhos. A temperatura caiu para menos 1.

 — Não entendo que viagem longa podem fazer se as localidades férteis hoje em dia são todas nesta região. — ele disse com cautela, depois inclinou a cabeça para o lado. — O asiático não tem papas na língua, não é?

Eu me retesei. Gally fechou os olhos em derrota. Garent tirou uma faca da parte de trás da calça e colocou o fio no meu pescoço, enquanto os outros sacavam armas de lugar nenhum. Cerrei os dentes encarando o homem, engolindo em seco. Quando nós tínhamos deixado tudo tão óbvio?

 — Não há Cranks a pelo menos cem quilômetros daqui. Matamos todos da localidade. — a voz que falou era desconhecida por mim.

 — Achei que estivéssemos falando sobre o estoque. — Gally tentou ainda firme, e graças a Deus, pois minha garganta estava seca. Nunca havia visto tanta determinação em machucar nos olhos de alguém como eu via nos do moreno acima de mim. O silêncio dele era quase um presságio perfeito.

 — Sabíamos que havia algo errado na história dos seus parceiros, então decidimos guardar o terreno. — Garent disse. Eu engoli, desejando parar de suar.

 — Não sei do que está falando. Só queremos o Inibidor. — retruquei.

 — Nem vocês, pivetes, seriam tão burros de entrar numa área desconhecida sozinhos. Melhor avisar ao chefe de vocês que o jogo acabou e que queremos falar sério.

 — Não tem chefe. Não viemos brigar nem causar confusão.  

Ele suspirou mais uma vez, virou a faca na mão e ficou batendo de leve a ponta contra meu queixo.

 — Não deixei claro que mentiras não são um bom elemento para relações interpessoais? — ele murmurou com as íris ardendo.

Seus olhos me observavam como se eu fosse algo que ele caçasse há uma eternidade e agora estivesse tendo dificuldades para pegar para si. Eles se desviaram para baixo, e por um momento me senti nua e exposta, mas suas intenções não iam pelo caminho venéreo. A faca desceu também, a lâmina gélida tocou minha clavícula, e então a gola da minha blusa foi cortada num único movimento, tão preciso que minha pele não sentiu. Ele demorou o olhar no meu pescoço. Seu rosto admitiu uma careta tão forte de raiva que foi impossível eu não entender o que ele via. A tatuagem.

Garent se afastou com dois passos, e de repente seu punho acertava minha boca. Achei que a cadeira tivesse tombado, mas eu continuava no mesmo lugar. Os pés dele se tornaram seis, e então veio a dor lacerante por todo o meu rosto. O gosto de alumínio não era parte da sinestesia. Senti um mar de sangue na minha língua que descobri ser impressão minha ao cuspir tão pouco que escorreu pelo meu queixo. Pisquei várias vezes, tentando ouvir o que diziam ao redor de mim, perguntando-me se ele havia acertado minha orelha de alguma forma.

Enquanto os homens no círculo conversavam, Garent me encarava pacientemente, coçando a costeleta com a faca. Assim que consegui focalizá-lo, ele tornou a falar.

 — Desculpe, nunca bati em mulheres. Mas qualquer coisa relacionada a essa palavra me faz perder a razão.

Gally se remexeu claramente incomodado, o semblante mais consumido pelo ódio do que eu jamais vi.

 — Quieto, garoto. Homens costumam ser os que sofrem mais. - alguém atrás de nós disse.

Todos ficaram em silêncio, como as lágrimas de dor que brotavam dos meus olhos e escorriam. A irritação do spray da fechadura ainda ardia. “Newt depende disso”, pensei com fervura. Mas, ao mesmo tempo, eu não conseguia imaginar um jeito de terminarmos aquilo com o Inibidor em nossas mãos, ou, ao menos, vivos.

 — O CRUEL fez mal a muita gente… - comecei com a voz fraca, descobrindo a impotência da minha boca para se mexer agora.

 — Admitir isso não faz de vocês pessoas melhores. Vocês destruíram tudo. Sinceramente, não achei que fossem tão burros a ponto de mandarem crianças para roubar um instrumento de trabalho. - Garent disse.

 — O quê? Acha que trabalhamos para o CRUEL? - Gally indagou, cético.

 — Só por curiosidade, o que pretendiam com ela? Congelar os Imunes com alguma desculpa fajuta para isso? – ele ignorou a pergunta.

 — Nós não…

Foi a vez de Gally levar um soco, mas de outro homem. Ele era magro, de cabelo espetado e curto, usava uma camisa flanela. Parecia prestes a se transformar num animal com o peito subindo e descendo rapidamente, os punhos cerrados enquanto encarava Gally. O mais próximo dele pôs a mão em seu ombro e o puxou para trás, dizendo algo em seu ouvido.

Vendo Gally balançar a cabeça e apertar os olhos para se recompor, eu me voltei para Garent.

 — Não trabalhamos para o CRUEL. Entendo que qualquer coisa relacionada a eles irrite vocês, mas n…

 — Não foi essa palavra que me tirou do sério, garota. Foi Indivíduo. - Garent ainda parecia com raiva, mas me fazia ter a impressão de sentir algo mais. Seus olhos continuaram fitando os meus, até ele nos dar as costas e se aproximar mais do círculo. Um homem de rabo de cavalo loiro segurou sua mão, dando-lhe um olhar terno, sem dizer nada. O gesto se opunha completamente a seu porte enorme e maxilar largo.

 — Entendam… Fomos usados pelo CRUEL. Nenhum de nós queria fazer parte desses Experimentos. - eu murmurei, tentando me manter calma.

 — Sei como funciona o protocolo deles. Eles não perguntam. - Garent se voltou para nós, o olhar agora um pouco mais fraco. — Ainda assim, invadiram nosso lugar, então digamos que vocês não estão com a melhor ficha. Vamos esperar o pessoal voltar e preparar uma emboscada para o restante.

Gally forçou tanto as amarras que jurei tê-las visto vacilar.

 — Shh, shh. - Garent apontou a faca para ele como um aviso. — Vão ficar de castigo para pensar em suas atitudes.

Dizendo isso, todo o círculo se desfez. Alguns, incluindo o líder, seguiram para os fundos e pude ouvir seus pés subindo as escadas. O Flanela e o Ruivo foram se sentar em cadeiras com pistolas no colo. Fechei os olhos e respirei fundo para aproveitar enquanto o desespero não me abatia.

 — Desçam Yhani. - o Ruivo disse de repente, olhando para as armações de ferro atrás de nós.

Passos se seguiram lá de cima, como se alguém fosse obedecê-lo. Pouco depois, algum tipo de elevador foi acionado, descendo num rangido insuportável fora das nossas vistas. As portas se abriram e um barulhinho de máquina foi ouvido. Para a minha surpresa, uma cadeira de rodas ocupada, motorizada seguiu em direção aos dois homens, virou, e parou de frente para nós.


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Notas finais do capítulo

Esse não é O capítulo mas aguardem uma reviravolta grande na nossa Nelly. Espero que gostem do rumo que a história tomará.

Até o próximo!



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