Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 45
O tempo voa, mas você é o piloto




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Acabei cedendo e deixando que me ajudassem a tratar do ferimento, principalmente quando Mallory me mostrou remédios que realmente poderiam me ajudar. Não impediam que cicatrizes fossem formadas, mas pelo menos poderia usar sutiã sem que odiasse ser mulher por isso.

  — Ainda não nos disse seu nome. – ela comentou atrás de mim, fazendo o mesmo tipo de curativo que Gally havia feito.

  — Jordan. – respondi.

  — E como sabia o que era aquele remédio? Em toda a minha carreira de cirurgiã, ninguém com menos de setenta ou oitenta anos sabe da existência daquilo. E você não deve ser tão velha quanto parece.

  — Mamãe. – o garoto repreendeu da cozinha, virado de costas enquanto cozinhava alguma coisa para me dar privacidade.

  — Ela não ficou ofendida. Não é?

  — Não, não fiquei. – disse com um meio sorriso. A ansiedade para ir embora ainda me consumia, mas estava fazendo de tudo para mostrar algum sinal de gratidão. — Passei por uns maus bocados, devo parecer tão ruim quanto um Crank.

 Mallory riu como se ouvisse a tentativa de uma criança de fazer piada.

  — Viu o que ela fez? Tentou me ofender fingindo que esqueceu que vou me transformar numa daquelas coisas daqui um tempo. Prontinho, moça.

  — Não foi o que eu quis dizer. – falei enquanto puxava a blusa emprestada e a vestia. O alívio de não ter mais as bolhas sendo judiadas era imenso, e eu me sentia cada vez pior que Mallory fosse se perder para o Fulgor um dia.

  — Minha mãe sempre gosta de ser um pouco inconveniente. É como ela diz um “obrigada” a longo prazo. – o garoto disse, saindo da cozinha com uma panela, dois pratos e talheres. — Sou Kenan. – ele me estendeu a mão. Assim que a apertei, ele a segurou com mais delicadeza e beijou o dorso, sem tirar os olhos de mim.

  — Tente de novo com um cabelo mais comportado, querido. – Mallory disse, pegando os pratos e me dando um.  

 Fiquei parada na mesma posição, ponderando sobre aceitar a comida. Eles estavam fazendo muita questão que eu ficasse. Eu olhava para a porta e as janelas como se esperasse um exército do CRUEL entrar a qualquer momento, e também checava se o revólver ainda estava onde eu havia deixado.

  — Você trabalhava como cirurgiã? – perguntei com a voz fraca, sem poder evitar a lembrança de minha mãe enquanto me sentava na cama e me servia do caldo. Era verde, com algum tempero de cheiro muito bom.

  — Ah, sim, era muito boa no que eu fazia. Sinto falta daquilo. Tratar os ralados de Kenan não é a mesma coisa, chega a ser um pouco frustrante.

  — Obrigado. – Kenan ironizou.

  — Você o chamou de Narsh... – comecei, confusa.

  — Ele queria um apelido quando era pequeno e o irmão dele sempre foi o mais criativo da família... Teve a quem puxar. – ela moveu um ombro, convencida.

  — Você tem um... – fui incapaz de encerrar a frase com o olhar que Kenan me lançou. Era abatido e infeliz, e me convenceu de que o assunto não deveria ser tocado. — Não tem emprego disponível para gente como você? – voltei-me para a mulher.

  — Teria, se os elementos mais básicos de uma operação não estivessem sendo usados como proteção dos civis. – Mallory respondeu.

 Eu parei para pensar, imaginando pessoas invadindo hospitais à procura de um meio de defesa.  

  — Bisturis? – qualquer chute soaria estúpido.

  — Anestesia. As pessoas têm injetado isso nos infectados para que não matem ninguém, e também não precisem ser mortos. E isso por causa do preço da Benção.

  — O Fulgor cede à anestesia? – perguntei, prestes a ter um colapso se ela dissesse que sim.

