Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 47
Abaixo de 0 graus


Notas iniciais do capítulo

Chegueeeeei!

Com todo o carinho lindo que tenho recebido, dei um jeito de vir logo postar =3

Obrigada, Sra Stilinski, sempre tão fiel e AMAZING deixando comentários e Connie, que chegou já abalando meu coração ♥ Dedico esse capítulo a vocês =3

Pessoal, pelo que estou percebendo, esse vai ser meu período de sumiço entre um capítulo e outro: um fucking mês. Não vou prometer a vocês que o próximo sai logo quando eu não tenho certeza, e ultimamente estou ficando mais ocupada que nunca. Como jamais vou deixar essa fanfic, vou precisar atualizá-la uma vez por mês apenas. E é melhor deixar claro do que iludir vocês, né?
Espero que não me abandonem e que gostem do capítulo. Amo vocês ♥

Boa Leitura!



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Gally e eu entramos na sala de cirurgia outra vez. Olhei para Newt e para Mallory, pronta para correr e ir checar sua respiração caso ela dissesse algo, no mínimo, desagradável.

  — A bala afetou o lobo frontal e uma parte dos temporais quando o atingiu. – a cirurgiã disse para o chão.

  — Eu não vi nada disso. – repliquei.

  — Claro que não, estava chorando a operação inteira. Eu precisaria de uma tomografia para saber com precisão, mas já vi um caso assim, tenho quase certeza de que ele sofrerá sequelas.

  — De que tipo? – Gally perguntou.

 Mallory abriu a boca para responder, mas se interrompeu ao perceber que eu sabia a resposta. Cocei nervosamente a cabeça ao falar:

  — Vai ter problemas com a memória ou os movimentos... Só vamos saber quando ele acordar. Isso se as convulsões não começarem a se manifestar agora.

 Eu me afastei deles com a mão na cintura, tonta ao entender que eu era a razão das sequelas. Mallory poderia ter evitado algumas delas com os exames pré-operatórios. Abaixei a cabeça de olhos fechados, sentindo uma lágrima molhar minha bochecha esquerda. Aquilo seria ruim de tantas maneiras e de um jeito tão grande que não havia como pôr em palavras.

  — Certo, mas ele está infectado. Isso tudo não vai fazer diferença nenhuma quando ele se transformar. – Gally disse, tão frio que senti meus braços se arrepiarem.

 Voltei-me para os dois, demorando meus olhos nele por um tempo.

  — Olha, foi mal, mas é a verdade. Mesmo com a cura, o que você esperava fazer com ele enquanto estivesse sendo produzida? – ele disse.

 Mirei o chão, constrangida com aquela pergunta, porque meu desespero se concentrara em, pelo menos, tirar a bala e fazer Newt sobreviver até o fim da cirurgia.

 Contudo, Mallory movimentou os pés para trocar de posição, cruzando os braços e fitando o lado oposto da sala.

  — O quê? – indaguei com selvageria.

  — O quê? – ela replicou.

  — Sei que está pensando em alguma coisa.

  — Estou esperando você criar maturidade e acabar com o sofrimento dele.

 Precisei de alguns segundos para captar direito sua fala e meu sangue ferver o suficiente para me impelir na direção dela e fazê-la bater contra o armário de vidro atrás de si.

  — Salvei sua vida naquele beco, não pense que não posso fazer o contrário. – blefei num chiado raivoso, quase tocando meu nariz no dela, amassando sua camisa nas mãos. Eu me lembrava dessa sensação de querer tanto machucar alguém, mas o cheiro e o gosto de coisa queimada da última vez não veio.

  — Não vou alimentar sua falta de bom senso, Jordan. Vai ter que aprender que nenhum médico pode pensar do jeito que está fazendo agora. – ela tinha a voz firme, como se soubesse que eu não era capaz de fazer nada.

  — Seu trabalho é contornar a morte, por que é tão difícil fazer isso agora?

  — Porque não sei que história é essa de produzir uma cura, mas, se for demorar tanto tempo quanto estou imaginando, não tem ciência ou religião que o livre dessa. – ela fez a sentença de modo tão seco quanto Gally. As linhas de cor vinho que dançavam na minha visão com a voz dela tinham se tornado negras.

  — Você precisa ser tão fri...

 Eu parei de falar no instante em que minha mente clareou, e de repente não vi mais necessidade em ameaça-la. Eu me afastei dela olhando para o chão, deixando meu cérebro trabalhar. O cheiro de pinho quase me sufocou.

  — Tempo. – murmurei. Era disso que Newt precisava. Óbvio. O maior elemento a permitir que o Fulgor fizesse seu estrago nas pessoas era o tempo. Ele precisaria ser paralisado para que Newt ao menos tivesse uma chance com a cura. – É isso... Não é? Temos que impedir que o vírus que propague com tanta rapidez no cérebro dele.

