Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 46
Por um segundo de sanidade




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  — Por favor, Tommy. Por favor.

 Meu corpo se projetou para frente. Eu ouvi um tiro.

 O pânico, a tristeza e a urgência se avolumaram dentro de mim, ganhando o mesmo poder que aquela bala tinha. A surdez momentânea dizimou a noção de quem eu era e de onde eu estava. Apenas senti o choque do meu queixo contra o ombro de Newt, e minha mão sendo ralada pelo asfalto. Eu quase podia sentir a transição de velocidade dos meus batimentos cardíacos. Com o receio à flor da pele, encarei Newt.

 Ele estava deitado, imóvel, de olhos fechados, exatamente como quando sofreu a parada cardíaca. A diferença era de um buraco manchado de sangue em sua testa. Levei algum tempo para me situar.

  — O que você fez...? – eu sussurrei, deslizando as mãos pelo peito e rosto de Newt. — O que você fez?

 Ouvi Thomas se levantar num salto, desajeitado, mas não consegui tirar os olhos de Newt. Eu tremia, mas não sentia direito meu corpo.

  — Newt, não...

  — E-ele me pediu. Nelly, ele...

  — Newt...

 Eu ouvia, mas só queria que o mundo parasse. Newt não dava o menor sinal de vida, e a cada segundo que se arrastava eu esperava encontrar um ferimento de bala em mim, não nele. Como aquilo tinha acontecido? Instantes atrás ele estava por cima de Thomas... Dias atrás ele tomava as próprias decisões... Como agora ele simplesmente não estava mais ali?

 Eu não encontrava palavras. Queria chama-lo, dizer que podia acordar e eu não o deixaria mais sozinho, dizer que ele não precisava mais ter medo de se perder para o vírus... Mas eu não conseguia...

 Por que o tempo continuava passando? Por que aqueles Cranks continuavam brigando? Por que alguém gritava por Thomas? Por que, diabos, o maldito sol estava do mesmo jeito?!

  — Eu sinto muito, Newt, eu sinto tanto... – dizer aquilo era exatamente o mesmo que destroçar minha alma com a lâmina mais letal que existisse.

 Acariciei seu rosto outra vez, e de repente percebi que devia ter feito isso mais vezes, com tanta delicadeza quanto agora. Eu sentia, mais do que nunca, a dor daquilo. Toda a dor que ele passara, da tentativa falha de se livrar dela, do peso que carregava desde então... Newt tinha uma irmã... O quanto ele seria feliz ao lado dela ninguém descobriria...

 Ele parecia tão calmo agora, livre do Fulgor, livre do mundo horrível em que tinha sido colocado. Livre da responsabilidade de ser o Grude, de ser o líder. Tantas vezes eu o tinha pressionado a ser o que ele não queria...

 Minha testa tocava o peito dele, meus soluços balançavam meu corpo e preenchiam o ar. Eu segurava sua mão contra mim, desejando dar a ele tudo que ele precisava. Aquilo não era o mesmo que foi quando perdi minha mãe, nem de quando perdi Bruno. Eu soube o que acarretaria a partida deles. Com Newt, a profundidade daquele abismo simplesmente não podia ser vista.

 Por que eu tinha demorado tanto?

 Alguém cercou minha cintura para me puxar para longe dele e eu empurrei quem quer que fosse. Eu não sabia por quê. Quando Newt realmente precisava de mim, eu estava atrás de uma cura que podia sequer funcionar.

  — Ele se foi, querida... Ele se foi...

 Com uma força descomunal, agarrei as roupas de Mallory e a aproximei do meu rosto.

  — Diga isso mais uma vez! Diga isso... – minha voz falhou, do mesmo modo que eu podia sentir fazerem as batidas do meu coração, e o repentino ódio foi embora, dando lugar a algo muito mais forte que tristeza. Era muito mais forte que qualquer coisa que eu já havia sentido, e eu sabia que não era capaz de carregar comigo. Não outra vez...

 Soltei a mulher e me voltei para Newt, esquivando minha mão para a arma largada no chão. Newt era tudo que tinha me mantido viva até então, em todos os sentidos possíveis. Se alguém ou alguma coisa achava que ele não merecia viver, por que eu estava me dando esse direito?

 A boca fria da arma tocou minha têmpora, e algo leve tomou forma de mim, algo que eu desconhecia até então. Liberdade.

