Relíquia escrita por André Tornado


Capítulo 4
Porque o céu é azul, faz-me chorar


Notas iniciais do capítulo

Because the wind is high, it blows my mind
Love is old, love is new
Love is all, love is you
Because the sky is blue, it makes me cry
Because por The Beatles, do album Abbey Road, Lennon & McCartney



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As botas pretas, maciças, rigorosas calcavam a vegetação que atapetava o solo húmido da frondosa floresta das árvores gigantescas. O restolhar desses passos incisivos que percorriam um caminho que não existia entre a flora cerrada e primitiva, constituída principalmente por sequoias, traçavam um trilho que só a ele pertencia. Como se ele fosse o primeiro a pisar aquele solo fecundo, aquela selva por desbravar, aquele mundo virgem.

Gostava de inaugurar momentos, de chegar onde antes ninguém tinha estado e impor-se pela sua presença intimidante. Gerar silêncios e murmúrios, agitar as almas, infundir medo através de um respeito hesitante, que oscilava entre a vénia e a completa prostração. Onde ele surgia, tudo se suspendia. A respiração, os olhares, os corações, a vida. Tudo fenecia e convergia para o negrume que ele incorporava e que ele transmitia.

A sua presença nunca passara despercebida, desde muito jovem. Sempre fora alguém grande, de estatura elevada e fora do normal. Crescera sempre mais do que as crianças da sua idade e esse pormenor fazia com que se sentisse deslocado, imperfeito, um intruso. Os seus colegas eram um mar de cabeças, pois, mais alto do que eles, via-os assim, pequenas bolas cobertas de cabelo ou outros apêndices desprovidas de rosto e, por acrescento, da sua simpatia. Quem poderia gostar de cabeças? A vantagem era que nunca privara com muitas crianças da sua idade e por isso nunca cultivava demasiado esses sentimentos negativos que o amofinavam. Na maior parte dos anos de educação formal e obrigatória estudara com tutores particulares e viajara demasiado para acompanhar a sua mãe famosa, quando ela não o enfiava num retiro durante meses, em que tinha por companhia animais de estimação ou empregados subservientes.

O ressentimento pela forma como fora tratado na sua infância transformara-se dentro dele num lago gelado, durante os seus últimos treinos. Na paisagem árida do seu espírito havia enchido vários poços agrestes com esse líquido frio e inumano, representando cada uma das suas amarguras e rancores. Quando se envolvia em exercícios de autoconhecimento, preferia apelidá-los assim do que identificá-los como a meditação costumeira dos Jedi, imergia nesses lagos para arrefecer as suas paixões que o iriam transtornar e desconcentrar. Quando a luz ameaçava brilhar no céu pálido e cinzento que cobria essa paisagem cavada por crateras fundas, cobertas por espelhos translúcidos de gelo, apagava-a com um gesto dramático. Usualmente usava a tortura de prisioneiros, as missões perigosas em que era obrigado a combater enraivecido, a morte dada aos inimigos.

Os seus passos eram demorados, propositadamente lentos, para assinalar a sua passagem através da vetusta floresta, que ressumava perfumes verdes, naturais, cálidos. Colocava em cada perna o seu peso total, para marcar com a devida pegada indelével a sua existência na lua santuário. Repetia o movimento cobrindo uma distância considerável, pois as suas passadas, tal como os seus membros inferiores, eram largas. Caminhava seguro do seu objetivo, sem admitir que se interpusessem entre ele e o que buscava, no local que tinha sido previamente assinalado pelos batedores. As soberbas árvores centenárias de grossos troncos e de copas tão vastas, que coavam numa chuva brilhante o imenso sol que alumiava aquele sistema, ou as espécies sencientes que compunham a fauna pouco amigável da lua, criaturas malignas, traiçoeiras e muito territoriais, não o iriam demover ou tão-pouco travar. Não hesitaria em cortar, decepar, mutilar e ferir qualquer coisa ou qualquer um que se atravessasse à sua frente. A sua concentração não seria quebrada por nenhuma distração, por nenhum empecilho.