 Voltei a encarar Mallory, que agora parecia apenas frustrada por eu ter entendido a ideia que ela não queria compartilhar.

  — A Benção é muito cara. – Gally disse dando de ombros como se isso bastasse para pôr fim à discussão, sem captar o que eu queria dizer.

  — Já tinha pensado em consegui-la para Newt, mas, mesmo assim, ela é muito fraca para durar o tempo que a preparação da cura pode durar e não impede que o Fulgor destrua o cérebro por completo, um dia, mesmo fazendo efeito.

  — E?

  — Hipotermia induzida sem uma parada cardiorrespiratória pode gerar sequelas muito piores do que perda de memória e convulsões, Jordan. – Mallory disse calmamente, olhando nos meus olhos mas sem um pingo de firmeza nos seus.

  — Nunca ouvi falar que pode. Não sou tão ignorante quanto pensa, Mallory. Por que quer tanto me impedir de tentar salvá-lo? – já estava cansada de ouvir aquele tipo de coisa da boca dela.

 Ela ficou quieta e desviou o olhar, e então percebi que parecia mais abatida ainda. E isso, somado à firmeza de seu tom ao falar em seguida, era avassalador.

  — Já lidei com muitos casos graves e já vi muitas pessoas se matarem para tentar salvar outras, principalmente depois que o Fulgor começou a se alastrar. Não existe cura, Jordan... Até que ponto você vai para fazê-lo sobreviver, para produzir essa coisa? Vai morrer por algo que todo mundo já desistiu?

 Ouvir aquilo da única pessoa que eu esperava que me entendesse e pudesse me ajudar ali era como ouvir o bip de um ecocardiograma parar de vez. Eu não sabia se ela falava aquilo por estar infectada, mas eu começava a ver a escuridão daquele abismo me cercar. A temperatura pareceu ficar abaixo de zero.

  — Vamos, como funciona isso de hipotermia induzida? – Gally falou tão subitamente que me sobressaltei. Sua cor magenta brilhava. Ele encarara Mallory com as sobrancelhas curvadas em seriedade, e agora me encarava como se esperasse impaciente para que eu explicasse. A escuridão recuou.

 

Gally me ajudou a roubar pacotes de comida congelada de uma casa que ainda era habitada por um homem. Achávamos que estava vazia, a princípio, até sermos atacados por ele enquanto saíamos. Conseguimos ficar bem, mas seu destino não foi tão feliz. Voltamos para o Berg, onde Newt estava deitado numa das camas usando um aparelho improvisado para respirar e com a cabeça costurada; assim o manteríamos o mais refrigerado possível até que tirássemos os Clareanos do CRUEL e pudéssemos ir atrás da máquina adequada. Por enquanto, o Fulgor continuaria agindo em Newt, mas os pacotes gelados ajudariam a nos dar um tempo até que realmente fosse colocado sob a hipotermia correta. Mallory não disse mais nada antes de nós dois sairmos do hospital e não havia muito tempo para algo além de agradecimentos.

  — Você tem um plano, não é? – perguntei a Gally, apoiando-me em seu assento de piloto enquanto ele ligava o Berg.

  — A ideia foi sua, Fedelha. – disse com um menear de cabeça, um claro sinal de que eu deveria passar a viagem pensando.

  — Ei! Ei!

 Gritos vieram do lado de fora e eu o deixei terminando de aprontar tudo para ir ver o que era. Ao chegar ao corredor da porta de carga, vi Mallory correndo pela rua até nós, acompanhada de alguém. Kenan. Mesmo com o tempo que levamos para carregar Newt e pegar os congelados, ela havia sido rápida em ir até o filho e voltar.

 Os dois entraram no Berg, ofegando, erguendo as mãos para pedirem tempo. Depois do jeito que a cirurgiã tinha agido, eu não sabia se estava disposta a atrasar a partida por causa deles.

  — Você ainda é inconsequente e sem um pingo de bom senso... – a mulher começou entre fortes respiradas. — E não sei que droga o CRUEL fez com seu cérebro para achar que vai dar certo...

  — Ela está pedindo desculpas e dizendo que vamos com vocês. – Kenan a interrompeu, fazendo uma grande mancha vermelho-claro crescer ao seu lado.

  — Ir para onde? – indaguei falsamente. Eles ficavam mais estranhos a cada encontro.

  — Vai lutar contra o CRUEL, não vai? Nós conversamos... Você parecia guardar rancor deles. Decidimos que, se o mundo vai se acabar e você tem uma solução, sermos amigos é uma boa. Sabe, pura cooperação.

