Socorristas escrita por BlueBlack


Capítulo 14
À beira do cúmulo


Notas iniciais do capítulo

Hey, i'm back!

Agradecimentos cheios de amor a O lado bom do yaoi, Unicórnia e Sra Stilinski por terem comentado no cap anterior ♥ *-*

Boa Leitura!



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O segundo dia trabalhando no Verdugo não foi animador, assim como o terceiro e o quarto. Não havia nada de mais no lugar onde se prendiam as armas, nem na fissura onde Thomas o golpeara, e a carne era apenas carne. A única coisa que havia de minimamente interessante era uma alavanca numa das extremidades, que quando puxei fez o corpo do Verdugo remexer, mas nada além disso. Eu estava sempre sentindo cheiro de fritura ao tocá-lo, e ao ver os besouros mecânicos rondando por ali ficava pior, com o gosto de limão. Eles viviam aparecendo pela Casa dos Mapas quando eu estava ali, para provavelmente dar diversão aos Criadores. Sentia-me cada vez mais patética naquela tarefa. Além disso, eu já havia perdido a chance de cuidar de alguém naquele dia por causa daquilo, após Alby ter dito que Jeff e Clint davam conta sozinhos e que não era nada de mais. Eu havia aguentado aquilo até o limite apenas por causa de Newt, que pedira com os olhos para eu ter paciência; mas já não havia o que fazer.

Gally e Caçarola perguntavam por que eu não era vista trabalhando em nada quando precisavam de mim nas suas áreas e eu não fazia ideia de qual desculpa Alby dava.

Perto do fim do dia, achando justo pelo menos terminar o expediente, coloquei todas as armas do Verdugo dentro de uma vasilha e, deixando-o largado lá, saí da Casa dos Mapas com ela. Ouvi murmúrios vindos do lado de fora e pude ver um amontoado de garotos ao redor de Alby. Eu teria sorrido vitoriosa se não fosse pelo rancor. Caminhei até eles e empurrei o recipiente para os braços de Alby. Notei a surpresa particular no rosto de Gally ao encarar as armas.

 — Não tem mais nada para ver. Se quer aproveitar alguma coisa, posso usar tudo isso pra fazer um estrago em você. — murmurei raivosa ao líder e fiz que me viraria para sair.

 — Que mértila é essa? — Gally indagou, a cor magenta mais escura que o normal.

 — Por que ela estava com as armas dos Verdugos? — outro garoto questionou.

 — Porque tem um morto na Casa dos Mapas. — respondi prontamente e lancei um último olhar sério a Alby antes de sair.

Ao contrário do que eu havia imaginado, ninguém pareceu ter curiosidade em verificar se a notícia era verdadeira. Contudo, Alby não teve sossego o resto da noite, ainda mais quando os Corredores chegaram e ficaram sabendo.

 — Ele está com muito plong na cabeça desde que passou pela Transformação. — Minho comentou irritado, reunido a mim e alguns outros na entrada do Campo Santo enquanto o jantar terminava.

 — Podia haver alguma coisa. — Newt disse.

 — Corta essa! Os Criadores podiam tê-lo ativado para nos atacar de novo enquanto dormíamos! Mas acho que ele não está muito preocupado, desde que não precise sair daqui.  

 — Não deveriam devolvê-lo ao Labirinto? — Chuck falou pela primeira vez desde que chegou, a voz aguda e muito baixa, a cor marrom bem clara.

 — Relaxe, eu dissequei ele. — respondi, dando palmadinhas em suas costas. — Não tem nenhuma chance de voltar à vida, até acertei mais uns golpes que aprendi com Thomas. — acrescentei sorrindo divertida e Thomas balançou a cabeça com um sorriso forçado e breve.

 — Descobriu mais alguma coisa sobre a Picada? — Mike perguntou.

 — Tem um dispositivo nas agulhas, é só. E parece ser recarregável.

 — Então... os Criadores podem entrar no Labirinto durante a noite. — Thomas disse repentinamente excitado.

 — Ou os Verdugos saem. — Newt emendou. — Antes que diga, ainda não é hora de ficar lá.  

 — E quando vai ser? — Minho replicou.

 — Quando as coisas voltarem ao normal. — ele frisou com a cabeça inclinada em impaciência.

 — Você sabe se vão voltar? — perguntei, fingindo interesse.

 — Precisam voltar. Eles não podem esperar que a gente arrisque as coisas assim.