  — NÃO!

 A arma foi puxada da mira e houve um disparo, que reverberou para longe e silenciou os Cranks por um momento.

  — Tem outras maneiras, tem outras maneiras! – Mallory gritava na minha frente, sua voz soando como se eu estivesse dentro d’água, suas mãos segurando meu rosto. — Não faça isso, Jordan... Sinto muito, mas não tem volta...

 Não tem volta. Esse era exatamente o tipo de frase que eu moveria céus e terras para contradizer. Não havia jeito. É impossível. A lembrança de quando não soube ajudar Thomas com o tiro rastejou à minha mente. Odiei não saber cuidar daquele ferimento, mas o que eu sentia agora sobre a impotência de Newt era muito maior que isso.

 Afastei Mallory de qualquer jeito e me debrucei sobre ele, descobrindo com cuidado o ferimento dos fios loiros. Com dificuldade e sem que eu me desse conta, meu cérebro começou a funcionar. Precisei me concentrar, pelo menos por um momento, para resgatar uma memória antiga de uma página de livro, e foi o suficiente.

  — Não foi no centro. – eu sussurrei, mais rouca e mais firme do que esperava. — Não foi no centro...

 O cano da pistola deslizara para o lado. O tiro não deixava de ser letal, mas esse detalhe me permitia calcular quanto tempo levava até que o cérebro de Newt morresse definitivamente. E esse cronômetro ainda estava rodando.

 Tremendo, chorando, pousei meus dedos sobre seu pescoço, logo abaixo do maxilar, e pressionei para tentar sentir alguma coisa. Nada...

  — F-faça massagem cardíaca e respiração artificial n-nele. – disse a Mallory, puxando-a para mais perto.

  — Jordan...

  — Agora! Olhe bem para a testa dele!

 Ela o fez e seus olhos se arregalaram, e eu entendia. O peito de Newt não fazia movimento algum, e certamente não daria para ver alguma respiração nem com um espelho sob seu nariz. Mesmo assim, ela foi obedecer. O resquício de vida que ele ainda possuía poderia sumir a qualquer instante.

 Eu tirei usei o casaco de Mallory e ergui a cabeça de Newt com extrema cautela, verificando se havia saída da bala. Sua cabeça não sangrava na parte de trás, apenas na testa, então certamente o projétil não se encontrava em lugar algum, senão dentro de sua cabeça. Eu xingaria, mas o pânico não dava brecha.

 Ainda tremendo, mas rezando, tirei o comunicador que Gally havia me dado, que era como um walkie-talkie muito moderno, e por sorte já tinha aprendido a usar.

  — Gally? Gally! Pode me ouvir?!

 Meu coração batia tão forte que parecia ser o responsável por ainda formar e expulsar minhas lágrimas. Mallory continuava se revezando entre a respiração boca a boca e a massagem.

  — GALLY! – berrei, ainda mais desesperada, voltando a soluçar.

  — Estou aqui. O qu-

  — Preciso que traga um Berg até mim agora. Me encontre na rodovia de saída da cidade, em direção ao aeroporto. E se tiver qualquer assistência médica aí com você, traga.

 Eu me calei, esperando que dissesse alguma coisa, mas ele pareceu entender de primeira, pois o comunicador fez um barulho e ele não disse mais nada. No fundo, por trás de todo o meu raciocínio sobre o que poderia ser feito, eu rezava com toda a minha energia.  

  — Diga que ele está respirando. – pedi a Mallory, com medo de verificar eu mesma. Medo. Mesmo agora, era isso que me travava.

  — Jordan, mesmo que ele esteja...

 De repente, percebi que os Cranks não faziam mais barulho em sua guerra pela comida. Dirigi meu olhar a eles e vi que nos observavam, alguns sorrindo, outros apenas interessados em nós. Não deixei que dessem um passo na nossa direção; agarrei a pistola do chão e comecei a disparar na cabeça de todos eles. Se Newt tinha a mínima chance de sobreviver, não deixaria que esta passasse.

 A munição acabou e ainda havia três deles ameaçando avançar sobre nós. Dos destroços de uma casa, tirei pedras grandes o suficiente para que os machucassem num só arremesso. Uma mulher avançou sobre mim e me atirou no chão de modo que eu batesse a cabeça num hidrante.