  — Não exatamente. Alguns Cranks ficam lentos por algumas horas, mas outros nem chegam a responder a ela. Mas as pessoas se desesperam e roubam todo o estoque.

 Antes que eu pudesse me conter, comecei a imaginar como seria se o vírus em Newt perdesse um pouco das forças sob anestesia. Dependendo de alguns fatores químicos, isso poderia até ajudar na produção da cura.

  — O que são aqueles guardas na sua dispensa? – indaguei, tentando deixar isso de lado por um tempo.

  — Você não perdeu tempo, não é? – Mallory sorriu, e só depois que a vi bebericando a comida me senti segura para fazer o mesmo. — Estamos quase nos limites da cidade e nesse prédio viviam pelo menos cinco Privilegiados. Tivemos que dar um jeito quando esses dois apareceram. Custamos a encontrar um esconderijo, principalmente quando não sabemos ao certo do que estamos nos escondendo.  

  — Fala dos sequestradores de Imunes?

  — Isso. Certamente são mandados pelo CRUEL para fazerem suas atrocidades na tentativa de encontrar uma cura. Já vi uma mulher ser levada, ela estava com um bebê... – seus olhos se perderam no chão. — Eles não perdoam ninguém.

  — E o que é esse lugar? – fiz um movimento abrangendo o apartamento. — Fazem parte do Braço Direito?

  — Braço Direito? – Kenan repetiu com um sorriso debochado e foi se servir em vez de comentar.

  — Preferimos ficar longe da linha de tiro entre CRUEL e Braço Direito. – Mallory disse. — Não, nós e aquelas pessoas lá embaixo éramos só infelizes que cruzaram com o caminho um do outro e acabaram trabalhando juntos para se manterem vivos. Planejávamos uma fuga dessa cidade, sabíamos que nem Denver ia se safar dessa praga.

 Ela comentou algo com o filho e eu me pus a pensar sobre aquilo. Mesmo que os Cranks estivessem abrindo os portões para fugir dali, o CRUEL ainda mantinha os olhos sobre aquela cidade. Era arriscado demais colocar o estudo de Guilterson em prática naquele lugar.

  — E você, como conseguiu essa tatuagem? – Kenan perguntou a mim e pisquei algumas vezes para prestar atenção neles. Odiava que essa ideia de cura sempre tomasse o lugar de Newt nos meus pensamentos.

  — Longa história. – respondi, decidindo terminar aquela comida logo.

  — Fez parte da tentativa do CRUEL de achar uma solução, não é?

 Eu o encarei finalmente, percebendo que não ia me deixar ir embora sem antes saber pelo menos minha ligação com o CRUEL. Pude reparar melhor em seu rosto e vi várias pintas pontilhando o lado esquerdo dele, do maxilar à orelha, e seu cabelo realmente estava despenteado. A imensa familiaridade de seus traços faciais começava a me incomodar.

  — Aqui. – afastei a gola da minha blusa e apontei para o que eu imaginava ser a segunda linha da tatuagem. — Eles nos chamam de Indivíduos e nos separam em Grupos logo que somos capturados. Exatamente como com ratos de laboratório. Nos dão nomes falsos também e nos obrigam a aceita-los. Depois nos estudam e descobrem para o que servimos no Experimento, qual vai ser a nossa principal função, e então recebemos essa alcunha.

  — Mas essa é só a ponta do iceberg, não? – Kenan indagou e engoliu em seco, como se nem ele quisesse realmente saber.

 Assenti com a cabeça, trazendo o prato para perto de mim outra vez.

  — É, eles têm várias maneiras de fazer tudo isso. – eu não queria contar mais, mas sentia como se alguma coisa me forçasse, e temi que não pudesse segurar minha língua antes de dizer alguma coisa comprometedora. — Mesmo depois de recebermos tudo isso, ainda ficamos dois anos passando por testes.

  — Que tipo de testes?

  — Kenan. – foi a vez de Mallory repreender.

  — Só estou curioso.