 — Eles não estão nem aí, Newt. Mandaram um Verdugo no meio do dia, será que não lembra? Tirei você da frente dele.

 — Eu não pedi para fazer isso.

 — Claro, que trolho vai pedir uma coisa dessas a alguém?! — exclamei e meu corpo esquentou com a raiva. A expressão dele continuava dura, mas sem um pingo de ameaça, por isso perdi totalmente a guarda. Envergonhada por ter mencionado o ocorrido como se ele me devesse alguma coisa, saí do círculo e caminhei até a Sede para pegar minhas coisas e ir dormir. Brigar com ele já estava fazendo eu me sentir mal, principalmente porque ele não revidava.

 — Foi impressionante o que você fez. — Herman disse assim que entrei na Sede. A posição dele de braços cruzados apoiado na escada era assustadora, supondo que estivesse me esperando.

 — O quê? — disse ríspida.

 — Ficar sozinha com um Verdugo por tanto tempo... Ter salvado Carl de uma coisa daquelas...

 — É, sorte a sua não ser Socorrista. Ou nossa.

Peguei meu saco de dormir enrolado num canto e me virei para ir embora.

 — Nelly...

 — Não me chame assim! — gritei ao me voltar para ele, apertando as unhas no colchonete. Não dei chance para o Novato falar mais nada e bati a porta ao sair.

 

Na manhã do dia seguinte dediquei-me a dar banho em Tagarela. Era a única coisa que me manteria longe dos outros em pensamento.

 —... e eu não sei por que eu fico tão irritada, mas odiei ter falado aquilo. Afinal, por que ele precisa ser tão irritante o tempo todo? Defendendo o Alby... Acha que devo pedir desculpas? — ergui a cabeça dele na minha direção e ele abanou todo o corpo, espirrando água em mim. — Vou aceitar isso como um sim e acreditar que você é um cachorro bonzinho. Depois peço desculpas, não acho que ele vá dar falta...

Parei de esfrega-lo ao finalmente entender o porquê de eu querer ficar tão irritada com Newt mesmo quando não havia motivo. Incomodava-me o fato de eu ser indiferente para ele quando, assim como com todos, eu me preocupava com ele.

 — Supere. — falei para mim mesma. — Você sabe que isso não vai dar em nada bom.

Com um suspiro, apontei a mangueira para o meu rosto e pressionei a entrada, torcendo para que o jato de água me levasse de volta à realidade dos fatos. Eu já tinha o Novato para me preocupar.

Terminei o banho em Tagarela e me afastei mais do centro da Clareira, instigando-o a correr para que o pelo secasse e ninguém percebesse o que eu havia feito. Mais tarde, cansada e suada, ouvi alguém gritar por um Ajudante, e já estimulada corri na direção do som.

Herman não tentou mais falar comigo, apesar de continuar me lançando olhares às vezes, e ainda assim eu estava incomodada. Imaginei que com o esforço dele no Labirinto durante o dia não lhe sobrava muito para me procurar à noite, e eu só acordava muito cedo quando sabia que era necessário.

Os dias passavam e os Clareanos continuavam claramente aflitos em relação ao Verdugo guardado na Casa dos Mapas. Ninguém oferecia-se para tirá-lo de lá, no entanto; era asqueroso demais. Alguns me perguntavam sobre como eles eram tão de perto, se eu havia encontrado alguma coisa e, mesmo com o assombro pela resposta estar estampado nos olhos deles, lamentei dizer a verdade. Quis falar algo útil como “Encontrei uma pista e estamos trabalhando nela”, mas seria pior dar falsas esperanças.

Tudo, sem exceção, ficou calmo por bastante tempo. Gally não estava criando intrigas com ninguém, apesar de ter se aproximado até demais de Herman; mais nenhum Verdugo desafiou a normalidade; ninguém precisou dos Socorristas para algo grave. E ainda assim não tínhamos progresso nenhum com os Mapas. Contudo, consegui sonhar, e pela primeira vez isso conseguiu fazer eu me sentir bem.

Eu e os Clareanos estávamos enfileirados, olhando para alguma coisa, a maioria com os rostos inexpressivos. Eu sentia enquanto sonhava: tínhamos vencido o CRUEL. Era uma satisfação tão grande que quase acordei para comemorar. Uma fogueira projetou-se no meio do local, o mesmo em que fui agredida na lembrança da Transformação, e de repente a quantidade de garotos diminuiu, e estávamos num quarto. Um quarto normal, escuro, sem dúvidas melhor que os da Sede, com uma cama grande, uma cômoda, um criado-mudo, uma sacada. Havia um mural de fotos na parede e pôsteres. Era aconchegante com o calor da fogueira.