  — Jordan! – Mallory gritou como se me repreendesse por tentar lutar contra eles.

  — Continue! – berrei de volta, nervosa com a ideia de que ela parasse para me ajudar.

 Os outros dois Cranks, uma mulher e um homem, apareceram no meu campo de visão, acima de mim, segurando bastões de madeira envoltos por arame farpado, e sorrindo como se vissem um banquete na sua frente. Um deles ergueu seu bastão, eu soquei e chutei a mulher acima de mim, e a puxei para que tomasse meu lugar. Seu rosto foi perfurado horrivelmente pelas pontas, enquanto ela se debatia e o homem tentava arrancar a arma da pele dela.

  — Vamos, menina. Não queria ficar junto do seu amigo? – a segunda mulher zombou, brincando com o bastão em suas mãos.  

 Ela começou a tentar desferi-lo contra mim e só o que pude fazer foi desviar pateticamente, procurando qualquer coisa que servisse de arma. Num dos golpes dela, que quase acertou minha cabeça, agarrei a zona livre do arame, perto de suas mãos, e acertei-lhe uma cotovelada no rosto. Ela caiu, e ouvi Mallory murmurando alguma coisa para Newt. Eu me virei imediatamente, apenas para ver que ele continuava imóvel e ela ainda forçava seu peito. O terror não me abandonava, eu tinha a impressão de que viveria com este para o resto da minha vida. Uma parada cardíaca parecia algo muito simplório agora.

 Uma pancada na costela quase me tirou o fôlego. Voltei-me para a mulher e percebi que os outros dois não estavam mais por perto. Ela segurava uma estaca de madeira, quase afiada o suficiente para me perfurar. Ouvi o som de propulsores encher o céu como um hino de salvação. De repente, tudo e todos ao redor de mim sumiram, e só quis que a Crank me deixasse em paz.

 Quando me dei conta, já estava por cima dela, sem a menor noção de tempo, acertando socos em seu rosto e em seu braço para lhe tirar a estaca. Poderia dar fim naquilo com apenas um golpe em seu peito, mas não quis parar de soca-la. Thomas havia atirado em Newt... Não importava se ele havia pedido, Thomas sabia que tínhamos a perspectiva de uma solução. Newt tinha uma irmã e, se ele não sobrevivesse, nunca se conheceriam. O que mais ia acontecer para o mundo se provar o pior lugar existente? Qual outra injustiça desumana seria resultado das atitudes do CRUEL? Quais outros monstros apareceriam para assombrar nossas vidas?

 O gosto e o cheiro de algo queimado tomaram meus sentidos. Era horrível. Eu cuspi para o lado, tentando me livrar da sensação, mas não adiantou, então só continuei socando a mulher. Ela nem parecia estar viva mais. O Fulgor desolara a humanidade e fazia alguém ceder tão facilmente a socos no rosto?

 Eu me lembrei de Herman como se o tivesse na minha frente de novo, exatamente como no Conclave. Tive ainda mais prazer em desferir os golpes. A memória daquele dia foi tão forte que o gosto azedo que acompanhava aquele garoto se formou no meu paladar. Eu só queria que as coisas mudassem...

 Alguém gritou, novamente como se eu estivesse imersa vários metros abaixo da superfície do mar. Parei de socar a mulher e apoiei meus braços nela, sentindo meu coração prestes a arrombar meu peito. Meus tímpanos se moviam grosseiramente com a pulsação.  

 O som da pancada de um metal me trouxe de volta a realidade. Uma mão cobriu meu ombro e Gally estava abaixado perante a mim, alternando um olhar surpreso e alerta entre eu e a mulher. Não tive coragem de olhar para nenhum dos dois. Atrás de mim, o Crank, antes sumido, estava desacordado no chão, segurando fracamente um caco de vidro, sua cabeça começando a sangrar. Voltei-me para Newt, mas levei um tempo para conseguir prestar atenção no que acontecia. Eu respirei fundo e gemi quase num choro, soltando um soluço, pondo a mão por cima do que certamente agora era um hematoma muito feio na altura das costelas.

 Coloquei-me de pé com as pernas trêmulas e quase sem força alguma. Gally esticou as mãos para me ajudar, mas tratei de me dirigir a Newt.

  — Você p-precisa... Precisa fazer a cirurgia. – falei a Mallory com uma voz estranha, a única que consegui encontrar. Ela ainda massageava o coração de Newt.