Aquele momento era fundamental.

O cavaleiro de Ren visitava a lua de Endor, local miserável e selvagem situado na Orla Exterior que seria completamente esquecido e desconsiderado se aquele não tivesse sido o palco de um acontecimento definidor da História galáctica.

Vestido totalmente de preto, nos ombros pendurava-se uma capa confecionada em tecido tosco e desfiado, simbolizando o seu desapego material e a sua rejeição do mundano, que se cruzava na parte superior do peito e que lhe cobria as costas até às botas. Tinha uma dobra que ele podia usar como capuz.

No cinto largo estava o seu sabre de luz, construído passado pouco tempo de se ter tornado aprendiz do Líder Supremo Snoke. Usara o cristal kyber que lhe foi dado como prémio por ter derrotado um dos alunos da academia de Luke Skywalker, um Jedi promissor. Conhecia o desgraçado.

Não compreendera totalmente que sorte de sacrifício pessoal tinha significado assassinar um antigo colega, com o qual privara durante a sua estada no templo, aquele com quem partilhara mais momentos, admitia-o. Snoke prometera-lhe o cristal em troca de um sacrifício, mas não lhe custara matar o outro e fê-lo sem qualquer misericórdia ou vacilação. Em abono da verdade, nem sequer sentira aquela morte que fora ligeiramente aborrecida porque o aprendiz a Jedi teimava em lutar com honra, usar arroubos de coragem e servir-se de algum humor corrosivo, quando conseguia ler no infeliz o seu desespero interior. Como derradeiro ato, teoricamente virtuoso, aceitara o seu destino e expusera o pescoço, afirmando-se preparado para entrar na luz. Se tinha outros pensamentos, como avisá-lo de que seria punido ou outra qualquer insensatez, guardou-os para si. Quando o ânimo vital o abandonou, estava aterrorizado.

O cristal kyber fora obtido do punho do sabre de luz conquistado a esse jovem patético, mas estava rachado. Partira-se durante o combate. Snoke rira-se da ironia, porque tinha considerado o combate como perfeito, e obrigou-o, depois de a consagrar às trevas e de a tornar rubra como o sangue recentemente derramado, a usar essa pedra no seu novo sabre. Ele não contestou o capricho do mestre e descobriu que apenas criando um punho cruciforme conseguiria ativar aquele cristal kyber. No início, estranhou a lâmina tripla, dividida em dois quillons que crepitavam perigosamente junto da sua mão fechada. De seguida, aprendeu a manejar a espada luminosa instável de cor vermelha, percebendo que tinha uma proteção adicional no par de pequenas lâminas provenientes dos dois tubos de ventilação que tivera de criar para exaurir o poder brutal de um cristal kyber ferido.

Parou no centro de uma clareira verdejante.

Levantou o rosto mascarado. A sua respiração fluía pelo filtro existente no elmo que lhe cobria a face na totalidade, conferindo-lhe um aspeto de guerreiro impiedoso. Evitava falar, mas não desgostava de fazer soar a sua voz através do processador da máscara, num tom robótico, impessoal e assustador.

Onde ele surgia, quer fosse num átrio majestoso, na ponte de uma nave-bandeira, na sala do trono do Líder Supremo, naquela floresta, a sua presença era desde logo notada e sentida.

Percebeu as criaturas a suspender as suas atividades, o vento a deter-se, a floresta a imobilizar-se por causa dele. Era o seu poder que causava a comoção.

Olhava para o alto.

O céu, acima das ramagens das sequoias gigantes, era azul. De um tom forte e profundo, de uma beleza poética, quase transcendental. A simular a firmeza de uma massa sólida, quando se tratava de camadas gasosas sobrepostas que, uma vez trespassadas, conduziam à liberdade do firmamento negro. Um céu azul não era dos espetáculos mais frequentes na sua vida, nos tempos mais recentes. Nunca fora igualmente uma das suas prioridades enquanto crescia em altura, tão descomunal como as árvores gigantes da lua de Endor, e se tornava naquele jovem adulto, tão rachado como o cristal kyber do seu sabre de luz.