 — Você vai ficar bem. — eu garanti a alguém na cama, que parecia ser Thomas, mas também achei ser Chuck, Mike e talvez Gally. Não consegui ter certeza. Além disso, senti como se alguém tivesse dito isso para mim antes e só por essa razão fui capaz de fazer o mesmo. Um termômetro estava na minha mão.

Lembro-me de depois eu estar andando de um lado para o outro numa cozinha mal iluminada por velas. Havia alguém me observando, tão apreensivo quanto eu. De repente, olhamos na direção de um barulho de porta batendo e Thomas entrou no recinto seguido dos mesmos poucos Clareanos de antes, um bebê em seus braços, enrolado numa manta.

Aproximei-me e trouxe a criança para mim, abraçando-a com tanto alívio que achei que eu desmoronaria no chão. Virei-me para a pessoa ao meu lado, Newt, e deixei que o segurasse.

 — Fique com ele e vou ajuda-los. — falei e a típica ruga entre suas sobrancelhas se formou em incredulidade.

 — Não... Nelly... — ele disse, mas Thomas pareceu fazer o mesmo, então olhei para o Corredor com urgência. — Acabou.

De algum modo eu sabia que isso significava que teríamos uma vida normal dali em diante, sem os Criadores, sem o Labirinto, com o bebê seguro... Isso trouxe uma paz inabalável a “eu” do sonho. Eu não sabia o porquê. Mas descobri que quis ouvir isso em algum momento depois que acordasse.

Abri os olhos e vi um grande borrão agachado acima de mim, que pela forma eu soube ser Newt. Pisquei algumas vezes e seu rosto tornou-se nítido.

 — Você dorme toda torta, sabia? — ele comentou. Não consegui conter a risada que veio involuntariamente ao pensar no meu desejo após o sonho e o que realmente aconteceu; e a frase soou engraçada comparando o Newt que vi segundos antes.

 — Alguém se machucou? — indaguei, sentando-me e coçando um dos olhos para poder ver sua reação.

 — Com essa sua moleza toda, era bem provável. Mas não, vim te chamar porque todo mundo já tomou banho.

 — Ah...

Apoiei minha mão no joelho dele para me levantar e ele cambaleou para o lado, movendo os braços num reflexo e me obrigando a segurá-lo para ajudar a se erguer. O toque da mão fria dele na minha quente me fez lembrar o sonho e supor que ele tivesse dito a mim que eu ficaria bem. Fazia sentido, considerando o conforto que Newt facilmente me trazia. Quase apertei sua mão com mais força, mas ele me poupou do constrangimento ao solta-la.

 — Obrigada, vou aproveitar e ir antes que comecem a me chamar. — falei na tentativa de esquecer o sonho.

Ele assentiu com a cabeça, o rosto novamente franzido contra o sol, sem desviar o olhar ou fazer que seguiria para alguma tarefa. Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa ou pensar em algo para dizer. Newt enfim piscou algumas vezes.

 — É-é, é melhor você ir. — balbuciou, coçando a parte de trás da cabeça. As manchas de cor amarela vibravam ao redor dele.

Acenei afirmativamente e dei-lhe as costas para seguir aos vestiários, procurando pontas de pele nos lábios para arrancar.

Após o banho, fui ajudar Caçarola e Winston a tirar os mantimentos da semana da Caixa e acabei roubando uma maçã para mim antes de entrar na Cozinha. Auxiliei no almoço e o cheiro de carne claramente ficou impregnado em mim, pois Tagarela veio correndo de algum lugar e me perseguiu por bastante tempo, farejando minhas roupas toda hora. Avistei Jeff e Clint carregando um saco pesado e questionei se eles alguma vez se separavam.

Quando me dei conta de que estava indo para algum lugar, parei de falar com Tagarela e ergui a cabeça, encontrando-me nos Jardins, a poucos metros da onde alguns garotos trabalhavam. Newt estava entre eles, concentrado. Os braços dele tinham os músculos ressaltados com o esforço de acertar o facão nas raízes da árvore, o suor pingava da testa, ele parava, passava o braço pela área e retomava. Eu não sabia nomear o que estava sentindo, mas gostava do cheiro de queijo que me rodeava.