  — Jordan, me escute... As chances de ele sobreviver são quase nulas. Não posso dar essa esperança a você. E além do mais... – sua voz enfraqueceu. — ele está infectado... – ela disse, mais séria que em qualquer outro momento que a ouvira.

 A menção de esperança e do fato de que Newt já estava rapidamente sucumbindo ao vírus trouxe lágrimas aos meus olhos de novo. Não era mais essa a questão... Era a necessidade de tentar.

  — Por favor... – supliquei, encarando Newt com um peso insuportável. — Por favor, Mallory...

 Foquei parte da minha atenção nela quando me fitou. Nunca tinha visto tanta condolência nos olhos de alguém. Mallory olhou para Newt mais uma vez, e então para Gally.

  — Tem uma maca? – perguntou.

 

Gally tinha me levado a sério quando pedi assistência, pois a sala principal do Berg estava repleta de utensílios hospitalares. Sem perder tempo, empurramos a maca para fora da nave, a abaixamos na altura do chão e nos esforçamos para erguer Newt sem que sua cabeça balançasse tanto. Mallory foi checar seu pulso e eu tirei uma lanterna da bolsinha e subi as pálpebras de Newt para iluminar seus olhos.

  — Sabe me dizer os sinais vitais dele? – Mallory perguntou, enquanto verificava o sangramento na testa.

  — Normais. Na medida do possível, considerando que ele está infectado, Mallory. – respondi impaciente.

  — Minha primeira regra sobre primeiros socorros, moça: – ela segurou meu braço bruscamente para que eu a encarasse. — nunca leve para o lado pessoal. Ou você perde a cabeça.

 O silêncio se fez, e me entreguei a ele para me lembrar daquilo.

  — Como vão fazer isso? – Gally perguntou.

  — Tem um pronto socorro ou algo assim no caminho por aonde viemos. É mais provável que eu encontre o que preciso por lá. Peguem tudo que tiver no Berg que sirva de ajuda e me encontrem. – Mallory instruiu, começando a empurrar a maca.

  — Não. Eu vou com você. – falei imediatamente. Não ia deixa-lo outra vez.

  — Você me pediu para fazer isso, agora obedeça, se quiser salvá-lo. – ela retrucou, quase sem parar de andar, lançando-me um olhar irritado de autoridade.

 Mallory começou a correr e Gally me puxou em direção ao Berg. Ele foi pilotar, sabe-se lá como havia aprendido isso, e comecei a juntar tudo que ele havia trazido. Passando por um dos aposentos com beliche, lembrei-me de Thomas, da conversa que tivemos, do olhar que me lançou ao dizer que Newt fugiria do Palácio. Como ele tinha conseguido puxar o gatilho?

  — Ei! Não tem muito espaço para pousar, melhor segurar em alguma coisa! – Gally gritou de dentro de sua cabine e só o que fiz foi erguer meu braço e agarrar um dos degraus da escada para a cama de cima, imaginando que mértila Thomas julgava mais importante para sair correndo do que tinha feito. Meu sangue queimava mais perigoso que a explosão na loja de conveniência.

 O casco do Berg pareceu pousar por cima de alguma coisa, pois o lado direito se elevou e o deixou torto, fazendo alguns objetos caírem. Eu havia separado outra bolsa, maior, para guardar tudo, e agarrei sua alça assim que Gally desligou o motor. A porta de carga se abriu pela metade, obrigando-nos a descer deitados.

 O lugar era a cobertura de um prédio, nada eficaz para o pouso de uma nave daquele tamanho, e eu não tinha certeza se era ao menos capaz de suportar o peso.

 Passamos por uma porta e descemos vários lances de escada, até alcançarmos um elevador. Apertei o botão e este se iluminou, apesar do precário estado da porta.

  — Não parece boa ideia para mim. – Gally comentou, observando a parte superior das portas como se esperasse que, de algum jeito, caíssem sobre nós.

 Eu ponderei, arrancando peles dos lábios, nervosa com a probabilidade daquele negócio falhar enquanto descíamos.

  — Vamos. – virei-me para recomeçar a descer as escadas, decidida a não deixar nada nos atrapalhar.