Constantemente com os olhos pregados no chão, constantemente a desviar-se para que não dessem pela sua presença, constantemente com vergonha do que era e do que tinha dentro de si, aquela mancha incómoda que sujava o seu nome importante, o seu brilho.

Também todos os lugares privados de céu, como salas fechadas, planetas claustrofóbicos, viagens intermináveis em naves, obrigações que não lhe pertenciam e que o faziam deslocar-se de um lado para o outro.

No templo havia céu, claro. Mas essa abóbada celeste era de outra cor, um tom amarelado e doentio que lhe causava asco, nunca lhe provocara a tentação de a contemplar, como os outros alunos da academia faziam nos intervalos concedidos para uma curta pausa dos intensos exercícios físicos que lhes arrancavam suor e canseira. A comunidade era-lhe estranha e ele não se tinha incluído no grupo.

Olhava para o céu azul e emocionava-se.

A máscara cobria-lhe os olhos brilhantes, escondia a respiração ofegante.

Junto dos cavaleiros de Ren existia outro tipo de comunidade, com a qual ele se identificou mais. Não eram unidos pela camaradagem derivada do convívio forçado pelos treinos Jedi e por uma bondade inata. Pelo contrário, encontravam uma certa uniformidade no carácter irascível, na competição que os desunia, nas pequenas invejas, nos gestos extremos e violentos, na ansiedade em agradar Snoke para serem os seus preferidos, apesar de existir um líder designado. A rivalidade estimulava-o. O risco permanente de uma sublevação entre os seus subordinados, pois ele era esse líder designado, atiçava-o. Viver no limite era agradável.

Os stormtroopers que o seguiam tinham também parado.

Foi então que se lembrou que não estava sozinho na floresta.

Endireitou o pescoço, esquecendo as maravilhas de um imaculado céu azul.

Fechou por momentos os olhos, atrás da viseira prateada da máscara.

O frio envolveu-o, apartando-o daquela clareira quente, húmida, inebriante. Quedou-se confuso por alguns instantes, enquanto se recolocava dentro do corpo, pois estivera a divagar, a fugir, a inventar.

Fez um gesto com a cabeça, voltando-a um pouco para a esquerda, que o capitão entendeu como uma ordem para nova verificação do terreno. Apercebeu-se que a floresta cerrava-se mais adiante, num emaranhado verde intransponível de arbustos. Fora por isso, pensou consciente da sua eficiência, que parara, porque o caminho estava vedado. Não fora por causa de um estúpido céu azul distante, encoberto pelas árvores enormes, tão altas que parecia que riscavam as alturas. Estava a deixar-se perturbar por aquela missão.

Era certo que a sua presença em Endor constituía uma ação pessoal, que se podia classificar facilmente como um capricho inadiável, uma curiosidade mórbida, uma necessidade inexplicável. Mas o seu comportamento não precisava, nem devia, espelhar a fraqueza que se entremostrava por detrás da sua vontade. Acalmou a ânsia, ao descobrir-se ansioso. Acalmou a febre, ao verificar que estava febril. A máscara ocultou-lhe o rubor. Passou a língua pelos lábios secos.

O capitão elevou um braço e com dedos vigorosos fez o sinal que designou dois soldados do batalhão. Os homens avançaram, ligando as suas ferramentas, alvas como os seus uniformes metálicos. Serras munidas de lâminas laser que se ativaram, estavam ainda a avançar para a barreira vegetal. O zunido abafou os pios das aves.

Começaram a desbastar o muro vegetal, cortando impiedosamente as plantas que tinham resolvido aninhar-se num bloco compacto de flora. Era um trabalho quase silencioso, porque as lâminas não faziam qualquer ruído e os arbustos que se desfaziam em ramos mais pequenos tombavam no solo num registo sonoro abafado.