  — É passado. – eu menti, levantando para ir até a cozinha deixar a louça. — Não fazem ideia de como é bom estar longe daquelas pessoas.

  — E como isso aconteceu?

  — Chega! – Mallory exclamou. Eu me virei e a vi encarando-o com as veias saltadas no pescoço. — Sou sua mãe e não quero mais que a perturbe com essas perguntas!

 Kenan meneou a cabeça e a abaixou, em silêncio, até olhar para mim e pedir desculpas. Eu estava prestes a dizer que tudo bem, ainda que não estivesse, quando algo estourou janela adentro num ruído agudo e rápido. Nós nos lançamos no chão em defesa. O silêncio se fez por alguns segundos, até seguidos tiros começarem a ser disparados pelas duas janelas, despejando cacos sobre nós, a luz do dia indo e vindo com o balançar das cortinas. O CRUEL, só podia ser...

 Todos nós permanecemos parados, trocando olhares nervosos. Não sabia o que se passava pela cabeça deles, mas pareciam me culpar por aquilo.

 Os tiros cessaram, eu me levantei num salto. Naquele exato momento, devia haver guardas subindo as escadas até nós. Fui até o revólver, vendo uma figura bem ao meu lado com a mesma intenção. Fui mais rápida e apontei o revólver para Kenan, que ergueu as mãos em conciliação.

  — Não precisa disso. – ele murmurou em meio à respiração descompassada. Antes que eu pudesse questionar, o barulho dos guardas subindo se fez audível.

  — Kenan. – Mallory chamou e jogou um Lança-Granadas para o filho.

 Eu corri para a cozinha, metendo-me atrás da quina, mas nenhum deles fez um disparo contra mim. Em vez disso, foram se esconder atrás dos móveis.

 A porta foi arrombada e os tiros tomaram conta do ambiente outra vez. Ouvi as granadas chiarem em contato com alguma coisa, mas, até então, ninguém parecia ter sido atingido. Um dos guardas caminhou até a cozinha e entrou, ficando de costas para mim, e logo puxei o gatilho em direção às suas costas. Nada aconteceu, além de um som agudo e impotente. Eu não sabia usar aquela coisa. Larguei o revólver de qualquer jeito e me atraquei contra o torso do guarda assim que ele se virou com o Lança-Granadas. A arma efetuou disparos atrás de mim quando o fiz bater e quebrar a janela. Era inútil lutar corpo a corpo enquanto ele estivesse usando todo aquele uniforme.

 Mantive-o contra a janela, desferindo socos absurdamente fúteis contra seu abdômen, esquivando minha outra mão até uma das gavetas da bancada. Pude ouvi-lo rindo de mim. Assim que tentou me afastar para usar a arma, agarrei o maior cabo que senti entre meus dedos e atingi a lâmina nas costas, na parte mais vulnerável de seu uniforme. Seu susto foi o suficiente para que eu pudesse pegar o Lança-Granadas e puxar o gatilho contra ele.

 Voltei para a sala, vendo Kenan ser atingido no braço. Tentei fazer alguma coisa, mas fui acertada no rosto pelo que devia ser um Lança-Granadas. Eu me deixei cair no chão e virei a tempo de poder mirar a granada no guarda. Mallory tinha dado conta do outro e acabava de se abaixar sobre o filho para checa-lo.

 Coloquei-me de pé, tirando o suor da testa e tentando raciocinar. Era possível ouvir um Berg do lado de fora do prédio ainda.

  — Mais deles vão chegar. – avisei.

  — Faça uma barreira na porta. – Mallory disse.

 Eu hesitei, esperando que ela se desse conta de que pedir aquilo não fazia sentido. Por onde sairíamos depois? Ouvi mais deles subindo as escadas e tratei de começar a empurrar o sofá. Ela me ajudou, deixando uma estante caída em direção à porta. Mallory pegou o filho pelo braço e tratei de ajuda-la a pô-lo de pé, enquanto já se dirigia para o quarto e abria duas portas na parede, revelando um tipo de elevador de carga, precário e nada confiável.

