Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 15
Nunca vá para o Labirinto


Notas iniciais do capítulo

Heey, olha quem voltou um pouco mais cedo ^^
As coisas vão esquentar desta vez.

Agradecimentos a Unicórnia por ter adicionado a fanfic aos favoritos e novamente às meninas que comentaram no capítulo anterior! *-* ♥ ♥

Boa Leitura!



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 Eu corria dentro de uma casa, escada acima, desesperada. Sons horríveis vinham de um quarto, sons que eu conhecia. Berros animalescos vindos de alguém, mortais e doentios. Costumavam fazer parte dos meus pesadelos. Sempre me faziam sentir cheiro de pimenta ou ver a cor vermelho sangue. Entrei no quarto, o mesmo com o qual eu tinha sonhado na Clareira, e deparei-me com uma mulher de costas, mal cuidada, de aparentemente mais de quarenta anos, debatendo-se contra os braços de um homem que chorava. Ele parecia implorar por algo, mas não era possível ouvir com os gritos. Ele olhou para mim e seus olhos arregalaram-se de horror. Ela era minha mãe... Talvez ele fosse meu pai. Seus braços lutaram com mais força contra a mulher, segurando os dela para mantê-la longe. Ele tinha total capacidade de nocauteá-la, mas não o fazia.

 Meus olhos se voltaram para o armário ao meu lado. Alguém observava tudo amedrontado, a porta mal fechada. Aproximei-me e a abri o suficiente para reconhecer Herman. Ele tremia e chorava. O que ele estava fazendo ali? Ele havia dito que subiria para ajudar o homem! Mas ele não estava fazendo nada!  

  Entre... – li os lábios do homem sussurrarem, olhando para mim em pânico.  

 Balancei a cabeça em negação. Alguém precisava fazer alguma coisa. Se meu irmão mais velho não faria...

 Vi-me puxando a corrente que prendia-se ao tornozelo da mulher, derrubando-a com um baque surdo. Ela logo me viu. Nenhuma imagem poderia ter sido mais perturbadora. Minha mãe tinha toda a pele clara em carne viva, sangrando, marcada por cicatrizes profundas e feridas que ainda não haviam se curado. A boca estava deformada, as veias saltavam de todo lugar, vermelhas, roxas, azuis, até negras. Os olhos estavam vermelhos, sedentos, as pupilas dilatadas. Uma maníaca. Um animal. Pude chamar de qualquer coisa; eu não estava de frente para um ser humano.

  Querida, querida, querida... Querida, querida, querida... Querida, querida, querida... – ela dizia roucamente.  

 Uma espécie de estaca estava largada no chão, então agarrei-a e estiquei na minha frente para mantê-la longe. Com apenas um movimento eu poderia mata-la, acabar com o sofrimento pelo qual todos nós passávamos. Eu sentia isso. Ela berrou e atirou-se sobre mim. Apertei mais a estaca, em posição para atingi-la. No último instante, o homem agarrou minha mãe pelas roupas e jogou-a no chão, afastando-a de nós. Vi-o virar-se para mim e dizer alguma coisa, mas ela retornava. Usei a estaca para tirá-lo do caminho e  fui atirada no chão. Senti algo rasgar meu braço e irromper sangue. Ela estava por cima de mim, debatendo os braços, a garganta soltando grunhidos raivosos, os dentes mal cheirosos batendo, querendo morder. As lágrimas inundavam meu rosto. Eu segurava em sua camisa na altura do peito para que ela não me esmagasse nem conseguisse me ferir, mas sentia minhas forças indo embora com a perda de sangue e a dor lancinante. Não tive tempo de desviar o olhar para procurar uma arma. O homem tornou a afastá-la. Mas a força descomunal dela ajudou para que se livrasse e o empurrasse no chão, ficando por cima com os dentes batendo outra vez. Por alguma razão, eu entendia a falta de reação dele, e só pensava em tomar a iniciativa de acabar com aquilo.

 Pus a mão sobre o ferimento no braço, sem tirar os olhos deles, e senti uma grande abertura. As lágrimas não paravam de descer pelo rosto do homem. De repente, ele soltou os braços dela. Parou de lutar. No instante seguinte, as unhas sujas e a boca mórbida atacavam-no.