 A honestidade dele apenas fez com que minhas dúvidas sobre os dois aumentassem. Eu não queria negar ajuda justamente à mulher que me ajudou tanto, mesmo quando não me apoiava. Contudo, a obsessão de ambos em me seguir os fazia parecer perigosos.

   Tudo bem aí?! — Gally gritou de dentro de sua cabine.

 Medi os dois com os olhos, preferindo adiar a conversa sobre suas reais intenções.

  — Sim! Tire-nos daqui logo! – gritei de volta e fiz sinal para que eles acabassem de entrar.

 A viagem foi calma em boa parte, principalmente porque me isolei no quarto com Newt para poder pensar num plano de invasão. Eu havia conversado rapidamente com Mallory sobre deixa-la no mesmo estado que ele, para que ela pudesse aguentar até a cura também, mas ela foi bem direta em negar. Não insisti muito, afinal, já estava custando muito esforço me imaginar entrando no CRUEL outra vez.

 Se eu conseguisse entrar em contato com Andrômeda, talvez fosse mil vezes mais fácil, mas era impossível pegar no sono. Comecei a andar de um lado para o outro, falando alto, para as paredes, para Newt, para Tagarela, como se isso me ajudasse a ter outros pontos de vista. As linhas coloridas de delírio que eu via no tempo em que fui isolada dos Clareanos antes do Deserto pintavam o local ao meu redor vez ou outra agora.

 Resolvi voltar à cabine de Gally, onde Mallory e Kenan tinham permanecido para que não ficassem sozinhos pela nave. Eu tinha contado a Gally sobre eles e deixara bem claro aos dois que não confiava no que diziam. Não pareceram se importar com isso.

  — Mais uma vez: para onde o Braço Direito vai levar os Clareanos depois que entrarem no complexo? – perguntei.

  — Provavelmente estarão todos num prédio só, para poderem escapar antes da explosão. Ainda estou tentando falar com eles. Dar atenção a um comunicador numa guerra é uma coisa complicada. – Gally respondeu.

  — Vão mesmo querer descer conosco? – dirigi-me aos outros dois.

  — Precisarão de ajuda. – Kenan afirmou. A voz dele agora me trazia o gosto de morango sempre que soava.

 Gally e eu nos entreolhamos, claramente discordando dele.

  — Como quiser. – Gally murmurou, voltando sua atenção para a pilotagem. — Thomas deve ir encontrar o Braço Direito assim que as explosões começarem, ou antes, com sorte...

 Continuamos conversando, traçando a base de um plano da melhor maneira possível com tão pouca informação, até o comunicador de Gally finalmente começar a chiar e trazer a voz de Vince; a voz dele deixava minhas mãos escorregadias. Ele indicou onde estavam e todo o barulho de fundo nos deu a certeza de que a destruição do CRUEL já acontecia.

  — Onde você esteve, droga?! Sabia que precisaríamos de toda a ajuda possível! — ele bradou.

  — Tive um imprevisto, mas estou com mais pessoas. – Gally respondeu. Em outros tempos, ele não responderia com tanta polidez alguém que se dirigisse desse modo a ele.

 Vince ia dizer mais, quando outra explosão aconteceu e o comunicador se aquietou de vez.

  — Sabe que não vou me envolver nesse plano, não sabe? – comentei com Gally, encarando sua nuca. — Pode ficar à vontade para ir com eles, só peço que não comente sobre a cura.

  — Aquele pessoal é legal, trolha, mas não foi com eles que briguei para ver quem descia primeiro de uma torre de vigilância prestes a desabar.

 Com a falta de emoção em seu tom, demorei a entender o que ele quis dizer, mas eu devia estar acostumada, vindo de Gally. Mallory e Kenan se entreolharam, confusos, e por algum motivo estranho e desconhecido me senti satisfeita pela experiência no Labirinto ter tornado o vínculo entre os Clareanos tão inigualável.

 Finalmente, chegamos à floresta em frente às instalações do CRUEL. A certa distância ficou fácil localizá-las, pois a fumaça negra que se erguia já estava muito alta. Nós quatro corremos por entre as árvores, pisoteando a neve, beirando um rio congelado interminável, atentos a qualquer coisa que aparecesse em nosso caminho. Dispensamos a conversa, já que o plano estava mais que repassado, mas eu não parava de pensar no que faria ao encontrar Thomas, depois do que ele tinha feito...

 Absolutamente contra a minha vontade, minhas pernas pararam de correr, e a perda de velocidade foi tão brusca que imaginei meus joelhos se partindo em dois. A parte de trás da minha cabeça latejou fortemente algumas vezes, quase me cegando de tanta dor. Por um momento, senti que uma vertigem se aproximava e eu desmaiaria, mas então eu não sentia mais nada.

  — Que foi? – Gally perguntou, vários passos à minha frente, junto de Mallory e Kenan, todos eles me encarando com evidente confusão.