 A mulher nos empurrou para dentro dele, deixando um Lança-Granadas aos meus pés.

  — Cuidado com a cabeça ao chegar lá embaixo. – ela disse simplesmente e fechou a porta.

  — O qu-

 Estávamos no completo breu, Kenan ainda atordoado demais para perceber que a mãe estava provavelmente se entregando ao CRUEL por nenhuma razão aparente. Havia espaço para ela no elevador, ainda que o teto tocasse na minha cabeça. Ouvi porretes na parede do outro lado e estava prestes a gritar por ela, quando o elevador deu um tranco e começou a descer, mais rápido do que devia. Achei que ela tinha dado um jeito de cortar os cabos de aço, mas a velocidade não era tão alta.

 Ainda assim, quando batemos no fundo, pareceu que seríamos quebrados ao meio pelo teto e o chão. Chutei o Lança-Granadas para fora do elevador e puxei Kenan comigo, cedendo sob o peso dele e caindo de joelhos ao seu lado. Estávamos numa despensa velha muito fechada, o ar parecendo entrar com dificuldade para os meus pulmões. Havia uma luz vermelha de emergência, que era a única iluminação do local.

 Kenan gemeu e em seguida ouvi um baque contra o topo do elevador. Ouvi o som de metal batendo contra metal, até o que devia ser uma grade cair no chão, e Mallory pular logo ao lado. Eu não tinha me dado conta de verdade do que acontecia até então.

  — Ei... Ei, tudo bem? – ela perguntou, acariciando o rosto do filho.

  — Mãe?

  — Acertou. Precisamos ir.

 Ela o ajudou a levantar e abriu uma porta de saída, fazendo a luz da tarde me cegar por um momento. Mallory nos guiou da rua para um beco, longe do Berg que ainda pairava acima de nós e dos guardas em prontidão. Andamos por alguns minutos, até podermos atravessar a rua em direção à floresta, e lá ficamos até que o CRUEL deixasse a rua.

Levou duas horas até que a rua ficasse livre dos guardas e o som do Berg sumisse definitivamente. Ele chegou a sondar a floresta, mas os arbustos conseguiram ser o suficiente para nos esconder.  

   — Estão atrás de você, não é? – Mallory perguntou a mim, sentada contra uma árvore.

 Desviei meu olhar para o chão, enfim sentindo com mais força a culpa de terem ficado na linha de fogo que tentaram evitar.

  — Como eu disse, estava ocupada quando te encontrei. – eu me pus de pé e tirei o aparelho de localização do bolso, apertando aquele botão de uma vez.

  — O que vai fazer agora? – Kenan perguntou, e desisti de tentar ser amigável.

  — Escutem, a menos que tenham um outro lugar muito bom para se esconderem, continuem na zona da ignorância e não me façam as perguntas que o CRUEL pode vir a fazer se encontrarem vocês. Ajudei você, mas minha cabeça é desejada numa bandeja enferrujada por pessoas que fazem muito pior do que se pode imaginar. Obrigada por tudo, mas essa mértila de correlação acaba aqui.

 Eles ficaram em silêncio e agradeci mentalmente por isso, enquanto durou.

  — O que é mértila? – perguntaram em uníssono.

 Dei-lhes as costas e verifiquei a tela do aparelho, movendo e dando zoom para poder ver melhor a localização do ponto vermelho. Se o guarda do Palácio dos Cranks realmente havia cumprido com o combinado, Newt estava do outro lado da cidade. Não soube com quem ou fazendo o quê, nem se ao menos estava vivo, mas, por enquanto, o nome da rua bastava para mim.

 Respirei fundo apertando o dispositivo na mão antes de devolvê-lo à minha bolsinha sobrevivente, pendurada à tira colo, e agradeci uma última vez a Mallory e Kenan pela ajuda. Eles não responderam e tinham os semblantes inexpressivos, e fui embora assim mesmo.

