Relíquia escrita por André Tornado


Capítulo 3
Juntem-se, agora, a mim


Notas iniciais do capítulo

He say I know you, you know me
One thing I can tell is you got to be free
Come together, right now, over me
Come Together por The Beatles, do album Abbey Road, Lennon & McCartney



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Na presença do Líder Supremo Snoke, ou melhor na presença do seu holograma instável em tons de cinza, preto e outros matizes que mascaravam a sua real consistência, as sensações vibravam no seu espírito num constante conflito. A imagem que se lhe apresentava naquela câmara imensa, entronizado e magnífico, destinava-se a esmagar através da emulação de uma superioridade divina, que se adivinhava pelo seu tamanho de colosso.

O local, em si, era desprezível. Um antigo salão de um palácio abandonado e que fora casa de senhores Sith bem-sucedidos, que tinham lutado pelas suas convicções nos tempos idos, muito recuados, da Antiga República e que tinham alcançado importantes vitórias sobre os Jedi. Tão importantes, que o seu governo estendeu-se a um punhado de sistemas da Orla Média durante um tempo considerável, assinalado em crónicas históricas, até, eventualmente, terem sido derrotados e o cosmos, supostamente, ter sido restabelecido com a obediência à legítima soberania da República.

As ruínas do palácio conservavam ainda alguma da sua imponência, mas as florestas agressivas circundantes tinham penetrado pelas brechas, misturando-se a pujança natural com o engenho outrora grandioso do homem. A arquitetura despedaçada guardava segredos do antigamente, poder, fantasmas, sonhos de grandeza, murmúrios, até desilusões.

Fora convocado para se apresentar naquele salão arruinado para se encontrar, por fim, com o misterioso mentor da revolta política que tumultuava a galáxia. Snoke, assim era o nome de quem se falava com temor e admiração, queria conhecê-lo. E ele também queria conhecer esse Líder Supremo que provocava acesos e inúteis debates no Senado Galáctico, em que a sua mãe já pouco participava, remetendo-se a um silêncio preocupante, pois a senadora Leia Organa só se calava para contra-atacar com uma força inaudita.

O holograma estava recolhido na penumbra, encostado ao espaldar do trono, escondendo o seu rosto na escuridão, do qual se via somente o vulto de um gigantesco crânio calvo. Dir-se-ia que observava e analisava antes de começar a falar, pois as suas palavras eram preciosas e não as dispensava levianamente. No entanto, a improvisada sala de audiências não estava num completo silêncio. Escutava-se um gorgolejo, similar a um ronco prolongado, que dava a impressão de que o Líder Supremo… dormia e ressonava, sentado naquele trono que não era completamente sólido. Havia uma grande pedra granítica que teria servido como altar e sobre esta, vindo com Snoke desde o local secreto onde se encontrava, estava o trono que existia apenas no local da emissão, onde o verdadeiro Snoke se sentava.

Enquanto aguardava ser interpelado, gerindo as sensações pujantes de expetativa, inquietação e esmagamento, a intencionalidade da declaração de escárnio, todo o aparato destinado a impressionar através de uma superioridade incontestável, ele começava a irritar-se. Julgava que era uma total falta de respeito ter sido enviado para aquele salão para estar a observar… Snoke a dormitar como um vulgar velho cansado, cheio de fantasias sobre o domínio galáctico que convertia em discursos bonitos que convenciam os néscios.

Começava, seriamente, a desiludir-se. Quando ele ficava desiludido, tornava-se instável e perigoso, capaz de ações ainda mais contundentes que os contra-ataques da sua mãe senadora.