Quase comecei a contar quantas ofegadas ele dava a cada parada, quando fui tirada do torpor a força e a contragosto.

 — Você não consegue nem disfarçar, não é, trolha? — Mike indagou, parando ao meu lado com o braço apoiado numa pá.

 — O quê? — indaguei ainda sem tirar os olhos de Newt. Até me dar conta do que estava fazendo e me voltar para Mike.

 — Qual é, depois você reclama que falam de você, mas olha só que cena patética.

 — Claro, porque foi emocionante quando você tentou me beijar. — ironizei. Era a primeira vez que eu tocava no assunto tão diretamente e a expressão azeda dele mostrou que não ficara contente com isso.

 — Eu não tentei beijar você. — afirmou.

 — Certo, eu não te perturbo com isso e você não me perturba também.

 — Ok, Nelly. — enfatizou e não pensei duas vezes antes de arrastar o pé no chão e vacilar o apoio dele na pá. Mike riu e se recompôs. — Só admita de uma vez para eu saber que não é tão covarde assim.

Uma dúzia de respostas afiadas me veio ao mesmo tempo, mas optei pela menos insinuativa.

 — Não sei do que está falando.

Tomei a garrafa de água que estava em sua mão e caminhei até Newt, sem ver outra forma de fugir do assunto. Ele parava pela quarta vez desde que pus os olhos nele e tinha voltado a desferir os golpes quando parei ao seu lado. Desejei intimamente ter uma conversa bem longa antes de precisar deixa-lo voltar ao trabalho.

 — Honestamente, nunca entendi para que isso serve. — comentei quando ele parou e estendi a garrafa. Newt tomou longos goles antes de responder.

 — Nem eu. O chefe manda e a gente obedece. Mas o trabalho braçal acaba sendo útil depois. Sabe, não é de muita ajuda cinquenta garotos terem a mesma força mertilenta que você. — ele sorriu fraco, frisando a brincadeira.

 — Eu não sou fraca, ok? — ironizei e apoiei as costas no tronco da árvore, correndo os olhos de cima a baixo por ele, captando o sorrido infantil em seu rosto, antes de olhar para Zart, um pouco afastado, conversando com um garoto. Tirei outra pele solta do lábio ao decidir provar que Mike estava errado. — Zart pediu para você me ensinar isso, inclusive.  

 — Pra quê? — questionou com uma ruga entre as sobrancelhas.

 — Eu sei lá, ele deve estar com saudades de mim. — dei de ombros e ele balançou as sobrancelhas, gesto que eu ainda não o tinha visto fazer. Mesmo estranhando, peguei o facão de sua mão, erguendo-o com o pulso mole, pendendo o fio para os lados. — E aí, eu só acerto nessa coisa?

Eu não via qual seria a dificuldade em executar um trabalho daquele, mas por alguma razão deixei isso de lado.

 — Não, é capaz de você fincar isso em si mesma. — disse e deu espaço para que eu tomasse seu lugar, ficando atrás de mim. Ele segurou meus ombros e me moveu para o lado. Sem hesitar, ergui o facão. — Ei! — exclamou e se afastou, e percebi que quase o acertara.

 — Desculpe.

Newt balançou a cabeça em reprovação, mas pareceu paciente, voltando ao lugar.

 — Segure com as duas mãos, trolha, caramba... — ri com a indignação dele e obedeci, fitando o estrago que ele já tinha feito na raiz. — Ok, hum... Incline o corpo.

Newt pôs as mãos na minha cintura sem que eu pudesse me preparar psicologicamente, o que me obrigou a forçar os dedos ao redor do cabo do facão para que ele não caísse com a surpresa do toque. Curvei meu torso para o lado direito, apenas esperando pelo momento em que ele se afastaria. No entanto, senti ele se mover e quando suas mãos fizeram o mesmo, foram parar nos meus pulsos.

 — Relaxe os braços. — ele disse; mas qualquer músculo meu não estaria trabalhando se não fosse pelo meu esforço. Além disso, pelo tom da voz dele tão próxima de mim, não tive dúvidas de que seu rosto estava como quando o encontrei só de toalha nos chuveiros. — E acerte.

Newt puxou minhas mãos para trás, na sua direção, o mesmo movimento que ele estivera fazendo, e então eu mesma acertei a raiz com força.