 Ia abrir a boca para dizer que só tinha sentido algo estranho e poderíamos continuar, mas não consegui. Os músculos do meu rosto não me responderam. Tentei mover meu corpo para continuar a caminhar e acabei girando em direção ao Berg. Meu coração disparou em menos de um segundo. Como um fantoche, enquanto eu tentava lutar contra, minhas pernas foram se colocando uma na frente da outra para voltarem. Quis me jogar no chão ou me agarrar a qualquer coisa, mas era como se uma força invisível estivesse no controle. O dispositivo de Andrômeda. Enfim, tinham conseguido total controle sobre mim.

 Os três se aproximaram por trás, mas mantiveram distância. Eu podia imaginar o quão estranho achavam ver alguém agindo daquele jeito. Consegui abrir a boca para falar, mas nada além de sons cortados aleatórios saíram, e minhas pernas continuavam a trilhar o próprio caminho.

  — O que está fazendo? – Kenan perguntou temeroso. O morango agora estava estragado.

 Quanto mais eu tentava gesticular e falar a meu favor, mais longe me sentia de conseguir fazer isso. Aquilo era irritante. Como pude deixar passar a oportunidade de tirar aquele dispositivo no hospital?

  — Ei, ei, Nelly! Ei! – Gally parou na minha frente, segurando meus braços com firmeza, correndo os olhos pelo meu corpo, atento. – O Dissipador tira o dispositivo que nos controla. Se você tem as memórias, não tem esse dispositivo. Então que mértila é essa?

 Eu sentia minha expressão mostrar vigor em lutar pelo controle, e meu desespero para falar sobre o que era aquilo era sufocante. Meus braços se debateram, minhas mãos agarraram os ombros de Gally e o atiraram para muito mais longe do que eu, voluntariamente, seria capaz.

 Determinadas, minhas pernas começaram a se movimentar num andar rápido. Não demoraria até que o dispositivo soubesse como me fazer correr. Meus sapatos se atolavam na neve, se arrastando, enviando correntes terrivelmente frias por mim.

  — Já tiveram chance melhor para controla-la. – Mallory comentou. Ouvir sua voz mais longe me fez querer gritar. Jamais senti tamanha impotência.

 Gally apareceu correndo na minha frente, esticando o braço na minha direção para que eu mantivesse distância, segurando na outra mão um galho longo e grosso o suficiente para fazer doer.

  — Tome o controle disso... ou vou te machucar, juro para você... – ele disse num respiração entrecortada. Eu não duvidava nem um pouco de que ele era capaz de fazer aquilo. Minhas pernas deram mais alguns passos, e o galho tocou meu peito, ameaçador. — Jordan.

 Meus músculos ficaram mais tensos ao pararem de se movimentar, e temi que quem estava operando meu cérebro estivesse planejando um ataque contra Gally. Sem o menor alerta, minha mão se esquivou para a parte de trás da minha calça e tirou a pistola que eu carregava. Tentei abrir meus dedos, berrar, arrancar meu coração do peito para que se acalmasse e deixasse meu cérebro trabalhar em paz para tomar o controle. Um gosto esquisito me fazia salivar. Meu braço se dobrou para frente, e Gally se atracou contra mim antes que eu o mirasse. Seus braços cercaram meu torso, lançando-me de costas na neve. Tentei me manter parada e ceder ao peso de seu corpo, e em vez disso senti minhas unhas se cravarem em suas costas. Senti um golpe brusco e muito intenso na cabeça e apaguei.

 

Meus pulmões clamavam por ar, eu não sabia por quê. Os muros do Labirinto passavam por mim, como se eu estivesse andando, mas não tinha certeza se estava em movimento. A voz de Andrômeda me chamava, às vezes gritava, desesperada, implorava por alguma coisa, e por mais que eu tentasse entender suas palavras, nada ficava claro. Ouvi Gally dizer alguma coisa, quase pude sentir que ele estava no Labirinto comigo. Thomas surgiu no final do corredor, a respiração pesada e o semblante tão perturbado quanto seu tom de voz antes de deixar Newt largado na rodovia. Quis ir até ele, gritar perguntando por que tinha feito aquilo, mas era como se eu ainda não estivesse no controle. Mike de repente tomava o lugar dele ali, mas estava diferente...

 Alguém soltava baforadas de ar logo acima de mim. Imediatamente eu me movimentei, tentando abastecer meus pulmões de uma vez só e sentindo água me fazer engasgar. Tossi e cuspi no chão, puxando e soltando o ar com tanto desespero que era involuntário. Uma mão dava leves batidas nas minhas costas e meu primeiro alívio foi poder tocar por vontade própria a pessoa ao meu lado.