 Eu gritei e tentei usar meu peso para conseguir empurrá-la para longe, mas seus dentes estavam bem firmes no pescoço dele. Ouvi o som da mastigação. Grunhidos escapavam da minha garganta enquanto eu me esforçava, tentando não olhar para a poça de sangue que se formava.

  Ajude... – eu murmurei suplicante, olhando para a fresta do armário, encarando os olhos aterrorizados de Herman. Agarrei a estaca no chão e usei o lado despontado para golpeá-la nas costelas para que se afastasse. Não adiantou nada.

 A porta do armário se abriu e meu irmão saiu, tremendo da cabeça aos pés, torcendo as mãos. Eu estava prestes a dizer a ele o que fazer, quando de repente o vi correr para fora do quarto. Eu berrei para que voltasse, mas ele não apareceu mais. Levantei e apertei a estaca nas mãos, e atingi a cabeça de minha mãe com tudo. Ela me encarou, a boca ensanguentada, arregaçada num berro raivoso. Vi que suas mãos seguravam algo. Lancei-me para o lado assim que as vi largarem o que quer que fosse, e ela bateu na cama ao investir contra mim. Arrastei-me e me pus de pé. O corpo do homem estava imóvel. Quis conferir para saber se estava bem, mas meus olhos não se desprendiam da mulher. Ela avançou outra vez e corri dali.

 A próxima coisa que a Transformação havia mostrado era eu desferindo tapas desengonçados em meu irmão na cozinha, chorando de raiva. Nossa mãe apareceu à porta e ele logo agarrou uma arma, apontou para ela e disparou. Soubemos que havia errado quando ela avançou. Ele empurrou-me com força e passou para o outro lado da bancada. Eu abaixei-me. Os braços esticados dela não me encontraram e aproveitei para empurrar as costas dela, derrubando-a, pressionando os braços e as pernas contra o chão.

  Querida, querida, querida... Querida, querida, querida... – ela repetia maniacamente.

 Herman aproximou-se de nós, a arma trêmula numa das mãos, apontada para a cabeça da mulher.

  Atire! – eu gritei, encarando-o com o ódio à flor da pele.

  Querida, querida, querida... Querida, querida, querida...

 Ele soluçou, chorando, o rosto molhado pelas lágrimas.

  Mãe, por favor... – murmurou, a tremedeira aumentando.

 A movimentação que se seguiu não ficou clara. Só entendi quando a arma estava em minhas mãos, mas a mulher conseguiu empurrar meus braços para cima. Apertei o gatilho com o susto e meu irmão sobressaltou-se, a mão próxima da clavícula e do ombro. Nossa mãe abanou os braços sobre mim, formando arranhões no meu rosto. Ergui a arma, mas ela abriu a boca doentia e hesitei por um milésimo de segundo. Foi o suficiente para ela notar meu irmão encolhido, gemendo, impotente. O tempo parecia passar em câmera lenta. Era mais fácil para ela atacar ele do que a mim. Não soube se ela estava sã o suficiente para perceber isso, mas previ o que ela faria. Apontei a arma para ele, que arregalou os olhos. Ela atacou-o em seguida e não tive como errar ao puxar o gatilho desta vez.

 Newt ficou em silêncio quando terminei o confuso relato. As coisas ainda não eram muito claras, mas eu sabia que essa era a lembrança mais profunda que a Transformação havia me trazido. Era a mais significativa. Concentrada em contar tudo a ele de modo que fizesse sentido, as lágrimas só retornaram ao fim da narração, com um cheiro forte de pimenta. Apoiei minha cabeça na árvore, encarando as folhas acima de nós, ouvindo apenas o silêncio dele digerindo a história.

  — Sinto muito. – Newt disse.

  — Não sinta, uma hora eu o mato. – falei indiferente, sem mover os olhos.

  — Nelly, isso não faz diferença.

  — Claro que faz diferença, Newt! – repliquei e o fitei. — Ele fugiu, não fez nada, só me empurrou para se salvar! Ele vai fazer de novo, não podemos contar com ele.