 — É, isso. — ele disse.

Sem cerimônia, repeti a posição. Nunca tinha visto meu corpo tão tenso, tão inquieto para descarregar emoções em alguma coisa. Newt pôs sua mão sobre as minhas para que eu abaixasse mais o facão. Quis ter raiva do ato, pois eu sabia que o frio na minha barriga não significava boa coisa, mesmo que eu me sentisse melhor do que em qualquer dia na Clareira. Meu corpo estava muito mais quente que o normal e não sabia se era apenas uma sensação. Soltei o ar pelo nariz, só então percebendo que o estivera prendendo, e apertei o cabo com mais força ao acertar a raiz de novo.

Descobri que minha coordenação motora não era das melhores, pois os golpes não saíam tão bons quanto os de Newt. Tentei agir o mais normal possível diante da conversa que ele fazia parecer nada desconcertante, mas essa minha pose sumia completamente quando ele aproximava-se demais.

Alguns minutos depois, fiquei aliviada que o almoço começou a ser servido e jurei a mim mesma nunca mais inventar uma mentira só para provar algo a Mike, nem ficar próxima daquele jeito de Newt por alguns dias.

 — Pode dizer, você mais do que gostou daquela cena ridícula. — Mike disse ao sentar na minha frente.

 — Estava observando a gente? — perguntei incrédula.

 — Você não quis admitir. Mas, relaxa, não precisa, já ficou bem claro.

 — Ótimo. — falei sem pensar, achando que o tinha convencido. — Espera, o que ficou claro?

Mike revirou os olhos com um sorriso que o fez mastigar de boca aberta.

 — Nem sabe mais o que fala, não é? E, olha, está vendo esse tomate? — ele pegou o fruto de uma caixa junta das outras que tinham chegado. — A cara dele ficou dessa cor o tempo todo.

Encarei estupidamente o tomate por alguns segundos, lembrando-me dos breves momentos em que olhei para Newt. Mike soltou-o no ar e eu o agarrei.

 — Parece que você tirou alguém do eixo, trolha. — ele tornou a comer e eu encarei meu prato, e apertei os olhos ao sentir o ímpeto de erguer a cabeça e procurar Newt pela Cozinha. Mike fazia tudo aquilo parecer tão idiota que eu chegava a pensar do mesmo modo, mas não conseguia deixar de lado a euforia que borbulhava no meu estômago. Talvez fosse fome.

 

Eu não fazia ideia do que tinha dado na minha cabeça, pois quando percebi, eu já estava em outro trabalho com Newt outra vez, na área dos Construtores.

Gally havia me mandado firmar a madeira ao redor da Sede para que aquele lugar não desmoronasse sobre nós, e Newt apareceu enquanto eu subia a escada para começar.

 — Falei com Zart. — ele disse para se anunciar.

 — O quê?! — repliquei no momento em que meu coração dava um salto mais forte e eu levava o pé ao próximo degrau. Como a imbecil que sou, tentei olhar para ele lá de cima, o que forçou meu peso a puxar a escada para trás. Eu me agarrei com força no degrau quando me vi me afastando da Sede; mas algo forçou a escada e dei um solavanco forte e voltei para o lugar no instante seguinte. Apoiei minha cabeça e fechei os olhos, recuperando meu fôlego do susto.

 — Você está bem? — Newt perguntou lá de baixo, seu sotaque de repente mais acentuado e a cor amarela caindo sobre mim como uma anestesia. Ele segurava a escada com as juntas dos dedos brancas.  

 — Não... — sussurrei, certa de que ele não podia me ouvir.

 — Nelly. — ele chamou com o tom mais sério e não tardei mais a dizer que estava bem.

 — Pode me dar mais pregos? — acrescentei, vendo que minha mão estava vazia agora. Com certeza tinham caído quando me agarrei à escada.

Quando Newt subiu em outra escada para me entregar os pregos e ajudar na reparação, começou a falar da bagunça que Tagarela tinha feito ao cavar os Jardins. Ele não poderia ter escolhido assunto melhor para encobrir o outro, pois assim meus risos não precisavam ser forçados. E ele pareceu brevemente constrangido ao me encarar.

Conversamos de outras coisas e até ficamos em silêncio às vezes enquanto obedecíamos Gally; fora um acordo subentendido não falar da minha mentira, o que me deixou extremamente leve.