 A caminhada pela cidade foi longa, bem mais do que seria se o mundo não estivesse infectado pelo Fulgor e pelo CRUEL. Precisei me esquivar de grupos de Cranks, guardas e até de um Berg que ainda aparecia sobrevoando vez ou outra. À medida que escurecia, ficava óbvio que eu chegaria até Newt apenas no dia seguinte. Seu ponto não se movia muito, eu o checava a cada cinco minutos, sem mal perceber. Ele rondava um bairro apenas. Queria ter mais detalhes de como estava e pensar nisso apenas me deixava mais ansiosa.

 Já estava mais que de noite quando cheguei ao prédio que usava de abrigo e me deitei próxima à janela para que o nascer do sol pudesse me acordar depois. Apesar do cansaço, no entanto, a ansiedade não me deixou dormir direito, e tudo que senti quando o sol nasceu foi alívio pela tortura de esperar ter acabado.

 Nas poucas vezes em que eu erguia a cabeça para olhar ao redor de mim, para as casas e para as raras pessoas pela rua, via algumas famílias pequenas entrando em seus esconderijos, espiando apreensivas sobre os ombros na esperança de não encontrarem nenhum grupo de canibais que as atacasse. Vi um pai conversando e abraçando o filho do lado de fora do abrigo deles. Soube que eram parentes pelos mesmos traços faciais. De repente me senti nostálgica. O garoto devia ter treze anos e me lembrava muito Chuck, pelo cabelo encaracolado e as bochechas bem rosadas. Chuck não teve a menor chance diante do perigo, por isso segui meu caminho antes que eu começasse a me sentir mal pelo menino desconhecido.

 Eu não possuía recordação alguma do meu pai. Quando recebi as lembranças de volta, fiquei extremamente frustrada com isso. Minha mãe me contara que ele morrera um tempo depois do meu nascimento, e que, mesmo muito cabeça dura e sem o menor jeito para se socializar, era um autêntico líder da família. Ela dizia que ele se tornara muito mais cuidadoso após o meu nascimento, e que imaginava Herman tomando seu posto mais tarde, nos defendendo e nos dando um lugar em paz ,onde pudéssemos morar. Em parte, me sentia grata que nem ele nem minha mãe tivessem visto o verdadeiro “eu” de Herman.

 Minha mãe era a única não Imune entre nós e, acima de sobreviver, fazíamos de tudo para mantê-la protegida do vírus. Meu pai morrera tentando fazer isso e ela sempre repetia que ele era o maior herói que já teve em sua vida, até mais que todos os médicos que ela conhecera juntos. A emoção com a qual ela contava isso me convencia do quão verdadeiro era o sentimento dela por ele, mesmo depois de ter conhecido Bruno e mesmo depois de algumas muitas mentiras que ela contara. Ela fora minha melhor amiga, mas, se havia um defeito que eu precisasse apontar, seria a mania de mentir para nós e para si mesma por nem sempre conseguir lidar com a realidade.

 Meus olhos estavam marejados quando me dei conta. Ainda que encontrássemos a cura para o Fulgor e o CRUEL fosse vencido, o vazio deixado em mim pela ausência dos meus pais e Bruno nunca diminuiria. Muitas vezes eu me pegava pensando que cederia à falta deles e tomaria a mesma decisão que Newt tomara no Labirinto, sozinho, a vários metros do chão. Nunca havia ido muito a fundo na ideia, mas a chance de perder Newt e não ter uma cura de verdade deixava tudo diferente.

 Após mais algumas horas caminhando, peguei meu aparelho outra vez e saí da rodovia em que estava, esgueirando-me para trás da pilastra do que um dia fora uma ponte. Newt estava a apenas dois quilômetros de distância de mim.

 Eu fechei os olhos para tentar me manter calma, mas minha respiração já começava a acelerar. Por alguma razão, eu tinha um mau pressentimento.

  — O que você tanto olha nessa coisa? – alguém perguntou quase me arrancando num susto todo o ar que eu possuía.