  — Você vai ser banida. – ele apoiou-se na mão para me encarar mais de perto, o tom mais grave e mais sério que o normal. — E eu não vou poder te ajudar. Não importa o que ele fez, Nelly, não importa o que nenhum de nós fez. As pessoas que éramos antes do Labirinto, elas nem existem mais. Só o que importa é o que somos e o que vamos fazer agora.

 Devolvi o olhar dele, cansada. Tínhamos dormido de qualquer jeito na floresta. A luz do sol da manhã batia nos olhos dele e os faziam brilhar de modo descomunal. Ele estava me dando o mesmo conselho que dei a mim mesma semanas antes. Senti um conforto quente acalmar meu peito, aliviar a angústia. Eu já o encarava por bastante tempo.

 Newt abriu a boca e seus olhos correram meu rosto. Qualquer coisa que quisesse dizer escapava em sons cortados da garganta.

  — Precisamos voltar pra lá. – disse por fim.

 Voltei minha cabeça para frente e encarei minhas unhas, um pouco sujas do sangue seco de Herman. Eu sabia que nada me faria voltar para lá tão rápido, e a verdade de que ele precisava mesmo ir me assolou.

  — À vontade. – respondi. — Vou ficar mais próxima da Clareira, para o caso de precisarem.

  — Nós precisamos. – disse imediatamente, mas então baixou os ombros e seu olhar tornou-se vacilante. Eu quis dar um mínimo sorriso, mesmo que fosse forçado, mas não soube se tinha conseguido.

  — Obrigada. De verdade.

 Eu não soube o que aquilo realmente queria dizer e voltei a encarar minhas unhas, sem me preocupar se ele teria entendido ou não. Eu era grata a ele tanto quanto eu era a Thomas, apenas de um jeito diferente.

 Newt foi embora e achei que eu cairia em lágrimas no instante seguinte. Contudo, apenas deitei no chão com a cabeça apoiada no braço, deixando meus olhos cederem ao cansaço.

 Ele voltou duas vezes ao longo do dia para me trazer comida e meu saco de dormir, dizendo não ter contado a ninguém onde eu estava. Eu duvidei e, mesmo que fosse verdade, com certeza alguém havia reparado para onde ele ia com aquelas coisas. Eu tinha me afastado do fim do Campo-Santo, escolhendo um lugar perto do cemitério. Já era perto o suficiente para que eu pudesse acudir alguém e a cada segundo eu ficava satisfeita por não ouvir alguém gritar.

 Ao fim do dia, Newt estava outra vez sentado ao meu lado. Eu estava deitada com a cabeça apoiada em sua bainha no chão. Fazia vários minutos que estávamos em silêncio, ouvindo apenas os próprios pensamentos. Era como se nem precisássemos falar, pois toda vez que um assunto começava, tinha a ver com o que o outro estivera pensando. Ficar apenas sob a companhia dele estava sendo mais que o suficiente por aquele dia.

  — Você tem razão, é patético. – Newt disse de repente. Esperei que ele continuasse, acompanhando a linha amarela que sumia aos poucos, até olhar para ele, instigando-o. — O Novato. Voltou com a pose de medroso depois que você veio para cá e estava tremendo na hora de entrar no Labirinto. Acho que ele soube o que você faria se não fosse pelo autocontrole.

 Balancei a cabeça em negação, distraída.

  — Ele só tem sorte de estar aqui. Teria matado ele de qualquer jeito se estivéssemos em outro lugar. – afirmei.

 Ele baixou os olhos para o chão.

  — Acho que Gally o ajudou. – disse.

  — Por quê? – franzi as sobrancelhas, pois não notei nada que Gally pudesse ter feito para se entregar depois que Herman começara com as provocações.

  — Ele meio que admitiu hoje. – Newt voltou-se para frente, mexendo numa folha em suas mãos, e pude ver seu rosto corado, mas não pelo cansaço do trabalho.

  — O que aconteceu?

  — SOCORRO!— alguém berrou e nós dois nos levantamos num salto. Olhamos na direção da Clareira e disparamos até lá.

 O céu estava azul anil, a claridade começava a ser pouca, mas ainda assim conseguimos distinguir o pandemônio em que se encontrava o lugar. Alguns garotos berravam, corriam e apontavam para a Casa dos Mapas. Alby tentava acalmar um deles que parecia querer explicar alguma coisa.

