Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 44
Denver e sua alma desintegrada




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Consegui uma tranca para as portas do laboratório no começo da tarde, e saindo da floresta, comecei a imaginar uma grande tragédia acontecendo caso aqueles Cranks conseguissem se soltar das correntes. Minhas entranhas se reviravam pensando nos utensílios sendo destruídos.

 Eu estava ponderando sobre voltar e manter tudo no prédio que usava de abrigo, quando uma voz retumbando por toda a rua me distraiu desses pensamentos. Havia um rosto imenso projetado por tecnologia numa construção alta, falando num tom inumano, robótico, mas não por causa da computadorização. Ava Paige nunca parecera ser da raça humana.

  — Repito: estamos em estado de emergência.

 Em seguida, ela desapareceu. Continuei encarando a grande tela, sentindo a raiva crescer e borbulhar como um monstro faminto dentro de mim. Se eu pudesse agora estar tão perto dela como estive ao sair da Clareira...

 Uma mulher gritou de algum lugar acima de mim e a janela mais alta de um dos prédios se desfez em vidro, logo antes do corpo de alguém despencar de lá e bater no chão, do outro lado da rua. O sangue e a carne espalhados prenderam minha atenção por longos segundos, até outro aparecer na janela e gritar em vitória. Estava muito longe para eu poder ver direito, mas tive certeza de ser alguém consumido pela Insanidade. Mas o que ele estava fazendo ali? Todos os Cranks estavam no Palácio ou bem longe de Denver.

 Como se ouvisse minhas dúvidas, uma dezena de pessoas saiu caminhando de trás do prédio, rindo, conversando e comendo. Comendo um braço. Esquivei-me para detrás das árvores o mais rápido que pude, e um deles olhou na minha direção. Achei que ele viria até mim, mas não pareceu me ver e voltou-se para seu grupo, e eles seguiram pela rua como adolescentes pós-festa. Eu chamaria aquilo de estado de emergência.

 Lembrei-me do que Thomas dissera sobre os Cranks do Palácio quererem fugir de lá e fiquei me perguntando por que só agora a cidade fora colocada sob aviso.

 Agarrando um pedaço longo de madeira do chão, contornei o prédio de onde a mulher caíra, a fim de encontrar respostas para aquilo; afinal, isso envolvia Newt. Um beco comprido se estendia por vários metros, recheado de corpos. Qualquer coisa do almoço do dia anterior que tivesse sobrado no meu estômago voltou pela minha garganta com o cheiro e a cena. Eu vomitei água sobre os degraus de uma escada e senti que não pararia enquanto estivesse cercada daquele cheiro. As pessoas estavam destroçadas ao longo do asfalto, algumas gemiam ou soltavam seu último suspiro, enquanto alguns de seus membros produziam reflexos.

 Abaixei-me sobre os poucos que ainda respiravam, para tentar salvá-los de algum jeito. No entanto, quem tinha feito aquilo não pretendia que sobrevivessem.

 Eu me ergui e olhei ao redor, cobrindo a boca com o dorso da mão, aterrorizada com aquilo. A cura não poderia ser trabalhada numa cidade assim. Meu coração deu um pulo ao lembrar do laboratório, parecendo agora muito mais vulnerável aos Cranks, mas o que fiz foi tirar da minha bolsinha o aparelho que localizava Newt. Antes que eu pudesse apertar o botão, um som rouco e estrangulado chegou aos meus ouvidos.

 Um dos corpos movia a perna em espasmos atrás da quina do prédio e, quando me aproximei, pude ter certeza de que não era um reflexo. Uma mulher que poderia se passar por Imune sangrava pelo abdômen e claramente tentava dizer alguma coisa. Ergui sua blusa apenas para ver que o Crank que a machucara devia estar com pressa ao fazê-lo, pois não tinha chegado a acertar uma área fatal. Não confiei em nada que estava ao meu redor para estancar o sangramento, então arranquei minha própria camisa, ficando de sutiã, enrolei-a até que pudesse cobrir por inteiro o ferimento e pressionei com força. Meus ferimentos nas costas gritaram em protesto, como se reconhecessem o Fulgor espalhado no ar.

 Ela continuava tentando dizer alguma coisa e começava a ficar vermelha.

  — Ei, ei... Se acalme, você vai ficar bem.