 O prédio devia ter mais de vinte andares, pois a descida era eterna. Esperávamos que Mallory estivesse realmente no térreo e não perto de alguma sala que emitisse os mesmos gritos horrorosos que ouvíamos ao passar por portas de atalho. Aparentemente, havia Cranks por ali, e dei graças que Gally estivesse conosco.

 Os degraus enfim terminaram, mas a porta de saída não se moveu quando tentei abri-la.

  — Está brincando comigo. – Gally resmungou, irritado, tentando força-la também, batendo o ombro contra.

  — Deve ter alguma coisa do outro lado. – supus, voltando a arrancar taliscas.

  — Não, é a tranca.

 Gally girou a alça de seu Lança-Granadas pelo próprio torso para tirá-lo das costas e o usou para aporrinhar a porta na altura da fechadura. Após intermináveis minutos, ele conseguiu e empurrou a passagem. Verificamos o corredor, silencioso e amplo, sujo de sangue e restos mortais por toda parte. Ele terminava numa janela de vidro e, do outro lado, havia uma virada para um próximo corredor. Todas as portas estavam numeradas em sequência, a não ser a que usamos.

  — Não acredito... – murmurei.

  — Isso é um hospital? – Gally indagou, perplexo.

 Uma chama de esperança se acendeu dentro de mim. Newt não dependia tanto de sorte para fazer a cirurgia agora.

 Fomos correndo pelos corredores, lendo o que sobrara das placas para tentar encontrar Mallory. Chegando à recepção, começamos a gritar por ela, torcendo para que todos os Cranks dali estivessem muito bem trancados em algum lugar. Ela respondeu e sons metálicos vieram logo depois, de modo que pudemos segui-los por mais um corredor até a placa indicando as salas de cirurgia. Entramos numa das primeiras, a porta automática com pequenas manchas de sangue, como se alguém a tivesse forçado para entrar. Passamos pela outra porta automática, que levava a mesa em que Newt estava deitado. Ele estava sem nenhuma mudança, além da coloração mais pálida. Só então percebi que ele possuía no pescoço a mesma coloração de veias que minha mãe ao se transformar. A ideia de perdê-lo me aproximava cada vez mais daquele abismo.

  — Ei. – Gally me segurou pelo ombro com força, lançando-me um olhar que dizia claramente para eu me manter focada.

  — Espero que tenham trazido coisa o bastante, esse lugar é como qualquer outro entulho de destroços pela cidade! – Mallory reclamou, revirando um armário cheio de armas de fogo na sala.

 — Fórceps, tesouras, pinça, bisturi, cateteres... – falei enquanto abria a bolsa sobre a mesa de ferramentas e deixava que ela olhasse.

  — Procure um esterilizante marcado com símbolo de aprovação para uso. – ela mandou e Gally ajudou a procurar.

  — Essa coisa? – ele apontou para um adesivo redondo embaixo do aparelho.

  — Por que não teria aprovação? – indaguei, ficando logo ao lado de Newt e checando seu pulso.

  — Não sei, raras são as pessoas vivas que se importam com isso. – Mallory respondeu com escárnio.

 Ela começou a cortar a parte do cabo que ligava o esterilizante à tomada, depois foi desencapando-o. Eu fui até o monitor que apresentava os parâmetros do paciente ao lado da mesa e tentei liga-lo, mas não funcionava. Apertei o botão várias vezes e bati em sua tela e não deu certo. Fiz o mesmo com a luz do foco cirúrgico, uma máquina de dois monitores e qualquer outra coisa elétrica ali dentro. Tudo continuava sem vida.

  — Por que nada funciona? – perguntei, mais alto do que pretendia.

  — Não tem energia nenhuma. – Mallory respondeu displicente, mais interessada em seu cabo.

  — Mas como...

  — O elevador devia ter um gerador independente, para emergências. – Gally me interrompeu.

  — Isso é um hospital, essas máquinas precisam ter um gerador reserva. – repliquei furiosa com uma situação daquela. Mallory continuava a descobrir os fios. — Que mértila você está fazendo?

  — O desfibrilador está guardado lá fora, num armário. Vão pegar.

 Nós não nos movemos e eu estava prestes a perguntar o que ela queria dizer com aquilo, até me entreolhar com Gally e ficar bem claro. Voltamos para a primeira sala e procuramos pelo aparelho, que possuía bateria própria. Gally o tomou em suas mãos e voltou para a sala, permitindo que eu visse um monte de coisas aleatórias empilhadas dentro do armário.