 Newt deu um passo na direção deles para saber do que se tratava, mas segurei seu braço ao ver a resposta com meus próprios olhos. O Verdugo, antes morto, dissecado, aparentemente sem conserto, acabava de romper rolando pela porta da Casa. Todos que estavam próximos correram para longe. Ele não parou de rolar em momento algum; estava sem as armas, não havia motivo para tal. Mesmo assim, eu compreendia totalmente o instinto dos garotos de gritar ao ver aquela coisa tão perto. E por alguma razão sentia gosto de chocolate amargo.

 Vi alguém correndo na direção de uma das Portas, justamente a mesma para a qual o Verdugo o seguia atrás. Pensei ter reconhecido o garoto de costas, mas não tive certeza. Aliás, não importava. Que maldito trolho correria para o Labirinto logo quando as Portas estavam prestes a se fechar? Logo quando todos os Corredores já haviam saído?

  — Mike? – falei sozinha, em dúvida, achando que assim ficaria claro quem era. Mas quando me dei conta já tinha dado um passo na direção daquela Porta, e então eu estava correndo.

  — Nelly! O que está fazendo?! – Newt gritou e gritou mais alguma coisa que não consegui entender, pois o estrondo dos muros movendo-se me distraiu.

 Forcei minhas pernas a irem mais rápido. A bainha de Newt estava firmemente segura na minha mão; Mike teria muito mais chances com aquilo do que de mãos vazias. Pensei em me aproximar o suficiente da Porta para que eu pudesse atirar a bainha, mas havia o risco do Verdugo pegá-lo antes de Mike, e as paredes já estavam muito próximas umas das outras; não daria tempo de parar, jogá-la e ela atravessar todo o corredor sem que fosse esmagada antes.

  — Mértila... – sussurrei entre o ofego.

 Eu já estava muito perto. Pude ver Gally mais a frente, perto do muro, mas muito longe da entrada, encarando-me ansioso. E então, ele começou a correr perpendicularmente a mim. Ele tentaria impedir que eu entrasse, tive certeza. Era estranho que tentasse me ajudar depois do modo que me tratou, mas claramente era o estava fazendo.

 Faltavam poucos metros. Se eu não fizesse alguma coisa, Gally chocaria seu corpo contra o meu. Cruzei o restante do espaço mais rápido do que imaginara. Virei o corpo para o lado para passar pelo agora estreito corredor do Labirinto. Senti a mão de Gally tocar a minha, um ligeiro gosto doce familiar visitando minha boca brevemente, mas abanei-a e consegui me livrar. Corri de lado, desesperada, minha respiração contra a parede. Meu medo nunca havia sido tão grande. Morrer esmagada talvez estivesse na lista das piores formas de morrer.

 Agarrei a quina do fim do corredor e me puxei para fora, meu busto quase me prendendo, meu pé sendo pressionado de verdade no último segundo. Cambaleei para trás, vendo as paredes tocarem-se, formando mais um estrondo. Não acreditei ter ficado presa ali outra vez.

 Com meu coração começando a bater mais forte, virei-me e vi o corredor vazio. Passei o cinto da bainha pelo meu peito e minhas costas e tirei o facão de lá, apertando-o na mão com força. Nunca tinha me sentido tão incerta sobre o que poderia acontecer. Thomas era experiente e não estava ali daquela vez, mas eu tinha me virado de qualquer jeito antes de encontra-lo. E as coisas estavam mudando, talvez os Criadores fossem ter piedade e diminuiriam a quantidade de Verdugos.

 A ideia era tão estúpida que decidi me esforçar para melhorar o otimismo antes que morresse por ilusões toscas.

 Segui o rastro da gosma que o Verdugo deixou ao rolar, certa de que encontraria Mike de um jeito ou de outro; torci para que não tivesse sido estraçalhado por Verdugos que já tivessem aparecido. Arranquei a hera do muro durante o caminho, deixando-a para trás a cada passo que eu dava. Se sobrevivêssemos correndo dos Verdugos a noite toda, pelo menos não teríamos dificuldade em voltar.