Estavam a ser observados, mas os curiosos não ousavam interferir no que estavam a testemunhar. Não temiam qualquer adversário, eram bastante conhecidos pela sua bravura e pelas suas táticas de guerrilha que utilizavam os segredos da floresta para se acobertarem. Estariam a analisar a posição do batalhão e a decidir se constituíam um problema. Ele sentia-os, enquanto aguardava que o caminho fosse desimpedido. Saberia identificar cada um dos buracos que usavam como esconderijo, saberia apontar com certezas para onde se deveria disparar e aqueles guerrilheiros peludos seriam dizimados. Mantinham-se quietos, contudo. Ele, que daria o comando para os soldados atacarem, os Ewoks, que atacariam apenas se fossem provocados. Todos quietos e na expetativa de um primeiro deslize…

Era curioso verificar a ignorância do capitão em relação aos inimigos que os espreitavam nas sombras, postado de mãos atrás das costas enquanto observava o par de soldados a rasgar a floresta até chegarem novamente a um trilho que fosse possível continuar a percorrer, conduzindo-os ao sítio indicado pelo mapa encomendado expressamente para aquela missão. Mas o pobre homem não tinha como sabê-lo, pensou Kylo Ren com uma certa tolerância divertida. Era um oficial competente, fleumático, não um utilizador da Força, nem teria sensibilidade para mais do que o estrito cumprimento do código militar.

Sem descurar a vigilância dos traiçoeiros e malignos Ewoks acoitados, voltou a sua atenção para os homens que prosseguiam no desbaste da vegetação, focou-se ainda nos outros homens que constituíam o batalhão e que se encontravam em formação atrás de si, a aguardar obedientemente pela ordem para regressarem à marcha.

Os soldados labutavam com afinco e rapidez. Conheceriam a sua propensão para a falta de paciência quando o detinham com obstáculos insignificantes. Era indigno, mas ele seria capaz de cortar aquele ninho de arbustos com o seu próprio sabre de luz e avançar, deixando os cadáveres dos dois soldados pelo caminho, simplesmente porque lhe apetecia avançar com maior celeridade. Bastava sucumbir aos seus desejos sombrios e os homens sabiam, todos eles, que conheceriam a morte.

Eram bons soldados, avaliou com um indício estranho de benevolência. Treinados com recurso a métodos brutais e exigentes, que incluíam batalhas simuladas em que o perigo de ferimentos graves era real, sessões de motivação contínuas que lhes formatava os cérebros para obedecer sem questionar e para atacar sem duvidar, exercícios práticos que se desenrolavam em planetas inóspitos. Os stormtroopers que integravam as fileiras dos vastos exércitos da Primeira Ordem eram considerados letais, competentes e assustadores. Apresentavam-se sempre fortemente armados com carabinas e pistolas de última geração e causavam terror por onde passavam por fazerem recordar o antigo poderio militar imperial.

Pessoalmente, ele preferiria utilizar clones no exército, não homens comuns, com todos os seus pecados e falhas, ainda que pudesse concordar que o treino intensivo produzia excelentes elementos. O Líder Supremo escutava os conselhos dos seus generais que lhe organizavam as academias e o exército, confiava na palavra deles e nas ideias que lhe apresentavam, baseadas na sua esmagadora maioria na extinta organização do Império Galáctico. Aceitara, portanto, que a sua liderança fosse suportada, no campo das forças armadas, por um exército de homens e não de clones. Ele, na qualidade de um dos cavaleiros de Ren, integrava outro corpo, com outros objetivos, mais próximos ao verdadeiro poder que Snoke simbolizava. Não se devia importar demasiado.

Sem qualquer posto na hierarquia militarizada da organização à qual prestara lealdade, a Primeira Ordem, era respeitado como um dos comandantes apenas pelo simples facto de ser um Ren. Tentara, algumas vezes, impor o seu ponto de vista em relação aos clones – uma ideia que tinha raízes na sua profunda aversão pela humanidade, num sentido genérico, sempre fora péssimo em relacionar-se com os outros – mas sempre encontrara uma firme argumentação contrária, ou seja, a favor de soldados humanos, no tenente Armitage Hux. Enfastiava-se sempre que Hux entrava nas discussões, porque este jovem oficial era assertivo, contundente, apaixonado. Ele limitava-se a expor a sua posição numa frase curta e átona, facilmente desconstruída pelo discurso articulado e expositivo de Hux, que fazia questão de contrariá-lo, mas sem ser inconveniente. Ele não tinha dúvidas de que em breve o tenente seria promovido a general e que alcançaria um lugar proeminente junto de Snoke, afastando todos os outros generais, decrépitos e ambiciosos, com demasiados vícios enraizados nos antigos métodos imperiais.