Ao fim do dia, Caçarola nos chamou para ajudar a montar a fogueira e pegar a comida.

 — Aí, aprendendo a cortar as árvores daquele jeito vamos ter mais fogueiras. — Mike comentou, dando-me um cutucão ao passar por nós com a corda.

Newt riu, andando na minha frente com um caixote, e percebi que o melhor jeito era lidar com aquilo na brincadeira.

 — Ainda preciso melhorar! — elevei o tom para Mike, mas encarando a nuca de Newt; ele baixou a cabeça e pareceu morder as bochechas entre o sorriso.

Rolamos os troncos para perto do Campo-Santo, como sempre, e dispuseram a corda no momento em que os Corredores voltavam. As lutas não começaram enquanto eles não saíram dos vestiários, atacando a comida rapidamente.

 — Cara... Hoje foi cansativo... — Minho comentou, largando-se ao lado de Thomas quando este sentou no mesmo tronco que eu.

 — Por quê? Vocês...

Thomas começou a afirmar com a cabeça enquanto mastigava.

 — Os Verdugos vão para o Penhasco sempre que somem de manhã. – disse. — Vimos um deles desaparecer lá, mas...

 —... mas foi diferente de quando um de nós caiu, o trolho sumiu enquanto caía, mas aquela coisa simplesmente desapareceu no ar. — Minho continuou.

 — Contaram ao outros? Alby e Newt...

 — Acabamos de chegar, trolha. — ele replicou de boca cheia.

Olhei ao redor para procura-los, mas vi apenas Newt sentado no chão, conversando com Gally e outros dois Clareanos.

 — Newt! — chamei e fiz sinal para que se aproximasse.

Após avisá-lo do Penhasco, não tivemos mais nada a dizer que não fosse especulações de no que a descoberta poderia ser útil. Era uma das frustrações daquele lugar: descobrir as coisas e ao mesmo tempo não descobrir nada. Fui a primeira a dizer que deveríamos ver o que tem dentro, prevendo o apoio de Thomas e os olhares dos outros dois, então logo tratei de dizer que precisávamos pensar melhor a respeito e que não estava sugerindo me atirar lá.

A conversa seguiu por mais alguns minutos, até eu voltar a reparar no grupo em que Newt estivera e me perder do que Minho explicava. Gally dizia alguma coisa a um Herman em pé, que tinha chegado há pouco, os dois olhando para mim. O Novato respondeu alguma coisa com uma risada sarcástica. E se levantou.

Acompanhei os movimentos dele, principalmente quando pareceu vir na minha direção. No entanto, ele pareceu mudar de ideia e apenas sentou-se do outro lado de Gally. Voltei-me para frente, tentando prestar atenção em Thomas agora.

 — Ei, Newt! — Herman disse e Newt olhou. Não tive dúvidas de que coisa ruim viria, o gosto de abacaxi tomava minha boca. — O círculo está vazio! — ele abriu os braços num gesto cínico, que não combinava nada com o Novato patético que eu desprezava.

 — Não, cara, eu não luto! — Newt respondeu e seu tom amigável fez eu me sentir mal.

 — Qual é! Prometo pegar leve!

Newt soltou uma risada breve e negou outra vez.

 — Anda... — Herman aproximou-se a passos duros, um sorriso meio demoníaco e ameaçador. — Uma perna manca não afeta um cara durão como você. — disse agarrando a camisa de Newt na altura do peito e puxando-o para cima para que ficasse de pé. Levantei-me com Thomas e Minho, o asiático pronto para uma briga.

 — Cara! — Newt livrou-se das mãos do Novato e se afastou, o rosto franzido em indignação. — Fica na sua, eu não vou lutar.

 — Mas já está dentro do círculo. — Herman ergueu uma sobrancelha e minha exclamação de susto subiu pela garganta assim que vi seu punho se mover. Diferente do que imaginei, ele apenas deu um empurrão em Newt. — Qual é... — Herman soltou uma risada, aproximando-se mais.

Meti-me no meio dos dois e coloquei meu antebraço no peito do Novato; eu não chegava perto da força que ele tinha, por isso usei meu peso para mantê-lo longe quando senti seu corpo fazer pressão.

 — Está querendo provar o quê? — indaguei.

 — A Socorrista chegou! — Herman exclamou divertido, afastando-se do meu braço. — Eu é que te pergunto isso. Será que não consegue largar a sua estrela por um segundo? Por que faz tanta questão de ser o centro das atenções?