 A corrida durou vários minutos, por isso agradeci mentalmente a Minho por ter me ensinado a deixar as migalhas de pão durante a pressa. A gosma levou-me de volta ao corredor do Penhasco. Ouvi os gemidos que tanto me assustavam e escondi-me atrás da quina. Fechei os olhos e concentrei-me em não fazer barulho com a respiração pesada, enquanto ouvia o Verdugo passar por uma entrada, bem distante de mim, até ter se afastado o suficiente.

 Atravessei o corredor, entrei no campo escuro que levava ao Penhasco, vi o rastro seguindo até a borda, e ouvi um chiado de desespero. Virei-me imediatamente e minha decepção não poderia ter sido maior. Quantos tinham tido a ideia estúpida de entrar no Labirinto?

  — O que faz aqui? – perguntei a Herman, que tremia da cabeça aos pés.

  — E-eu entrei.

  — Onde está o Mike?

  — Quê...? Não sei, não o vi.

  — Como não o viu?! – exclamei e cortei a fala quase antes de termina-la, fechando os olhos por um momento para não perder o controle em meio ao tamanho perigo. — O Verdugo o seguiu até aqui, ele entrou pela Porta Norte. – sussurrei irritada.

  — Eu entrei pela Porta Norte.  

 Franzi as sobrancelhas numa expressão de perplexidade, horror e descrença. E então, com poucos movimentos, prendi-o contra o muro, o facão em sua garganta.

  — Estamos presos aqui, Novato. Fale a verdade, ou mato você e te jogo do Penhasco. Ninguém vai poder me culpar. – chiei.

  — Eu juro... – ele sussurrou desesperado, olhando para o facão com os olhos arregalados. O gosto azedo misturava-se com xarope. — O Verdugo me seguiu e não consegui ver mais nada.

  — Vire-se. – falei e puxei sua camisa para obriga-lo antes que obedecesse. Recuei vários passos para ter uma visão melhor, para ter certeza de quem eu tinha visto entrar. Era muito provável que ele estivesse mentindo para provavelmente acobertar ter deixado Mike em algum lugar. Mas não. A raiva que senti foi de mim mesma. De alguma forma, consegui confundir Herman com Mike. Os dois tinham ombros muito largos e eram altos, mas não tive a maldita capacidade de diferenciar os torsos, já que Mike tinha a cintura mais fina. Tentei me acalmar, dizer a mim mesma que, no desespero do que acontecia, não havia como ter certeza. Contudo, isso significava que eu estava presa no Labirinto com Verdugos e, quase pior, meu irmão. — Não... – sussurrei e virei de costas para ele, correndo as unhas pelo meu cabelo.

  — O-o que vamos fazer? – gaguejou.

  — Por que entrou aqui? – indaguei com os dentes trincados e voltei a encará-lo. — Você é medroso demais para querer enfrentar o Labirinto por qualquer coisa que seja.

 Ele baixou os olhos, seu semblante tristonho. Não tínhamos tempo para nenhuma cena dramática, quase ergui o facão para deixar isso claro.

  — Queria ser picado. – Herman disse.

  — E além de medroso é burro?

  — Bom, você não queria me dar respostas e eu preciso delas.

  — Fedelho, ficar preso aqui não só te dá o direito de ser picado, também te adianta a passagem só de ida para o Inferno. Alguma advertência do Passeio entrou nessa sua cabeça de mértila?

  — Pare de ser tão metida. – pediu, evidentemente cansado.

  — Você me enfiou nessa. E estou falando a verdade. Não acredito que você conseguiu ferrar com alguém tão cedo... – murmurei, voltando o olhar para cima.

 O silêncio reinou por um tempo, o que me deu a chance de prestar atenção em tudo, esperando o som de algum Verdugo. Talvez eles não viessem para o Penhasco enquanto não precisassem ir embora e deixar o Labirinto livre para os Corredores. Foi o único pensamento que conseguiu me dar esperança de sobreviver ali outra vez.

  — Você tem um facão. – ele comentou de repente. Quis dar uma resposta afiada para ele, mas contentei-me em apenas revirar os olhos. — Teremos mais chances de sobreviver com isso, não é?

 Soltei uma risada sarcástica, o mais baixo que consegui, e cocei a ponte do nariz para me distrair da vontade de gritar o óbvio.

  — Pode entrar em desespero, Novato. – falei. — Dependemos de puríssima sorte para sair daqui vivos.