 Eu estava sentada na neve, tremendo de frio e molhada da cabeça aos pés, com um grande mau pressentimento ao pensar em Andrômeda.

  — Melhor acabarmos com isso logo. – Gally comentou, apoiado num dos joelhos ao meu lado para ficar da minha altura, alternando um olhar sério entre eu, Mallory e Kenan. Ele estava tão encharcado quanto eu; Kenan apenas possuía suas calças jeans molhadas do joelho para baixo; Mallory tinha a posição de quem fizera muito esforço, também abaixada perto de mim.

  — O que-e aconteceu? – eu gaguejei. Meus dentes batiam, eu mal sentia meus lábios e pernas. Vi um rastro saindo de uma parte quebrada do rio direto até mim, quase podendo sentir um frio na espinha ao me imaginar lá dentro. — Eu me afoguei. – concluí. A única recordação de algo após a pancada era a sensação de água nos meus pulmões, o desespero de algo invadir meu corpo com tanta potência, quando não devia.

  — Isso aí. – Gally arfava, com gotículas transparentes descendo por seu rosto.

 Esforcei-me para levantar e ele e Mallory me ajudaram quando meu peso fez que cederia sobre as pernas. Apertei suas respectivas mãos ao perceber que eu congelava de dentro para fora, como se não houvesse nada além de uma pedra de gelo dentro de mim. Fechei os olhos, sentindo meus membros darem espasmos vez ou outra, e um gemido escapou por entre meus dentes. Um casaco quente me cobriu e tratei de enfiar meus braços nos lugares certos, meu corpo inteiro arrepiando com a mudança de temperatura.

  — Obrigada... – falei em nada mais que um sussurro ao perceber que a ação partira de Kenan.

  — Está no controle, certo? – ele perguntou, analisando-me de cima a abaixo.

  — É, agora sim.

  — Vamos. – Gally apontou o caminho com a cabeça e passou o braço sobre meus ombros para dividir o calor, enquanto Mallory cercava minha cintura da mesma forma e esfregava meu braço. Meu cérebro parecia congelado para raciocinar direito, mas haviaalguma coisa de errado com Andrômeda.

 Prosseguimos com a caminhada e eu dava tudo de mim para prestar atenção no que eles diziam sobre o ocorrido. O frio quase me paralisava, minhas pernas estavam se movimentando como se cada passo fosse mais um empurrão para quebrar um iceberg dentro delas. Agradecia por ter ficado inconsciente ao entrar na água.

  —... você simplesmente levantou depois que te acertei o cano da arma e se atirou no rio. – Gally contava.

  — Dando um belo chute na minha cabeça antes, devo acrescentar. Você é bem flexível para uma simples socorrista. – Mallory disse.

  — Ah, não, não sou... – murmurei, enquanto massageava o interior da minha coxa, que parecia ter sido esticada por um gigante.

  — Como eles conseguiram controlar você? Assim que devolvem nossa memória, tiram o dispositivo de controle também. Devia estar livre deles. – Gally disse.

  — E estamos indo direto até eles agora. – falei entre uma risada forçada, tentando não encarar aquela verdade de modo tão ruim quanto era. — Tive uma ajuda para sair do CRUEL, por isso estou com outro dispositivo implantado. Uma garota consegue se comunicar comigo por sonhos sempre que quiser e me controlou para que eu pudesse sair do complexo.

  — E agora simplesmente tentou matar você.

  — Ainda estou tentando encontrar o sentido...

  — Não parece nem um pouco difícil para mim. Se ela sabe fazer o mesmo que o CRUEL, é claro que está do lado deles.

 Eu não queria pôr aquilo em discussão, até porque não possuía argumentos. Havia grandes chances de ser exatamente o que Gally dizia. Ainda assim, sentia que Andrômeda estava em perigo por minha causa.

 Transpusemos o último conjunto de árvores, saindo na rua que separava a floresta do complexo do CRUEL. Parecia fazer anos desde que roubei um carro daquele estacionamento para ir encontrar os Clareanos em outro prédio, mas o tempo (e o Braço Direito) tinha feito um trabalho maravilhoso com o conjunto de prédios. Havia rombos por toda parte, acompanhados de pilhas de destroços e fumaça. Alguns guardas que passavam por ali só poderiam ser reconhecidos como parte do CRUEL pelo uniforme, pois não carregavam nenhum Lança-Granadas.

  — O Fedelho conseguiu. – Gally tomou a conclusão sem rodeios.

  — É, mas a que preço? – repliquei num murmúrio, varrendo o lugar com os olhos. Apesar da minha raiva, não conseguia deixar de pensar no que o CRUEL era capaz de fazer com a rendição de Thomas.