 Poder dizer isso foi como uma vitória naquele dia, apesar de tudo.

 Havia uma mancha de sangue do chão, que não poderia pertencer ao abdômen, e então percebi que sua cabeça também sangrava. Seu desespero pareceu ser menor quando percebeu que eu vi, mas ela ainda estava em estado de choque; parecia tentar controlar a respiração irregular. Sua pele estava pálida e suada, e algo me dizia que tinha visto todo o ocorrido com aquelas pessoas.

  — Pode me dizer o seu nome? – perguntei numa tentativa de acalmá-la, mas só o que fazia era girar os olhos aleatoriamente nas órbitas e olhar para mim como se gritasse internamente por socorro. — Você está bem, não se preocupe, não foi nada grave. Mas precisa se acalmar.

 Coloquei dois dedos sobre seu pulso, fitando o nada por alguns segundos. Sua pulsação continuava rápida. Coloquei meu braço por baixo de seus tornozelos e os ergui um pouco, tentando garantir que seu sangue corresse normal para o cérebro. Acabei reparando na máscara branca e no revólver caídos ao seu lado.

  — Você não é Imune? – perguntei, mas em vão. Ela ainda não conseguia falar. — Vai ficar tudo bem. Os Cranks já foram, estamos sozinhas. Se acalme...

 Após dez minutos, seus olhos começaram a se fechar e achei que ela desmaiaria, mas a respiração enfim se estabilizou.

  — Mallory... – foi a primeira coisa que disse antes de encarar o céu acima de nós. — Meu nome é Mallory.

  — Ótim-

  — Eles fugiram... Os Cranks... Fugiram do Palácio e da cidade e... Os portões... Maldito seja esse mundo... Os muros estão todos abertos... Eu tentei ajudar...

 Uma sensação estranha me tomou e coloquei a mão sobre o bolso para pegar o aparelho de volta, quando ela soltou um gemido ao tocar a cabeça. Risadas histéricas cortaram o ar vindas da rua. Pressionei seu abdômen com mais força e me desesperei com o anúncio dela de entrar em choque outra vez, então fiz com que seu braço ficasse sobre minha nuca e, após pegar o revólver, entrei no prédio com ela.

 Tateei a porta para encontrar uma tranca e girei com mais força que o necessário, colocando a orelha sobre a porta fechada para tentar ouvir alguma coisa. A mulher me encarava, aflita, e quase cuspi minhas entranhas quando alguém começou a esmurrar a porta. Parecia ser apenas um, ainda que com uma força descomunal. Com dificuldade, usei uma das mãos para puxar uma cadeira velha e colocar sob a maçaneta, e não demorei mais a subir as escadas para longe do Crank.

  — Aqui... Aqui. – a mulher disse e entrou num dos apartamentos, parecendo muito familiarizada.

 Havia mobília demais para um local abandonado, principalmente num mundo pós-apocalíptico, e tudo estava no que se podia chamar de bom estado. Cortinas cobriam todas as janelas; uma cama, um sofá e duas mesas ocupavam a sala, junto a um baú.

 Ela se sentou na cama, forrada com um cobertor desgastado, e pressionou sozinha o próprio ferimento. Tomando certa distância, pude observá-la melhor. Tinha feições de alguém com quase cinquenta anos, pequenas rugas nos olhos e dando indícios no pescoço. Parecia ter passado por bastante coisa. Seu cabelo era escuro e com visíveis fios brancos, cortado como pixie e desgrenhado. Apesar do pânico em que estivera momentos atrás, agora estava séria, como se todos os seus planos de sair de casa tivessem ido por água abaixo. Se ela realmente tinha se mantido longe do vírus até então, com certeza se arrependia de ter deixado o apartamento.

  — Tem curativos... Esparadrapos na cozinha... Traga um outro pano também...

 Obedeci prontamente, arrancando-me do torpor da análise. Era triste imaginar o esforço que ela havia feito para se manter saudável, agora desperdiçado desse jeito.

 Os armários da cozinha guardavam mais remédios, curativos e utensílios médicos do que comida. Um jaleco branco estava pendurado num prego da porta de serviço e não pude deixar de verificar se havia alguma inscrição do CRUEL nele. Eu já imaginava tudo aquilo ter sido uma armadilha, até constatar que o CRUEL não estava envolvido pelo que havia atrás da porta. Dois guardas sem capacete possuíam ferimentos graves e nenhuma consciência ali.