  — Mas você sobreviveu uma vez.

  — Thomas foi o único responsável por isso.

  — Mas você se livrou de dois Verdugos...

  — Maldito trolho... – murmurei impaciente, interrompendo-o. — Escute bem o que vou dizer: se eu não tenho chances, você muito menos. Só tenho uma boa notícia para te dar. Você quer a Picada, e vou fazer questão que a receba, se houver oportunidade.

 Os olhos dele voltaram-se para o facão, receosos, depois fitaram meus olhos. Talvez ele descobrisse o parentesco, talvez não. De qualquer forma, descobriria também como era covarde, e uma das coisas que eu mais queria era que ele sentisse toda a vergonha que deveria por isso.

 Permanecemos ali perto do Penhasco por bastante tempo. Eu não tinha nenhum plano além de correr como uma maluca pelo Labirinto até que as Portas se abrissem. Não havia nenhum recurso que permitisse um plano melhor. Ou eu não estava sendo suficientemente capaz de pensar em alguma coisa. Estava preocupada com a presença do Novato. Ele não sairia de perto de mim, eu sabia disso; eu era a veterana. Por isso e por outros motivos óbvios, eu não poderia pensar por um segundo sequer contar com a ajuda dele, ou esse seria minha sentença.

 Os gemidos do Verdugo de repente retornaram. Herman ergueu-se num pulo (eu não conseguira sentar, apenas andar de um lado para o outro) e fez menção de espiar pela quina do corredor que dava para o Labirinto. Puxei-o de uma vez para trás antes que seu grande nariz desse o ar da graça do outro lado.

  — Vamos começar a correr, Novato. Vamos atravessar o corredor, descobrir de que lado ele está e então ir pelo lado oposto. Sem parar. Sem pensar. É bom que consiga fazer isso.

 Não esperei por resposta; não me importava saber se ele queria ou conseguia fazer. Guardei o facão na bainha e disparei de volta para o Labirinto. O Verdugo estava à esquerda. Vi-o apenas de relance antes de virar e começar a cruzar pelos corredores seguintes, puxando a hera dos muros e deixando-a cair atrás de mim. Tentei, mas evitar fazer muitas curvas era completamente impossível. E o Labirinto estava começando a mudar. Deparei-me com um, dois, três muros movendo-se, e precisei estacar tão repente antes de passar por eles que o Novato trombava em mim.

  — Sua área... Já reconheceu? – perguntei num sussurro entre ofegadas.

  — Não, ela fica mais a leste.

  — Deus... – suspirei e apoiei-me na parede.

 Ele fez que imitaria o gesto, mas não tivemos mais tempo para recuperar o fôlego. Um Verdugo apareceu batendo as pinças e as tesouras no fim do corredor, silvando.

  — Vai, vai! – mandei, empurrando Herman na direção oposta com força. Ele soltou um suspiro amedrontado e disparou.

 Forcei meus pés para acompanha-lo, pois, apesar da corpulência, ele corria quase tão bem quanto Thomas. Viramos em mais corredores e por bastante tempo nada passou pela minha cabeça além de mover as pernas cada vez mais rápido. No entanto, eu pensei “Isso pode piorar e ele subir pelas paredes”. Pois foi exatamente o que o Verdugo fez logo depois.

 Vi-o subindo e passando ao meu lado direito. Havia um corredor ali, no qual eu entrei, no mesmo instante em que o animal saltava e parava na frente de Herman, obrigando-o a derrapar. Escondi-me atrás da quina, o peito subindo e descendo rapidamente. Prendi a respiração e a soltei pela boca. Ele encarava o Verdugo, horrorizado.

  — Quando eu disser, você corre por aonde viemos. – murmurei baixo para que a coisa não procurasse por mim. Herman deixou claro que não confiava nas minhas palavras, negando com a cabeça energicamente, um gemido agudo vindo de sua garganta. Tirei o facão da bainha num movimento amplo para que ele notasse. Pude ouvir o Verdugo aproximando-se devagar. — Um... dois... – a sombra do corpo viscoso sob a lua ficou visível. — três!