 Pude ver duas pessoas sentadas em frente a um enorme rombo, num pátio que separava aquele prédio do restante. A julgar pelas roupas, eram civis. Braço Direito.

  — Não acha melhor ir falar com eles, conseguir uma atualização? – perguntei a Gally, notando seu olhar ansioso para a dupla.

 Ele continuou encarando os dois, até sair em silêncio em direção ao prédio principal. Entrando por uma passagem lateral coberta de ruínas, simples assim, nos infiltramos no CRUEL. Estávamos na encruzilhada de corredores poeirentos e inúteis, com suas luzes brancas piscando fracamente. Era ótimo ver aquele lugar menos limpo e lustroso.

  — Vince. Vince, pode me ouvir? – Gally disse com a boca próxima ao seu comunicador. O aparelho estava molhado e parecia funcionar perfeitamente assim.

   Fale. – o tom do chefe não mostrava satisfação.

  — Thomas. Onde ele está?

   Ele devia nos encontrar depois das explosões, mas já mandei um pessoal procura-lo. É melhor que o encontrem logo.

 A expressão de Gally se tornou inquieta e ranzinza, a testa franzida, sua cabeça notoriamente trabalhando.

  — O que ele quer dizer? – perguntei.

 Ele relanceou para mim, mas não respondeu.

  — Teresa e o grupo estão com você? – disse ao comunicador.

  — Estão, mas se recusaram a fazer qualquer coisa sem o Thomas.

  — Que grupo? – foi a vez de Kenan questionar, muito mais ansioso do que o razoável. Mallory olhou para ele com a mesma inquietação.

  — Quando decidir fazer algo útil, venha me encontrar. Estou no último prédio. Tomamos o lugar, esse pessoal está acabado.

 Eles encerraram a conversa e Gally teve toda a nossa atenção, mas não pareceu muito afim de falar.

  — Por que Thomas precisa ser encontrado logo? – perguntei.

  — Porque o resumo do plano de Vince é colocar todo esse lugar abaixo. – disse simplesmente. — Acabar com o CRUEL de vez do modo mais literal possível.

 Soltei um suspiro longo para reunir calma. Sentia falta de quando o Braço Direito era mais sutil.

  — Por mais lindo que isso soe...

  — De que grupo ele estava falando? – Kenan me interrompeu, os ombros agora muito mais aprumados, o tom de voz mais sério.

  — Os Imunes que passaram e passarão pelas Variáveis do CRUEL. Alguns estão com Vince porque Thomas interrompeu o sequestro, outros estão em algum lugar aqui para que continuassem o Experimento. – Gally explicou, e tudo que eu fazia era observar a reação da mãe e do filho.

  — Bom, devíamos ir atrás deles. – Kenan disse.

 Gally olhou para mim, mas fechei os olhos e cocei a testa.

  — Por quê? – Gally indagou, desconfiado.

  — Acabou de dizer que vão explodir o lugar sem se importar com os Imunes sequestrados! – Kenan replicou.

  — Estar embaixo da asa do CRUEL é um plong, trolho, mas também significa um certo grau de segurança. Eles estão mais a salvo do que Thomas e Andrômeda. – respondi.

  — Você não sabe disso. – Mallory afirmou. — Os primeiros que salvamos são os em estado mais grave, Jordan.

  — Que tal falarmos da decisão súbita de vocês dois de entrar na linha de tiro entre CRUEL e Braço Direito?

  — Estamos aqui para ajudar.

 Eu estava pronta para retrucar, ao perceber que era uma grande perda de tempo.

  — Façam o que quiserem. – disse por fim e lhes dei as costas, caminhando para o corredor logo à frente e passando por portas duplas.

 Uma moça baixinha vestindo jaleco acabava de sair apressada por outro conjunto de portas. Eu falava com toda aquela firmeza sobre tirar Thomas e Andrômeda dali também, mas não tinha ideia de por onde começar a procura-los.

 Gally surgiu, falando como se lesse meus pensamentos.

  — Thomas ia entrar com a desculpa de fazer parte do Experimento outra vez. Se quer uma pista, é essa.

  — Aquele pessoal adorava salas de testes e estamos perto do alojamento do Grupo A, se minha memória não falha. Há salas de cirurgia e laboratórios tanto por ali, quanto por ali. – apontei para os corredores da direita e da esquerda. Era terrível me deparar com uma decisão daquelas. Achava que nunca mais precisaria passar por isso após sair do Labirinto.

  — Andar é mais útil que ficar parado. – Gally comentou, tomando a frente e indo pela direita. Mallory e Kenan passavam pelas portas atrás de mim quando resolvi segui-lo.