 Abrimos o desfibrilador para tirar sua bateria e Mallory ligou os fios do esterilizante a ela, e a luz vermelha se acendeu. Os utensílios que seriam usados foram deixados dentro do aparelho, que gradativamente começou a esquentar.

 Aproximei-me de Newt outra vez, verificando sua respiração, torcendo para que aguentasse apenas mais um pouco. As palavras que ouvi de sua boca antes do tiro ressoaram nos meus ouvidos como um canto trágico, naquela voz suplicante e fraca. “Por favor, Tommy. Por favor”. Aquilo não poderia ser um pedido para que Thomas nãopuxasse o gatilho. Newt estava por cima, tinha total controle do que estava acontecendo. Meu coração se retorcia, perdendo nutrientes, pensando no desejo de Newt pela morte; pensando na barbaridade que era ter sido colocado numa situação em que preferia acabar assim, para não sucumbir totalmente ao Fulgor.

 As lágrimas tomaram meus olhos de novo, observando a paz em que ele estava agora. Se eu fosse salvar Newt, era obrigada a fazer a cura acontecer a tempo de salvá-lo do vírus também. Não aguentaria fazê-lo passar por nada parecido que aquela cena outra vez.

 Mallory soltou um muxoxo que me trouxe de volta dos meus pensamentos. Ela encarava o chão e eu quase podia ver a fumaça de esforço saindo de seu cérebro.

  — Não posso abrir ele sem antes ver o que aconteceu por dentro. – ela murmurou, e levou mais alguns segundos para me encarar.

 Olhei para Gally, apenas para não precisar ver aquela condolência de novo, e o encontrei mexendo em seu comunicador.

  — Quer dizer que precisa de uma ressonância. – concluí, voltando-me para a mulher.

  — E uma tomografia. E...

  — E tudo que precisa de energia e do tempo que Newt não tem. Tem um vírus corroendo o cérebro dele agora mesmo, Mallory.

  — O que me faz perguntar por que quer tanto salvá-lo. Isso não muda nada.

  — Apenas faça a maldita cirurgia!

 Ela respirou fundo, relanceando para Newt.

  — Uma boa visão é a metade da batalha em qualquer operação, você não pode simplesmente achar que o que sente por ele é o bastante para driblar isso.

  — Sei que não é. Por isso pedi sua ajuda, por isso trouxe essas coisas, por isso estamos num hospital. Newt tem muito mais do que muita gente por aí, então...

 A respiração de Newt de repente começou a se acelerar assustadoramente. Seu peito subia e descia, uma de suas pernas dava espasmos.

  — Se ele acordar... não vai ceder a anestesia... – Mallory comentou, encarando-o com o assombro à flor da pele.

 Cerrei os dentes e Gally se aproximou rapidamente da cama, provavelmente temendo que o lado Crank de Newt despertasse. Hesitante, estiquei minha mão e segurei a de Newt, implorando mentalmente para que continuasse inconsciente. Seria maravilhoso se ele acordasse e nós explicássemos o que estava acontecendo, dizer que havia uma cura, sentir de verdade sua presença e ouvir sua voz... Mas não haveria saída para ele depois disso. Doía como raspar minha pele com uma lâmina fervendo, até que toda a carne estivesse exposta, mas Newt precisaria continuar assim por um tempo.

 Sua respiração se acalmou gradativamente, e ele permaneceu quieto. Eu tratei de quebrar o contato ao sentir que sua pele quase não mostrava vida, fria o suficiente para que eu não quisesse guardar aquela sensação.

  — Eu disse a você que nos separaram em Grupos, não foi? – comecei, ainda encarando Newt, vendo por visão periférica que Mallory me encarava. — E também que passamos por testes. Um deles é a dissipação da nossa vida inteira. Alguns de nós passaram dois anos confinados num lugar horrível, sem memória de nada, lutando para sobreviver, e Newt foi um deles.

 Minhas íris, banhadas em lágrimas numa mistura de angústia e raiva, encontraram as de Mallory.