 O Verdugo chiou e atacou. Herman berrou e disparou para onde eu estava, provavelmente preferindo a presença da arma a ficar sozinho. Não tive tempo de xingá-lo. Assim que o Verdugo postou-se na nossa frente, usei o facão para atacar a primeira pinça que ele ergueu, afastando-a do caminho para poder pisar na serra elétrica desligada e impulsionar-me para ficar atrás. Pisei de mau jeito no corpo pegajoso dele e escorreguei, sacudindo-me para todo lado. O medo de algo me atingir durou pouco, pois logo eu pisava no chão outra vez, cambaleante. O corredor era estreito para o Verdugo virar-se rápido, então tive tempo de erguer o facão e cravar nele. A lâmina escorregou para dentro com extrema facilidade e cheguei a pensar que aquilo seria tão útil quanto acertar um monstro de gelatina. Puxei o cabo para perto de mim, rasgando a pele e liberando o líquido amarelado. As armas metálicas debateram-se por um tempo antes de sossegarem de vez e o animal desmontar no chão.

 Olhei para o Novato e fiz um gesto amplo e cínico para que ele passasse pelo Verdugo e continuássemos a caminhada.

 Após mais um longo tempo, em que precisamos fugir de três Verdugos, mas, felizmente, sem precisar chegar perto e mata-los, conferi o relógio dele e vi que tínhamos mais cinco horas pela frente. Voltamos todo o caminho percorrido seguindo a hera deixada no chão, sempre correndo, sem trocar uma palavra sequer. Confirmei a probabilidade de encontrar Verdugos que estivessem seguindo o rastro em quatro vezes que nos deparamos com eles. Sem dúvidas, aquelas estavam sendo as horas mais cansativas da minha vida.

 Eu suava por todo o corpo, precisava secar as mãos toda hora para conseguir segurar o facão com firmeza e muitas vezes me vi quase desmoronando no chão para descansar um pouco, enquanto nenhum Verdugo aparecia. Eu e Herman chegamos a ficar tontos em alguns momentos, precisando realmente parar. Resolvi ignorar as semelhanças biológicas com ele. Não conseguia chama-lo de irmão sem me sentir estranha ou falsa, nem lidar com o fato de que, na verdade, eu e ele tínhamos a mesma chance de sobrevivência ali. Mas eu sairia. Faria de tudo para sair, independente dele. Não houve um instante em que ele fizera menção de me ajudar. Herman assistia a tudo o que eu fazia, plantado no lugar com a típica expressão de horror no rosto, como se fosse apenas a cena de um filme.

 Após conseguir encurralar um Verdugo enquanto um muro movia-se, apoiei-me na parede para recuperar o fôlego; o ato já era tão comum que eu fazia sem perceber.

  — Conseguimos. – Herman disse do nada, uma nota de perplexidade na garganta.

  — O quê? – indaguei com o rosto franzido em desprezo; em nenhum momento ele havia conseguido alguma coisa.

  — Falta uma hora até as Portas se abrirem. – informou e atirei-me sobre seu braço, trazendo-o para perto para verificar as horas. Senti meus olhos marejarem. Percebi que há muito tempo eu pensava que aquilo seria uma luta eterna. Tinha esquecido que haveria fim.

  — Só significa que as chances de encontrarmos Verdugos são menores até lá. – falei, mais para arrancar o alívio dele do que por realmente acreditar no que estava dizendo.  

 Recomecei a andar, ouvindo-o logo atrás de mim. Mais tarde, viramos num corredor, ainda seguindo a hera, e felizmente encontramos a entrada para a Clareira à nossa esquerda. Seria um momento de felicidade, se ela não estivesse fechada com um Verdugo bem na frente e, nesse caso, a apenas um metro de nós.

 O animal silvou e desferiu a serra elétrica ligada na nossa direção. Com um grito, abri os braços e recuei rapidamente, tentando afastar Herman da entrada. No entanto, ele não se afastou e acabei caindo com o movimento que ele fez. Ele agarrou-me pela camisa e me ergueu com brutalidade, pondo-me na sua frente como um escudo.

  — O facão! Pegue o maldito facão! – gritou e segui o conselho, desejando acertar o gume acidentalmente nele.