  — Era para você me deixar morrer, na verdade. – ela disse quando voltei à sala, enquanto fazia pressão contra a cabeça.

 Preferi não responder. Considerava a cota de suicidas na minha vida já esgotada.

 Limpei o ferimento com um remédio próprio para isso, que eu achava que nunca mais veria, pois costumava ser caro e antigo. Ela me ajudou a prender o curativo.

  — O que está fazendo na cidade, moça? – perguntou com um tom desinteressado.

  — Aqui costuma ser um bom lugar para trabalho, não? – disse sem erguer o olhar de seu abdômen.

  — Qualquer coisa é melhor que ser propriedade do CRUEL, imagino.  

 Enfim entendi o porquê da pergunta. Tinha me esquecido que ainda possuía a tatuagem de identificação no pescoço.  

  — É... – respondi, relanceando para ela com um meio sorriso.

 Sentei-me ao seu lado para olhar a cabeça, mas não parecia ser nada demais.

  — Sente náusea?

  — Não se preocupe, não precisa me levar para um hospital. – Mallory sorriu como se realmente achasse engraçado e levantou, rápido demais, cambaleando sobre as pernas. Agarrei seus cotovelos na mesma hora. Seus olhos estavam fechados.  

  — Talvez seja melhor se ficar sentada por um tempo e com isso. – trouxe-a de volta para a cama, colocando o pano em sua cabeça outra vez.

 Ela suspirou sonoramente, com um semblante realmente abatido.

  — Não importa mais, no fim das contas. De um jeito ou de outro, vou partir dessa logo. Você realmente devia ter me deixado lá. Se bem que, com esse nome aí, não parece ser o tipo de coisa que você faria. Quem diria que alguém poderia ser tão azarado, não é? Que coisa...

 Mallory continuou se lamentando, e a cada segundo que passava eu desejava mais que ela desmaiasse e eu pudesse ir embora sem me sentir tão culpada. Os Cranks haviam fugido... Quanto tempo mais eu teria até Newt ser machucado ou sair da cidade? Se tudo isso ainda não tinha acontecido... Pensei em pegar o dispositivo e checar, mas não quis fazer na frente da mulher.

  — Você não é muito de falar, não é?

 Eu pisquei e voltei a dar atenção a ela, tentando afastar minha imaginação de todas as tragédias que podiam estar acontecendo agora. Thomas, Brenda, Minho e Jorge deviam estar indo ao encontro de Gally naquele momento. E se um grupo como aquele os atacasse?

 Mallory me encarava com uma sobrancelha arqueada e, ao que parecia, eu tinha novamente me dispersado de sua lamentação.

  — Desculpe... Desculpe. – mantendo o pano na cabeça dela, desajeitada, eu não entendia por que ela mesma não segurava. — Eu estava a caminho de uma coisa antes de te encontrar... Como se sente?

  — Ah, bem, considerando minha morte iminente...

  — Nem sempre o vírus te consome tão rápido. Se sua atividade cerebral não for tão intensa, você pode conservar boa parte da sua saúde, por algum tempo.

 Mallory manteve seu semblante inexpressivo, como se não entendesse nada do que eu dizia. Contudo, se aquele jaleco lhe pertencia, ela com certeza entendia.

  — Quem é você? – perguntou, e logo em seguida se levantou num pulo, extremamente irritada. — Se trabalhar para o CRUEL...

 Seu corpo pendeu para o lado em fraqueza outra vez e tratei de coloca-la sentada.

  — Sou só uma socorrista. – falei brandamente, enjoada que alguém me insinuasse parceira de Ava. — Você tem um amigo por aqui? Marido ou...

  — Quantas pessoas acompanhadas da família você já viu por aí hoje em dia? – ela indagou com um sorriso zombeteiro.

  — Tenho algumas coisas para fazer. E você não pode ficar sozinha, ent-

  — Ela não está. – uma terceira voz soou atrás de nós. — Oh, ah... Desculpe.

 Ao me virar, deparei-me com um garoto virando a cabeça para outro lado, olhando para o teto, e precisei que um ar frio batesse em mim para lembrar que eu não vestia minha camisa.