 Cruzamos os corredores exatamente como se fazia no Labirinto, apesar de ali eu ter mais noção de onde deveria ir e onde não. Passamos por salas em que tiravam nosso sangue e estudavam minha síndrome, mas Thomas não estava lá. Eu abria portas aleatórias para tentar a sorte com Andrômeda e, a cada vez que não a encontrava, o gosto de sangue na minha boca se intensificava. Já tinha cansado de cuspir pelos cantos.

  — Quer saber, Thomas deve estar bem. – falei de repente, estacando entre dois caminhos.

 Gally parou mais à frente e se voltou para mim, as sobrancelhas arqueadas em alerta outra vez.

  — Estão te controlando de novo?

  — Vamos atrás de Andrômeda. Me acerte com a pistola e vou poder falar com ela.

  — Você disse que ela controlava isso.

  — Mas não vai ter chance se eu não dormir.

 Ele pareceu atordoado, abrindo a boca para falar algumas vezes, mas sem sucesso. Desviou o olhar para Mallory e Kenan, que acabavam de surgir pelo corredor que viemos, e me encarou como se eu fosse maluca.

  — Temos um chute melhor sobre onde o Fedelho está, vamos facilitar as coisas. – ele disse.

  — Thomas atirou em Newt, Gally! – revelei de uma vez, um pouco aliviada por poder dizer isso em alto e bom som. — No meio da rodovia, antes de partir com o Braço Direito.

 Gally se remexeu sobre os pés, desviando o olhar de mim para o chão por um momento.

  — Deve ter tido um bom motivo. – disse numa tentativa falha de soar indiferente, mas era possível sentir a incerteza dele.

  — Nada justifica.

  — Escute, Newt estava se transformando, pode ter provocado. É horrível admitir, mas eu também...

  — Também atiraria em mim se eu implorasse para você?

  — Se você me atacasse...

  — Newt não atacou! – gritei.

  — Só eu aqui acho essa discussão um pouco lunática? – Kenan indagou, suas palavras ressoando pelas paredes com o silêncio que se seguiu.

 Gally novamente tentou dizer alguma coisa, mas foi traído pela própria impotência. Assim, eu disse:

  — Thomas fez a escolha dele. Existe uma lei de que toda ação tem uma reação de mesma força e intensidade, também conhecida como carma, então não vamos mexer com ela. A propósito, sabe quem criou essa lei, Gally?

 Eu estava prestes a passar pelo Clareano, quando seu olhar se desviou e sua postura endureceu. Girei sobre os calcanhares, encontrando Thomas no fim do corredor, parado perto da penumbra de uma escada. Ele me encarava com tanto abatimento que quase tive pena.

 O andar de cima emitiu uma explosão que vibrou as paredes ao nosso redor e um pedaço de concreto rolou pela escada em direção a Thomas. Ele saiu do caminho antes que fosse atingido, mas, a julgar pela subsequência dos barulhos, teríamos todos que deixar o lugar logo.

  — Vamos! – Gally gritou acima da destruição e partiu correndo.

 Seguimos em seu encalço, para qualquer lugar longe de perigo. Ninguém ousava parar ou falar e, por muito tempo, eu nem pensei no que estávamos fazendo. Quando me dei conta, tinha passado vários minutos objetivando apenas não me ferir com o teto que caía e as paredes que estouravam.

  — Esperem! Esperem! – Thomas exclamou mais atrás, tendo parado de correr e se apoiado na parede para recuperar o fôlego. — Precisamos encontrar o Braço Direito.

  — Eles estão a salvo, Fedelho. Tudo isso faz parte do plano, lembra? – Gally disse.

  — Você não entende... A Chanceler me deu instruções de como acha-los, achar os Imunes... e uma saída daqui.

  — Ava? – perguntei. Meu rosto esquentou e as lembranças sobre a mulher voltaram. O gosto de sangue encheu minha boca quase como se eu estivesse ouvindo a própria Chanceler.

 Thomas não fez nada além de tirar duas folhas dobradas de dentro do bolso e nos estender. Eu as tomei de suas mãos e as abri de modo que Gally também pudesse ver. Uma delas era uma carta, em que Ava dizia que estávamos livres do Experimento, que não precisavam mais de nós para a cura, ainda que alguns assessores discordassem. Ela indicara caminhos num mapa para que encontrássemos o Braço Direito, tirássemos os Imunes de onde estavam escondidos e seguíssemos para algo chamado nova vida, através de um Transportal.

 Passei os olhos várias vezes pelo papel, captando algumas palavras-chave como Esboçoterminaramcuraindivíduoslugarvida. Depois de tudo que acontecera e do que sacrificamos várias vezes para fugir do CRUEL, estávamos sendo dispensados por uma carta? E com mapas para voltar ao Labirinto e seguir a um Transportal onde não sabíamos que iria dar?

 Dobrei as folhas e as devolvi a Thomas, demorando um pouco até encará-lo.