O templo Jedi de Luke Skywalker era visitado amiúde por um velho da mesma têmpera, ou seja, curvado pelos anos de frustrações e com histórias coloridas por palavras belas que faziam um certo sentido para as mentes crédulas. Chamava-se Lor San Tekka e era um sacerdote de um culto relacionado com a Força, embora o homem não fosse sensível à energia cósmica, nem tivesse sido um dos Jedi reconhecidos pelo Conselho dos guardiões da Antiga República. Assistira à infame Guerra dos Clones, à ascensão do Império Galáctico e à queda do Imperador Palpatine, ao dealbar dos ideais democráticos embutidos na esperança da criação da Nova República. Era alguém que trabalhava com o seu tio na coleção das tradições dos antigos Jedi, em forma de holocrons que ele tinha recolhido nos seus anos de clandestinidade, enquanto se escondia do Império, e que também ajudava com os aprendizes, em preleções sobre os dois lados da Força, realçando o poder da luz e abjurando a perdição das sombras.

Falara algumas vezes com Tekka, em particular, durante longos passeios pelas alamedas que rodeavam o templo Jedi, caminhos pobres rasgados entre pedras, que alguns aprendizes, nomeadamente as mulheres, gostavam de tentar embelezar, montando as rochas para que se parecessem com esculturas. Um trabalho inglório, pois essas peças acabavam sempre por ruir. Conhecia as ideias de Tekka, tentara uma vez debater com ele apresentando um ponto de vista contrário aos seus argumentos ingénuos de uma paz duradoura, mas fora trucidado pela veemência e autoridade do sacerdote. Tekka não chegara a ser ofensivo, nem bruto, fora tão categórico, persuasivo e demagógico que ele passara a evitá-lo, pois não desejava ter outro debate que terminasse com outra derrota ideológica. Ele podia não saber explicar-se convenientemente naquela época, por falta de recursos linguísticos, de retórica e de semântica, mas tinha as suas interrogações e sabia muito bem o que sentia dentro de si. Tivera uma ligeira esperança de que Tekka, ao contrário de Luke Skywalker, pudesse alcançar esse núcleo emaranhado de questões que trucidavam, aos poucos, as suas crenças e, por arrasto, a sua alma, mas Tekka estava mais interessado em agradar ao mestre Jedi, do que ensinar os seus alunos noutras vias possíveis do entendimento sobre a Força.

Ele não se esquecera de Lor San Tekka.

Um dia haveria de reencontrá-lo e vingar-se pelo seu desleixo. O Império Galáctico não tinha conseguido pôr-lhe as mãos em cima. Mas ele haveria de encontrá-lo e abatê-lo… No buraco onde estivesse escondido, como o verme cobarde que era.

O crânio do holograma moveu-se lentamente, de um lado para o outro, numa típica oscilação sonolenta. Ele cerrou os dentes, crispou os punhos, a raiva borbulhando dentro de si. A paciência esgotava-se, as trevas que ele sempre tinha travado para não ter explosões de génio, que sempre o tinham assolado desde criança – quando o contrariavam berrava, pontapeava tudo o que encontrasse pela frente, esmagava com um simples pensamento, as faíscas, as explosões, o metal retorcido eram comuns nos seus momentos de ira – andavam agora soltas pelo seu espírito e ele já não as continha, como parte essencial do seu autodomínio. Se o aborreciam, batia. Se o ofendiam, matava. Se o maltratavam, obliterava.

A primeira vez que se encontrara com um Líder Supremo acontecera quando tinha nove anos e acompanhara a importante senadora Leia Organa, ao sistema Hythera dos mundos das colónias. Estavam acompanhados de alguns servidores da casa dos Organa, que a sua mãe quisera reconstruir, parcialmente com sobreviventes do extinto planeta Alderaan, como forma de legitimar a sua posição como herdeira dessa família real e cimentar a sua carreira política que conhecia uma fama impressionante. Nessa altura, o pai, Han Solo, afastara-se deles, talvez melindrado com a proeminência da mulher, ou qualquer outra coisa que se relacionaria com a personalidade procelosa de Leia Organa, que tudo varria ao seu redor como um canhão laser de largo espectro. Han Solo regressara às suas viagens de negócios através da galáxia com a Millenium Falcon, acompanhado de Chewbacca. A mãe nunca lhe contara, mas ele sabia que os negócios do pai se relacionavam com atividades ilegais e censuráveis de contrabando.