  — Deus... – sussurrei.

 Mallory acabava de sair de trás da quina de uma loja, com as sobrancelhas franzidas para o aparelho.

  — Você me seguiu? – indaguei.

  — Claro que segui você. Você é muito estranha, já te disseram isso? Precisava saber quais eram seus compromissos.

  — É pessoal. – respondi secamente, ainda que mexida com a lembrança de quando Alby me chamara de estranha. Queria saber o que ele diria se soubesse como eu estava agora...

  — Pessoal? Muito diferente do tipo de coisa que o Fulgor ou CRUEL nos obrigam a fazer hoje em dia?

  — Mallory... Por favor, volte para Kenan e se cuidem.

 Virei-me antes que ela pudesse responder, subindo a rodovia em direção à Newt.

  — Engraçado como vocês me fazem parecer a adolescente rebelde da história. – Mallory tomou lugar ao meu lado, acompanhando meus passos. — Kenan foi quem me convenceu a vir para esta cidade e foi no lugar dele que eu desci do prédio para ver como nosso grupo estava. Prefiro levar mil facadas no lugar dele, é verdade, mas ele vai estar completamente sozinho quando a Insanidade me levar. Nada me machuca mais.

  — Te dei mais um tempo com ele então. Não devia pensar em morrer.

 Ela ficou em silêncio, e torci para que me respondesse.

  — Isso é mais complicado do que parece, Jordan, mas espero que nunca tenha a visão que eu tenho. Kenan é um bom rapaz, não merece uma mãe como eu.  

  — Tenho certeza que alguma coisa ele aprendeu com você.

 Eu mantinha meu olhar na estrada e no aparelho, fingindo para mim mesma que aquela conversa não fazia o mau pressentimento crescer, ainda que fizesse, sim.

  — Vou levar como um elogio. – Mallory respondeu. — E você, com essa sua ideia de andar solitária numa missão por aí... Onde estão seus aliados, moça?

  — Ocupados.

 A mulher fez um “hum” com a garganta como se ponderasse sobre a resposta.

  — Achei que fosse me dizer que foram pegos pelo CRUEL. Agora estou curiosa.

  — A última coisa que espero ter-lhes acontecido é que tenham chegado perto do CRUEL, Mallory. Não admitiria em voz alta, se fosse esse o caso.

  — Eu entendo. Algumas coisas ficam melhores escondidas pelo egoísmo humano.

 Obriguei-me a continuar fitando o aparelho para não gritar com ela ou manda-la embora. Ouvi-la e ter aquele pressentimento estavam sendo a maior tortura dos últimos dias.

 Minutos mais tarde, a rodovia se nivelou, diferente dos batimentos do meu coração, que se acelerava com a proximidade dos pontos vermelho e azul no mapa. Ergui a cabeça para a mesma direção que o aparelho apontava, encontrando, primeiro, um grupo de Cranks brigando entre si por comida velha e sacos de lixo. Havia algum carro parado mais adiante, mas não prestei atenção nele. Não havia por que prestar. Thomas e Newt estavam sobre o asfalto, e alguma coisa estava muito errada.  

 Atordoada o suficiente, eu me aproximei devagar deles. O pânico não me deixava raciocinar e era inexplicável como eu estava sequer conseguindo me mover diante daquela cena. Newt berrava por cima de Thomas. Thomas tremia da cabeça aos pés. Tentei dizer o nome deles para que parassem com aquilo, mas só o que saiu foi um som sussurrado. Vi uma lágrima descer pelo rosto de Thomas e o peito de Newt subir e descer rapidamente, até ele parar de gritar.

  — Está tudo bem... – Thomas murmurou fracamente, as mãos no peito de Newt.

 Newt de repente pegou a arma no chão e apontou para a própria cabeça. Thomas berrou, agarrou o pulso dele para impedir, e assim Newt colocou-a na mão de Thomas, pressionando a boca da arma contra a própria testa.

  — Por favor, Tommy. Por favor.


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