E quem os podia censurar?

Os dois batedores desligaram as suas ferramentas, as lâminas laser recolheram-se. Afastaram-se, cada um para seu lado, exibindo a conclusão do seu trabalho impecável, o desimpedimento do caminho. Um corredor ladeado por grossos troncos das árvores abria-se quase até ao infinito. Não haveria mais obstáculos até alcançarem o sítio.

O pio dos pássaros regressou, em tinidos esporádicos. A floresta respirou brandamente. Os Ewoks tornaram-se mais silenciosos, fundiram-se com o cenário selvagem que os protegia, porque eles também eram os seus protetores.

O Império Galáctico fora derrubado ali, na lua verde de Endor. O coração de Kylo Ren endureceu com a lembrança dessa constatação. Avançou pelo caminho recentemente aberto, calcando com mais pujança e ardor o solo húmido daquele santuário, como se pisasse aquela má memória, aquele sacrilégio.

Quem podia censurar os velhos generais que serviam agora Snoke, com aquela alegria doentia dos ressentidos que buscavam retribuição, uma doce vingança, um sorriso pérfido de quem celebra a maior das vitórias depois da mais humilhante das derrotas?

Na realidade, o Império não tinha sido vencido ou tinha deixado de existir. Sobrevivera, algures, nos confins da galáxia, depois da catástrofe de Endor, após o descalabro da Batalha de Jakku, através de todos aqueles que se tinham recusado a aceitar o seu desmantelamento, apesar de ele ter escutado, durante toda a sua vida, enganado pela felicidade ingénua e pela esperança jubilosa da sua mãe senadora, que a República tinha renascido e que iria perdurar durante milénios.

O céu azul derramou-se sobre ele, que marchava imparável pela paisagem intocada da floresta, em blocos de vento que carregavam, em cada porção de ar as mil e uma recordações que guardavam nas dobras do seu silêncio perpétuo. Não eram vozes caladas, elas existiam e sempre iriam existir, porém só soariam para aqueles que estivessem dispostos a escutá-las com sinceridade.

Ele estava disposto!

Para além daquele céu azul, tinha acontecido, pouco antes de ele ter nascido, a destruição da estupenda estação espacial imperial, a Estrela da Morte, recuperação de uma antiga plataforma bélica com um poder estrondoso que, na sua primeira versão tinha sido derrubada pelo esforço heroico de um punhado de rebeldes.

Ele conhecia bastante bem essa história, pensou irritado. Não apenas dos volumes de História, mas porque era também a história da sua família.

Naquele momento, não se queria lembrar de que fora o seu tio, Luke Skywalker, que disparara os milagrosos tiros de protões que tinham feito explodir a primeira Estrela da Morte, que fora o seu pai, Han Solo, que permitira esse disparo que evitaria o fim da rebelião e a morte da sua mãe, a princesa Leia Organa, que assistia ao ataque na sala operacional da base secreta que a Estrela da Morte em breve iria destruir.

Naquele momento, não se queria lembrar que a morte do Imperador Sheev Palpatine acontecera além daquele céu azul, na segunda Estrela da Morte, na tristemente célebre Batalha de Endor que assinalou o fim, o primeiro fim, do Império Galáctico.

Nem se queria lembrar, naquele momento, que fora ali que Darth Vader morrera.

Rosnou atrás da máscara, de dor e de indignação. Estava gelado e fervilhava, o sangue corria pelas suas veias, queimando-o e arrefecendo-o. As sombras e a luz a disputar o seu espírito atónito. Ia chorar de pena e ia gargalhar de escárnio. As cores branco e preto sucediam-se em vertigem, cegando-o e desorientando-o. Era louco e lúcido ao mesmo tempo. O contraste estava a dividi-lo e a retirar-lhe o controlo.