  — Sei o que vai dizer... – ele murmurou ansioso, claramente incapaz de me fitar por muito tempo.

 Os estrondos retornaram, as paredes tremeram. Nós todos perdemos o equilíbrio desta vez e as luzes de onde estávamos se apagaram quase completamente. Por um segundo, no entanto, eu vi uma parede acolchoada, branca, exatamente como a do quarto em que fiquei antes de ser mandada para a câmara anenoica. Não sei por que vi aquilo e nem como, pois não sentia ser uma lembrança, então certamente tinha algo a ver com Andrômeda.

 O teto vibrou perigosamente. Mallory, Kenan e Thomas recuaram, e Gally e eu fizemos o mesmo na direção oposta, tropeçando nos próprios pés justo quando houve o desmoronamento. Fragmentos do concreto voaram na nossa direção e ouvi Gally urrar, e minha bochecha levou um corte. A poeira nos envolvia, pude ouvir alguns tossirem.

  — Vou atrás dela, já sei onde ela está. – falei com dificuldade pelas partículas na minha garganta, agarrando a roupa de Gally por um momento para conseguir sua atenção.

 Eu mal o tinha visto me encarar e saí correndo.

 Corredores e corredores depois, eles começaram a ficar mais familiares, como os em que passei para ir falar com a Chanceler após receber as memórias. Caí numa encruzilhada e olhei para a minha esquerda, para uma parede em que não havia nada senão uma porta. Estava pronta para abri-la, quando o som de uma arma sendo engatilhada me paralisou. De trás de uma quina, um guarda sem capacete saía a passos cautelosos.

  — Se afaste da por-

 Tiros me ensurdeceram, deixando apenas um zumbido no ar, obrigando-me a tampar os ouvidos e me encolher contra a parede. O guarda caíra, imóvel, e Gally dava uma última olhada nele para ver se levantava. Thomas e os outros não estavam por perto, mas não dei muita atenção a isso. Abri a porta e entrei imediatamente. Estava muito escuro, mas eu podia ver uma figura no chão.

 Caminhei e me abaixei logo perto dela, descobrindo seu rosto do cabelo escuro e revelando um filete de sangue que saía de seus lábios. Ela estava desacordada, com um hematoma na testa. Eu a chamei várias vezes, apertando e balançando seu braço, perguntando-me que diabos tinha acontecido para ter acabado daquela maneira. Podiam tê-la mandado embora por me ajudar, mas feri-la?

  — Ei... Ei... – o alívio me tomou quando ela moveu a cabeça e os olhos por baixo das pálpebras. Ela pareceu tentar abri-los, mas continuou do mesmo jeito. — Andrômeda, pode me ouvir?

 Seus lábios tremeram ligeiramente e nada partiu deles.

 Corri os olhos por seu corpo, pensando no que fazer, e aproveitei que seu braço estava em contato com o chão para verga-lo em direção ao ombro, segurando seu punho e a dobra de seu cotovelo para senti-los. Os músculos não respondiam quase nada à contração.

  — Gally, me ajude aqui! – exclamei.

 Com dificuldade, fiz um dos braços dela cercar meu pescoço e Gally tratou de fazer o mesmo do outro lado de seu corpo, todo inerte. Ela sequer forçava os pés para pisar no chão.

  — Qual o problema? – ele indagou, enquanto a arrastávamos para o lado de fora da sala acolchoada.

  — Ela está sedada. – respondi.

 Mallory surgiu com Kenan e Thomas do corredor ao lado, olhando para a menina como se visse um alienígena.

  — Precisamos resolver o que vamos fazer. – Kenan disse, como se previsse uma briga.

 Thomas e eu nos encaramos, em silêncio.

  — Tudo bem, se quiserem brigar pelo relacionamento, ótimo. Mas façam isso quando estivermos fora desse lugar. – Gally advertiu, claramente irritado.

  — Não vou para nenhum Transportal, Thomas. – falei.

  — Brenda confia na Chanceler. – Thomas respondeu calmamente.

  — Bom, eu não! E não sei que caminho é esse para o Labirinto, - apontei o mapa em sua mão. — porque não foi por onde eu e os Clareanos passamos ao sair de lá.

  — E por onde foi? – Gally perguntou, quase me interrompendo.

  — A Caixa.

 Nós três trocamos olhares que diziam tudo: que mértila. Nunca pensei que voltaria àquele lugar, muito menos pelo mesmo caminho onde tudo começou.  


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Notas finais do capítulo

O que acharam?? Como eu disse uma vez, acho esse o melhor período de Socorristas ^^
Por que será que Kenan e Mallory estão tão estranhos assim? No que vai dar a participação da Andrômeda? Hein? Hein?

Vejo vocês no próximo!
Bjsss!



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