Cerrei os olhos para o tom maníaco dele e soube o real motivo da provocação com Newt. Gally muito provavelmente pensava o mesmo que Mike sobre o que eu sentia pelo líder e Herman queria um motivo para discutir comigo na frente de todo mundo.

 — Qual o problema? — questionei sinceramente, cruzando os braços. Eu não me importava de me resolver com ele na frente de todo mundo, até porque eu era a única que sabia quem ele era de verdade.

 — Você é o problema de todo mundo, trolha! — disse com a voz aguda, como se expusesse o óbvio, gesticulando com as mãos. — Não consegue desperdiçar uma chance de mostrar seus poderes de cura!

 — Poderes de cura? — um Clareano distante repetiu em dúvida. Por um breve instante, temi que a fala não tivesse soado irônica para todo mundo.

 — E com um mês aqui você acha que está reinando, e até despreza o Novato que, aparentemente, tem alguma coisa a ver com o seu passado! — Herman continuou e o cinismo mostrava o quão determinado estava a dizer o pior que pudesse. Ele deu um passo para mais perto. — Estamos todos no mesmo barco, Fedelha. Se eu sou uma mértila, você também é.

Não esperei um segundo a mais para esticar meus braços e o empurrar com toda a força que eu tinha. Ele deu alguns passos cambaleantes para trás, sorrindo. Minhas mãos doeram, mas tive prazer em poder finalmente pôr as mãos nele. Com sorte, ele atacaria primeiro e eu poderia me defender dignamente.

 — Não me compare a você. — chiei, o dedo apontado para seu peito.

 — E por que não? O que você sabe, afinal?

Eu nunca poderia ter desejado mais que Alby aparecesse para acabar com aquela droga.

 — Você sabe de alguma coisa, não sabe? — Herman murmurou com um meio sorriso, tornando a se aproximar. — O que você viu na Transformação, Nelly?

 — O que eu sei é que você é um garoto chorão, medroso e patético! — esbravejei, pressionando o dedo indicador nele. — Quer correr atrás da única garota da Clareira com a desculpa de que sabe quem eu sou?! Coisas estranhas estão acontecendo há muito tempo, Novato, pense numa coisa melhor! E se quer me provocar, é melhor que lembre que eu sei exatamente onde te acertar para que se esqueça de tudo outra vez. Como os Criadores fizeram.

Herman abriu ainda mais seu sorriso. Não tive um bom pressentimento.

 — Você é exatamente como eles, não é?  

Agarrei a camisa dele com tanta força e rapidez que senti minhas unhas ferirem sua pele. Arrastei meu pé pelos seus e forcei meu corpo para que o derrubasse. Herman caiu. Fiquei abaixada ao lado, ainda o segurando. Minha vontade de ver sangue saindo de qualquer parte do corpo dele tinha ascendido com tanta força que arfei. Fazer eu mesma o trabalho com as minhas próprias mãos, com ele no chão, impotente, como ele havia feito comigo perante os Criadores e aquela garota... Eu ouvia meu coração, forte e rápido. O sorriso do Novato parecia nunca ter existido; dera lugar à expressão aterrorizada de sempre. Era tão patético... Minhas unhas fincaram-se mais. Tive certeza de que eu arrancaria a pele dele. As batidas do meu coração, as lembranças, o rancor e o ódio... Tudo martelava como um incentivo para eu ir em frente. Como eu queria, depois de tudo... fazer ele berrar para que os Clareanos soubessem que “mértila” era um elogio a ele...

Mas os Clareanos...

Estavam todos ali.

Eu queria que vissem como a Clareira era boa demais em comparação ao que ele merecia.

Mas eu não podia ser vista como a errada.

Não podia fazer nada antes que soubessem meus motivos.

E os motivos me davam vergonha.

A raiva foi embora, e quis tanto que ela voltasse que em vez disso vieram lágrimas. Eu não podia mata-lo. Eu queria. Mas então me baniriam da Clareira para sempre.

Apertei mais a camisa dele e soltei um suspiro de frustração. O único lado bom foi que não senti nada ao perceber que ele estava me vendo chorar.