 Ele começou a me puxar para trás, andando, virando no corredor pelo qual tínhamos vindo. O Verdugo desferiu algumas armas sobre mim e só consegui me abaixar e desviar de mau jeito, movimentando o facão inutilmente; Herman era imbecil a ponto de desviar também, segurando na minha camisa e consequentemente me atrapalhando, mesmo comigo bem mais propensa a ser atingida do que ele.

 Alcançamos o outro corredor, por onde poderíamos correr livremente. Avancei para fugir, esperando que o Novato me soltasse e fizesse o mesmo; mas pelo contrário. Ele me puxou de volta com extrema força e correu. Bati o ombro violentamente no chão de pedra, sem conseguir conter um grito com a dor. O som da serra me fez olhar para cima, a tempo de poder rolar para o lado e esquivar-me da investida de uma das agulhas. Arrastei-me para longe imediatamente e então me levantei e disparei pelo corredor oposto ao que Herman seguiu.

 A perseguição com o Verdugo me apavorava. Eu era o único alvo agora.

 Tentei seguir na direção da Porta da Clareira o máximo possível, mas não demorou até que o instinto de sobrevivência me obrigasse a fazer cegamente qualquer coisa para não ser pega. E os corredores logo fizeram eu me perder de vez. Eu seguia qualquer caminho que não me levasse a ser o café da manhã do Verdugo.

 Eu estava quase desmontando no chão de cansaço. Meu corpo inteiro estava dolorido. Enfim, o familiar estrondo da abertura dos muros ribombou pelo Labirinto, e ainda provocou o Verdugo; ele silvou e os sons de suas armas tornaram-se mais ameaçadoras.

 Eu estava prestes a virar num próximo corredor, quando Herman veio por outro e chocou seu corpo pesado contra o meu, arremessando-me longe. Achei que meu braço se partiria de tanta dor. E que minha cabeça quebraria ao meio com o choque da pedra. Mal tinha sentado, tonta, sem mal saber quem eu era, quando o Verdugo apareceu e Herman passou por mim correndo, pisando na minha mão e pegando o facão. Com extremo esforço, levantei e o segui.

 Ele virava nos corredores com muita segurança, provavelmente estávamos na área dele. Por que o Verdugo não ia embora? Não era certo que ficasse ali quando os Clareanos entrassem.

 Herman virou à esquerda e sumiu. Assim que fiz o mesmo, ele agarrou-me pela blusa e me virou de volta, na direção da onde o Verdugo apareceria.

  — Seu problema comigo vai acabar agora. – murmurou raivosamente. Eu podia sentir a lâmina do facão contra as minhas costas. O Verdugo não devia estar mais longe que dez metros.

 Ergui meu calcanhar e acertei Herman entre as pernas, agarrando o cabelo dele e batendo-o contra o muro. Seu nariz estalou e sua garganta liberou um grunhido. Voltei-o para mim e, inclinando meu corpo, acertei uma cotovelada em seu queixo. O corpo dele caiu totalmente estático. O Verdugo não se daria o trabalho de pegar nós dois.

 Saí dali dando uma última olhada neles; Herman estava a um segundo de ganhar a Picada que desejava, ou mais que isso.

 Mais rápido do que pude esperar, deparei-me com a Porta para a Clareira totalmente aberta. Consegui ver três garotos na entrada e logo reconheci Alby e dois Corredores. Desacelerei os passos pouco antes de me virem. Alby veio até mim a passos duros.

  — Socorristas! – gritou por cima de ombro e suspirei aliviada. — Levem-no para a Sede. – disse aos Corredores e pôs a mão nas minhas costas, empurrando-me com força para frente. — Se tentar fugir, vai sentir o gosto do próprio veneno. Direto para o Amansador.

  — O quê?! Alby...

 Ele empurrou-me de novo. O olhar assustado dos dois garotos fez a ficha cair com a cor preta manchando minha visão sombriamente. As Portas tinham acabado de se abrir; os Corredores não perdiam um segundo para entrar; e estavam muito próximos da onde acertei Herman.


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Notas finais do capítulo

Logo aí já vemos a regra de não machucar outro Clareano sendo quebrada... O que acham que vai acontecer? E sobre a lembrança da Nelly, hum?
Comentem para eu saber o que acharam! ♥

Até o próximo ^^



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