  — Mértila...

 Mallory me passou uma blusa de mangas rasgadas e eu rapidamente me enfiei nela, levantando-me para ficar de frente para o rapaz. De repente me sentia como um animal acuado.

  — Por que não está na cama? – a mulher se dirigiu a ele, severa.

 Ele espiou pelo canto do olho e alternou o olhar entre nós duas.

  — Acabei de acordar, já estou melhor. – fez que ia dizer alguma coisa ao olhar para mim, mas então notou a posição da mulher. — Mãe? – seu semblante se tornou preocupado de repente. — O que aconteceu?

  — Cranks. O que você acha? – Mallory replicou quando ele foi se abaixar na sua frente.

 O rapaz era muito mais alto que ela, mas parecia ter a minha idade. Seus ombros eram largos e, mesmo com a sensação de que me era familiar, não me recordava de alguém com traços faciais tão robustos e ainda gentis. Senti que poderia encará-lo por dias, e nunca o reconheceria.

  —... Vocês estavam juntos, como isso aconteceu? Você tinha o revólver...

  — Eu sei... Mas fui pega de surpresa, e os infectados eram jovens. – Mallory acariciava o rosto do garoto, claramente tentando não desabar no choro. O tom de voz dela era quase indescritível; falava como se o ocorrido não passasse de algo que pudesse ser consertado depois.

 Ele abaixou a cabeça, em silêncio e de olhos fechados, parecendo também tentar não chorar. Aparentemente, os dois conheciam as pessoas mortas no beco.

  — Certo, tudo bem, mas... Você está bem, não é? Tinha a máscara e por mais perto que o Crank estivesse...

 A mulher começou a negar com a cabeça, agora entrelaçando seus dedos no cabelo preto dele, um meio sorriso forçado em seus lábios. O rapaz foi tomado pela incredulidade.

  — Escute, você precisa manter a calma. – ela murmurou e ele balançava a cabeça para os lados, seu corpo se contraindo em soluços.

 Passei a mão pelo meu rosto ao perceber que meus olhos estavam marejados e respirei fundo para me conter. Até então, não havia desejado tanto ir embora.

 Comecei a recuar devagar, na tentativa de sair sem ser notada, até para dar privacidade a eles.  

  — Vai dar tudo certo. Quanto menos nos estressarmos, melhor vai ser... – Mallory dizia ao filho, que a deixava acariciar suas costas, quando de repente ela ergueu a cabeça para mim. — Obrigada. Se está tentando ir embora sem receber nada em troca, realmente teve boa intenção.

 Lancei-a um sorriso singelo, ainda que constrangida por ter sido percebida. Ela respirou fundo, como se dissesse a si mesma que tudo ficaria bem, e segurou o queixo do garoto para fazê-lo encará-la.

  — Vamos lá, ainda não estou morta, okay? Não é o fim do mundo, Narsh.

 Pude ver o meio sorriso dele, talvez pelo jeito que ela o chamara ou pela contradição na frase. Ele fungou algumas vezes e sentou-se ao lado dela, estalando as juntas dos dedos.

  — Você parece bem ruim aí atrás. – Mallory comentou num tom diferente, descontraído, apontando para mim.

  — Eu... tive um acidente. – respondi.

  — Deve ter muita sorte para escapar de um acidente que te deixa assim. – o rapaz disse.

  — Que bom que tem alguém para ficar com você. – falei para Mallory, decidindo não me aprofundar naquele assunto. — E sinto muito que tenha sido contaminada.  

 Após mais poucos segundos os observando, sorri levemente e me virei para sair do apartamento.

  — Não devia andar sozinha por essa cidade hoje, moça. – parei ao ouvir a voz dela de novo e respirei fundo para manter a paciência. Eu podia simplesmente sair correndo, porque começava a acha-los muito estranhos, mas, no fundo, queria adiar o momento em que checaria o aparelho no meu bolso.

 Voltei-me para eles, tentando ficar inexpressiva.

  — Já enfrentei coisa pior.

  — O CRUEL, eu entendo. Só quero retribuir o favor. De qualquer forma, não é todo dia que se encontra alguém que sabe o que é isso. – ela ergueu o frasco do remédio antigo que eu havia usado em seu ferimento.


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