Antes de visitar o Líder Supremo, designação pomposa para o chefe de uma população indígena de Hythera, que usava esse título por ter relações muito importantes com outros sistemas, pequenos reinos que governava à distância e cujo apoio era essencial para uma qualquer ação do Senado, ele recebera algumas instruções da mãe sobre como se devia comportar perante alguém com esse estatuto. Era tudo uma novidade e ele absorvera as indicações com entusiasmo, no fim de contas era uma criança curiosa, normal, igual a tantas outras crianças.

Nesse dia, ele portara-se bem. Nunca falou sem que falassem primeiro com ele, fez todas as vénias protocolares, colocou-se uns passos atrás da mãe, mas ao lado dela, e nunca desviou o olhar do Líder Supremo, mostrando-se amigável e descontraído na postura.

Curiosamente, no salão palaciano arruinado, diante da imagem cristalizada do Líder Supremo Snoke, relembrou os pormenores dessa lição e comportava-se da mesma maneira, não fosse a irritação que corroía os alicerces da sua boa educação e que o tornava rígido e impertinente, em vez de amigável e descontraído. De resto, fazia como lhe tinha sido ensinado. Esperava que o interpelassem e não desviava o olhar do vulto escuro daquele crânio imenso que sussurrava pronunciadamente. Estava sozinho, por isso não tinha de se colocar atrás de ninguém.

Os dois Líderes Supremos que se tinham cruzado na sua vida eram de um desapontamento atroz. Se o primeiro era um alienígena bonacheirão, que falava por meio de grunhidos entre a língua-comum da galáxia, este Snoke, que deveria ser mais extraordinário por causa da reputação que o antecedia, era-o apenas devido à sua estatura descomunal, uma triste imagem que, até onde ele podia confiar, podia servir para mascarar a verdadeira natureza da criatura que estava a ser transmitida.

Habituado a questionar tudo o que interagia com ele, a duvidar de tudo o que lhe apresentavam para não se deixar enredar em supostas honestidades e outros espartilhos de carácter, não compreendia a razão de tanto teatro. A viagem secreta, com vários desvios de rota para despistar espiões e perseguidores, a conferência com um holograma, a espera num silêncio confrangedor.

No exterior do palácio estava a nave que o tinha transportado até ali. Não conhecera o piloto, mas conhecera, inevitavelmente, a sua escolta. Dois mascarados que tinham no cinto o seu respetivo sabre de luz, detalhe que ele considerou escandaloso, e que cobriam os ombros com uma pesada capa negra.

— Por que razão o Líder Supremo não veio receber-me pessoalmente? – perguntou enfadado, acentuando a sua contrariedade numa expressão pedante.

Nenhum dos mascarados se acanhou ou se ofendeu perante a demonstração de orgulho de príncipe mimado. Conheciam-no de reputação, sabiam quem procuravam quando se lhe dirigiram, no entreposto comercial clandestino daquele asteroide, onde ele comprava uma passagem anónima para se refugiar na Orla Exterior. Chamaram-no pelo nome completo e ele tinha estremecido de horror, por odiar tanto aquele maldito nome. Obi-Wan Amidala Skywalker Antilles Organa.

— O Líder Supremo não recebe ninguém pessoalmente – explicou um dos mascarados. – Só através de holograma e depois de ter a certeza que a transmissão será feita de modo completamente seguro. É também o Líder Supremo que escolhe o local para a receção da transmissão, usualmente antigos lugares que estão ligados à História dos Sith. Onde existem mais sombras, estás a ver?

A História a assombrá-lo, em contínuo.

— Ele não confia em mim?

— Ele não confia em ninguém, muito menos num Skywalker.