Queria gritar porque o céu era azul, porque o céu era pacificamente azul. Devia ser vermelho! Vermelho como o sangue que ali se derramara! Vermelho por tudo o que se perdera para sempre, as mentiras, os logros, a estúpida História escrita pelo punho dos malditos vencedores!

Viu as chamas nos olhos cegos.

O verde da floresta e o azul do céu tornaram-se ígneos, vermelhos. Maravilhosamente escarlates como as labaredas furiosas e desgovernadas do incêndio que consumia o edifício principal da academia Jedi de Luke Skywalker. A chuva era torrencial, mas a água que os céus, apiedados com a desgraça, despejavam sobre aquele mundo de clima desagradável, não era suficiente, apesar do copioso temporal. O fogo prosseguia, imparável. Os gritos tinham-se calado. O solo juncava-se de lama, de destroços, de cadáveres. Relâmpagos iluminavam fugazmente a destruição. Trovões ribombavam e faziam estremecer a terra, os corações, as últimas energias.

Um sentimento pacífico e consolador desceu sobre ele. Kylo Ren suspirou profundamente, deixando-se envolver pela visão das ruínas incendiadas do templo. O seu tio de joelhos, ao lado do astromec. A sua mais gloriosa realização. As contradições, dentro dele, apagaram-se.

Naquele dia, acompanhado dos cavaleiros de Ren, liderara o ataque ao templo da Nova Ordem Jedi e devastara o que Luke Skywalker, apoiado pela Nova República, tentava reconstruir, uma geração renovada de guardiões da paz e da justiça. Não havia lugar para os Jedi numa galáxia dominada pela Primeira Ordem e ele terminara com essa ambição. Um golpe pérfido, um golpe magnífico. Outra piscina de água gelada cavada no seu íntimo.

E desse modo conseguira a sua vingança, devida por todo o sofrimento que tinha experimentado, ocultado e digerido no templo Jedi. Imaginaria que os antigos generais imperiais exultariam da mesma forma quando a Nova República fosse, final e definitivamente, erradicada da galáxia, quando experimentassem o mesmo tipo de vingança, devida por tudo o que acontecera em Endor.

Parou novamente.

O coração frio batia com alguma réstia de calor. Estava próximo… Estava perante o local sagrado que ele buscava na lua santuário.

O capitão adiantou-se-lhe numa curta corrida. Consultou o seu holopad para conferir as coordenadas e estabelecer, com absoluta certeza, de que o objetivo do mapa tinha sido alcançado. Kylo Ren não teceu qualquer comentário. Guiara-se pela Força e pelo seu instinto naquele percurso através da floresta das gigantes sequoias, não precisara de qualquer auxílio tecnológico para além dos seus sentidos apurados e exaustivamente treinados. Primeiro no limitador caminho da luz, presentemente no abrangente caminho das trevas. No entanto, não exigiria, num quadro de bom senso, ao capitão e à sua escolta que ele, de bom grado, prescindiria, o mesmo tipo de orientação. Tinham usado mapas holográficos e só dessa forma lhes tinha sido possível acompanhá-lo. O Líder Supremo não queria que ele se demorasse demasiado em Endor, por isso obrigara-o a levar o batalhão. Assegurava-se, assim, do seu regresso imediato. Tinha mais planos para os seus leais cavaleiros.

O capitão confirmou o que ele já pressentia, em cada fibra ardente do seu corpo.

— Chegámos, senhor.

— Afastem-se – ordenou Kylo Ren com rispidez.

Puxou o capuz para cobrir a cabeça, em sinal de respeito.

O altar fora edificado em madeira, troncos entrançados de maneira rústica que plantas trepadeiras mais agressivas se tinham apoderado ao longo dos anos transcorridos, criando uma camada verde e viva que disfarçava o que ali se homenageava e guardava. Uma proteção que a natureza conferira gratuitamente, generosamente.