Levantei-me de cabeça baixa e corri para o Campo-Santo. Não tive coragem de olhar para nenhum deles, sentia como se pudessem ler meus pensamentos. Corri com toda a vontade que tive, com a mesma urgência de quando estava fugindo dos Verdugos. Eu não tinha sentido meu sangue fervendo até então, ou o calor da tensão pelo meu corpo. Mas agora eu sentia tudo de ruim. Minhas panturrilhas não tardaram a começar a arder, minhas unhas e meus braços estavam doloridos pela força usada. E o peso na consciência de que tinha deixado claro a todos eles que havia algo realmente errado entre mim e Herman... Mike havia percebido. Thomas... Newt. Eu tinha feito de tudo para não mentir e agora era isso ou expor a mertilenta verdade do que havia acontecido e de quem ele era.

Vi-me perdida em lágrimas pela floresta, sem saber para aonde estava indo, sem fazer nenhuma curva. Apenas desviava das árvores, ainda recebendo arranhões de galhos salientes. Não fiz a menor menção de parar ou tentar me desviar deles. Eu apenas agitava os braços, desejando gritar para afrouxar o nó na minha garganta. Deixei meus soluços fazerem o barulho que quisessem, eu já estava muito longe do centro da Clareira.

Continuei correndo, o ofego diminuindo o choro e deixando que eu me concentrasse para ir o mais longe possível, sem parar. As lágrimas continuavam descendo. Eu me sentia extremamente suja por ter cedido a um golpe tão óbvio e baixo quanto aquela provocação. Nada poderia ter feito eu me odiar mais.

Soube meu objetivo naquela correria quando encontrei o muro de pedra do Labirinto. Era o limite. O máximo que eu chegaria. Entre soluços, as bochechas molhadas pelas lágrimas, puxei o ar pela boca e soltei.

Larguei-me no chão e arrastei-me até uma árvore para me encostar nela. Descansei a cabeça, arfando, soluçando, puxando os fios do meu cabelo com os dedos. Eu nunca tinha achado que a Clareira me traria tanta angústia. Se isso já estava sendo demais, tudo que viria ainda...

O tempo passava de acordo com os soluços que eu dava, a intensidade ora vinha, ora ia. Eu não tinha a menor ideia de por quanto tempo havia corrido e ficado sentada ali.

Ouvi folhas secas sendo partidas e as lágrimas voltaram. Eu não queria ninguém perto de mim. A última coisa da qual eu precisava naquele momento era algum deles obrigando-me a encarar o que eu tinha feito. Thomas tinha salvado a minha vida mais de uma vez. Sido meu amigo. Mike da mesma forma. Nem Newt seria capaz de fazer eu me sentir melhor dessa vez. Só quis que quem quer que fosse, fosse embora.

O garoto não percebeu meu desejo de ficar e me martirizar sozinha. Ele aproximou-se por trás da árvore e, ao parar ao meu lado, virei o rosto para o lado oposto. Esperei ouvir seus passos se afastando, mas não aconteceu. Em vez disso, ele sentou. Minha garganta doía, eu provavelmente não tinha voz suficiente para gritar como eu queria para manda-lo embora, e pareceria patética se não saísse som algum. Eu odiava tanto aquele lugar.

Após alguns segundos em que eu ainda me negava a encará-lo e ele continuava ali, desisti. Virei a cabeça abaixada na direção dele e soube quem era pela camisa, as mangas dobradas de qualquer jeito. As lágrimas voltaram. Eu não sabia se logo ele ali melhorava ou piorava tudo. Não quis forçar minha mente a descobrir, minha cabeça pesava.

Voltei a soluçar, a chorar com qualquer gemido que quisesse escapar, apoiando minha cabeça em seu peito. Newt arrastou-se para mais perto e senti seu braço circundar meus ombros; o cheiro de pinho invadiu meu nariz. Tive quase certeza de que se eu prendesse qualquer coisa comigo, ficaria maluca.

 — Me mate... E faça parecer suicídio... Eu não quero voltar pra lá...

Sua outra mão pressionou minha cabeça, então me estreitei mais contra ele. Senti seu maxilar cerrar. Apertei os olhos e sua camisa, desejando que ele nunca saísse dali.

 — Ele é meu irmão. — declarei num gemido rouco. Nada se aliviou, nada pesou ainda mais. Só parecia certo admitir de uma vez.


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Notas finais do capítulo

#DramaPorqueSim u.u Vai ver nem é bom assim lembrar da família né?
Alguém mais shippando Newly?
Comentem para eu saber o que acharam! =3

Até o próximo! ♥



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