  — Estávamos sozinhos, sem saber o que fizemos de errado para acabarmos daquele jeito. Alguns pensavam que tinham matado nossas famílias para que nos deixassem ali por conta própria. Mas Newt esteve cara a cara com a irmã, e nenhum dos dois soube disso. Agora que ela sabe, pode não ter a chance de abraça-lo porque, mesmo depois de tudo que ele passou para continuar de pé e lutar, a droga de um vírus o fez querer tirar a própria vida. O mundo... – eu solucei e engoli o grande nó na minha garganta. — O mundo tirou a escolha dele, Mallory, só o que eu quero é que ele a tenha de volta.

 Vi os olhos dela brilharem mais por um momento, mas, antes que eu pudesse pensar que eram lágrimas, ela baixou a cabeça e a balançou. Eu queria que tudo aquilo fosse suficiente, mas, considerando que ela também tinha o Fulgor e queria cometer suicídio, certamente estaria do lado de Newt.

  — Você está brincando com a vida dele, moça.

  — Eu tenho a cura, Mallory. – falei enfim, sentindo o perigo daquelas palavras me espreitar.

 A cirurgiã ergueu a cabeça no mesmo instante, tão séria que pensei ter sucumbido ao vírus em segundos. Ouvi Gally se mover atrás de mim também.

  — O quê? – ela murmurou.

  — Se fizer a cirurgia... vai salvá-lo... de tudo.

 Com o olhar que ela lançou a Newt, percebi que omitir a complexidade da cura era o mais seguro, por enquanto.

 Mallory se afastou da cama voltando ao armário cheio de armas, e tirou de lá uma maquininha estranha, que não reconheci de imediato. Assim que ela me estendeu e olhou para mim de modo significativo, porém, a compreensão me frustrou. Peguei a máquina de pontas estranhas e me virei para Newt, observando seu cabelo com uma ternura que nunca imaginaria ter por algo tão simples. Aproximei-me mais dele, hesitante, quando de repente Gally tomou-a de mim e se posicionou atrás dele, erguendo o braço decidido e observando pensativo o antigo segundo em comando.

 

Eu permaneci na sala para que pudesse ajudar na cirurgia e Mallory pediu a Gally que esperasse lá fora. Senti-me estranha colocando a máscara cirúrgica e as luvas, mas minha barriga se contraía também com o frenesi de estar na mesma posição que minha mãe costumava ficar. Continuava checando o pulso e a respiração de Newt, o que realçava a necessidade daquelas máquinas, e meus olhos não paravam de marejar.

 Ao soltar um soluço sem querer, Mallory me encarou.

  — Uma bala é o menor dos problemas dele, Jordan. – ela disse, voltando a manejar o fórceps. — Vamos aplicar anestesia para garantir que ele não acabe sentindo nada.

  — Mas você disse...

  — Ele ainda poderá acordar depois que aplicarmos, mas alguns infectados não sentem certas partes do corpo. É só uma tentativa. Tem anestesia local num daqueles vidrinhos.

 Fui até uma bancada próxima aos monitores, onde vários recipientes e objetos como tampinha de garrafa e arame estavam espalhados. A anestesia estava no meio deles mais como uma sobrevivente.

  — Por via endovenosa ou respiratória? – perguntei antes de pegar a agulha.

  — Endovenosa, com certeza.

 

Ficamos mais de duas horas dentro da sala de cirurgia, até Mallory tirar o projétil da cabeça de Newt e dizer que podia fazer o restante sozinha. Eu não discuti muito, principalmente porque Gally falava incansavelmente em seu comunicador lá fora, e também não aguentava mais ver a imagem de Newt daquele jeito.

 Saí da sala, tirando as luvas e a máscara, vendo Gally de rosto vermelho, brigando com alguém.

  — Não! Sem chance! Passe para Vince! Nó-

 Ele se interrompeu ao me ver e desligou o aparelho, guardando-o no bolso e claramente com a intenção de me esconder algo. Sua face era nervosa, relanceando para a outra sala.

  — Ele está bem? – perguntou.

  — Quase teve um osso danificado, mas Mallory já conseguiu tirar o projétil. Quem é Vince?

 Gally comprimiu os lábios numa careta meio impaciente, como se estivesse irritado pela situação.

  — Membro do Braço Direito. Provavelmente não o conhece, ele chefiava longe daqui e dos olhos do CRUEL.

  — E está na cidade agora? Por quê?

 Ele desviou o olhar para o chão, passando a língua pelo interior da bochecha.

  — Não teste minha paciência agora.

  — Não acho que seja o melhor momento para falar disso. – retrucou.