Ele escalou a terra que se tinha acumulado até ao altar, que se assemelhavam a degraus compactos escavados no pequeno monte. Olhou em volta, uma única vez. O local fora bem escolhido. Era discreto e sombrio, passava despercebido por quem resolvesse andar por ali, porque situava-se entre duas árvores impressionantes pela grossura dos seus troncos, indicando que as árvores eram muito antigas naquele recanto. Havia um ligeiro perfume, conferido por pequenos botões floridos, de cor vermelha. O seu sorriso foi discreto sob a máscara.

A mão coberta com uma luva preta afastou as plantas, empurrando-as para baixo, desfazendo os frágeis nós. Parte do altar ficou à mostra e, sobre este, encontrava-se uma prancha com marcas de fogo, construída também da madeira recolhida nos arredores. O túmulo.

Sentiu a garganta comprimir-se, a secura a instalar-se.

Contemplava o local de repouso do grande lorde negro.

Debruçou-se sobre a pira funerária extinta que tinha sido posta sobre o altar, pelo menos a padiola onde o cadáver, ataviado com a sua armadura imponente, tinha sido depositado e onde ardera. Num lampejo vira a cena. A fogueira crepitando, o vulto negro diante desta, em homenagem. A feitura daquela obra, tanto da padiola, como do altar, não demonstrava uma especial aptidão de esmerado artífice, de carpinteiro experimentado, aquele era o resultado dos esforços de um amador que se servira dos materiais que encontrara e que os moldara de acordo com o resultado prático que pretendia, mas naquela sepultura improvisada existia um sentimento verdadeiro de perda e de lamento. Tocava na madeira com a ponta dos dedos e saboreava as lágrimas derramadas.

As cinzas cobriam os troncos que formavam o conjunto tumular. Não vira sinais de que tinham sido perturbadas desde o primeiro dia em que ali tinham sido consagradas. Percorreu-as com os olhos demoradamente, tentando visualizar o que tinham sido antes de serem aqueles despojos frágeis e mínimos.

Emocionado, levou as mãos à cabeça, destravou o mecanismo que ajustava a máscara ao seu rosto, retirou-a, pousou-a no sepulcro entre as cinzas.

Os seus lábios tremeram.

No extremo do altar, na zona da padiola onde estivera a parte superior do corpo, estava outra máscara, retorcida pelas elevadas temperaturas que incineraram tudo o que era perecível. O material com que tinha sido moldada era resistente e sobrevivera ao fogo e ao tempo. Sobrevivera para que fosse descoberta e recuperada.

Mudo e tolhido, Kylo Ren contemplava o rosto mecânico de Darth Vader.

E como o cavaleiro Jedi que o tinha derrotado e o tinha sepultado, como o grande Luke Skywalker, vencedor do lado sombrio da Força, rebelde vitorioso em Endor, Kylo Ren também chorou diante dos restos mortais do último dos Sith.

O seu avô, Anakin Skywalker.

O seu admirável avô, Darth Vader.


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Notas finais do capítulo

“Because” é a canção que precede o famoso medley do álbum Abbey Road e foi composta por John Lennon. É vocalizada pelos três Beatles, John, Paul e George, numa harmonia muito sugestiva que nos faz recordar a estrutura da música clássica. Segundo Lennon, esta canção foi inspirada na Sonata ao Luar, de Beethoven. A musicalidade evocada nesta canção é emocionante…

Que imagem poderosa ver Kylo Ren a caminhar pela floresta de Endor!
Este é o capítulo em que vemos, por fim, o mestre dos cavaleiros de Ren - ainda a arrastar consigo a memória (parcial) de Ben, o filho de Leia e de Han, sobrinho de Luke Skywalker, mas já totalmente compenetrado na sua nova identidade, Kylo Ren.
Movido pela sua obsessão, uma das suas primeiras missões foi... recuperar a máscara icónica de Darth Vader!

Próximo e ÚLTIMO capítulo:
E no fim, o amor que recebes é igual ao amor que dás.