  — Falar do quê?

  — Do plano do Braço Direito. Agora que a cidade está se acabando com todos esses Cranks espalhando o vírus, eles decidiram agir.

 Fitei seu bolso onde o comunicador estava guardado e de repente me senti tensa, ansiosa.

  — Explique isso. – pedi.

 Com toda a minha atenção, Gally explicou sobre Vince estar chefiando uma operação-cópia contra o CRUEL. O Braço Direito era o responsável pela captura de Imunes, para que assim conseguissem forjar um acordo, entrarem no complexo e implantarem um dispositivo que inutilizaria todas as armas dos guardas, permitindo que tivessem chance de lutar para tomar o controle e acabar com a organização.

  — É tão simples que parece estúpido. – concluí. — Mesmo que isso de acordo cole para eles, quem garante que vão conseguir colocar esse dispositivo lá dentro? Já pensaram que pode haver alguém do CRUEL infiltrado no Braç...

  — Thomas garante.

 Suas palavras me interromperam tão bruscamente que eu tive certeza de ter ouvido errado.

  — Como é?

  — Thomas disse que você sabia que ele ia encontrar com a gente...

  — Não, ele disse que ia encontrar com você! Como isso aconteceu?

  — Ele é Imune, foi sequestrado. – disse arrogante, como se eu fosse burra por perguntar. — Mas acabou vindo até nós e sabendo do plano.

  — Isso é suicídio!

  — Aquele trolho nunca me pareceu um amante da vida.

 Ainda que fosse verdade, era maluquice demais. Thomas confiava tão pouco em mim para se jogar de cabeça num plano assim, ignorando completamente o que tínhamos conversado sobre sermos discretos para produzir a cura?

 Eu fechei os olhos e coloquei as mãos na testa, tentando raciocinar. Não dava... Newt estava sendo operado com um sério risco de vida... E enquanto isso Thomas queria se entregar para o CRUEL?

  — Quando vocês vão fazer isso?

 Gally não respondeu de imediato e voltei a encará-lo.

  — Thomas foi com dois acompanhantes pegar um Berg esta manhã.

 Soltei todo o ar dos meus pulmões de uma vez só, sem poder acreditar. Era por causa disso que ele havia deixado Newt daquele jeito? Puxou o gatilho para terminar o serviço mais rápido e seguir com o maldito plano?

 Um cilindro de oxigênio manchado de sangue entrou na minha visão e não pensei muito antes de agarrá-lo e arremessa-lo contra a porta de vidro do armário ao lado.

  — Pare o que eles estão fazendo... Agora! – exclamei, mais alto do que pretendia.

  — Eu tentei, mas já reuniram Teresa e os outros para invadirem.

  — Desde quando o Braço Direito é tão inconsequente?! – exclamei para as paredes, andando para descarregar a adrenalina.

  — Perenelle, que história era aquela de cura?

 O tom de Gally era tão ansioso que parecia querer me perguntar desde o momento em que me ouviu falar sobre isso. Encontrei os olhos dele e comecei a bater meu pé contra o chão, nervosa que precisasse explicar.

  — Não é nada concreto ainda, mas um cientista de alguns anos atrás fez estudos diferentes do CRUEL para encontrar uma solução para essa mértila toda. Comecei a me preparar para seguir com o trabalho dele, mas aí encontrei Newt...

 Ele pensou por um momento e umedeceu os lábios antes de falar.

  — Eu ia parar o plano de Vince achando que o CRUEL ia ajudar, mas... Se essa organização continuar na ativa, vai descobrir essa sua ideia e pôr um fim nela.

  — Não quero mais saber do CRUEL. Quero tirar os Clareanos da cidade para mexermos com isso em outro lugar. Agora a droga do Braço Direito envia eles direto para a linha de fogo? Seu chefe é um plong.

  — É, mas fez o plano funcionar. Thomas já implantou o dispositivo no CRUEL. Em menos de meia hora, todas as armas deles serão inúteis.

  — Meia hora...

 A cirurgia havia levado um tempo, mas eu jamais imaginaria que tínhamos sido tão rápidos até fazer ela começar. Tudo aquilo parecia ter durado uma eternidade...

  — Jordan. – Mallory bateu na parede de vidro da sala de cirurgia, fazendo sinal com a cabeça para que eu entrasse. — Precisamos conversar.


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