Ofendeu-se até à medula. E quem o ofendia, morria.

O segundo mascarado pousou uma mão no seu ombro.

— A surpresa vai compensar os incómodos.

Mas Snoke confiava nele. E bastante. Descobriu isso pouco tempo depois, com alguma perplexidade e desconfiança, mas não desdenhou a oportunidade que se adequava à sua personalidade e, mais importante, às suas necessidades. A oferta, estranha e desadequada, poderia ser retirada a qualquer momento. Quando se lidava com criaturas irascíveis e instáveis, o modo de sobrevivência deveria estar ligado permanentemente. E ainda bem que não tinha assassinado aquele par misterioso que o acompanhava até ao antigo palácio dos Sith. Teria perdido a diversão de os ter torturado, posteriormente.

Snoke confiava tanto nele que fez de um Skywalker o mestre dos cavaleiros de Ren, a designação do corpo ao qual pertenciam os dois homens. Guerreiros que se vestiam de negro, que usavam armaduras e elmos, que manobravam um sabre de luz. Não eram Sith, apesar de se afirmarem como os herdeiros do lado sombrio da Força e de terem sido criados para preencher o vazio criado com o desaparecimento de Palpatine e de Vader, os últimos na linhagem desses senhores do Mal. Não eram Sith, apesar de combaterem fanaticamente os Jedi e tudo o que representavam.

Não era difícil derrotar aqueles que eram os seus jurados inimigos. Havia um único Jedi na galáxia, Luke Skywalker, rodeado de aprendizes inofensivos, apoiado por um velho senil, Lor San Tekka, e por outros idealistas que, ao primeiro cheiro de sangue, iriam encolher-se.

Tudo isso, contudo, a liderança dos cavaleiros de Ren, a destruição do templo Jedi, iria acontecer depois daquele primeiro encontro dececionante e embaraçoso. Pelo menos, até ali, corresponder à convocatória de Snoke que queria tê-lo perante o seu trono estava a ser uma desilusão e um embaraço.

— Sinto em ti… o poder da Força negra.

A voz profunda sobressaltou-o.

Uma corrente elétrica atravessou-o, esfriando as extremidades do seu corpo. Deixou de sentir os dedos das mãos que abriu, como se tivesse perdido o controlo sobre os tendões, desfazendo os dois punhos tensos que tinha formado com as mãos firmemente cerradas. O frémito gelava-lhe também o coração, fazia-o inerte e vulnerável. Algo estava a manobrá-lo. Alguém, seria mais apropriado…

Contudo, a cólera derivada de toda aquela provocação potenciada por uma espera absurda continuava encapsulada no seu espírito irrequieto e ele sentia-a como uma entidade bestial que rasgava os limites da sua prisão, não se importando com o gelo que iria encontrar caso prosseguisse com a fuga. Morreria nesse frio, mas até acontecer agitava-se, transformando o seu interior numa contradição magoada.

O Líder Supremo inclinou-se e o crânio assomou-se o suficiente para se mostrar sob a ténue luz do salão. O feixe esbranquiçado iluminou um rosto deformado por uma cicatriz que lhe afundava os ossos da cabeça. Os olhos eram buracos sem vida, a boca era uma linha inflexível, o queixo espetado e afilado. Um monstro envelhecido que finalmente se dignara a falar com ele e que, com uma simples frase, atingira-o com violência. Os braços longos repousavam sobre os joelhos ossudos. Perscrutava-o demoradamente, com deleite, com interesse.

Provavelmente Snoke nunca estivera a dormir, nem nunca estivera alheado. Uma dissimulação que lhe tinha eliminado as defesas e tinha exposto o que, supostamente, Snoke lia nele. Força negra? Poder?

Ele era um Skywalker, lembrou-se confuso, enfraquecido, tão gelado como um cadáver. Num lampejo viu o olhar compassivo de Tekka explicando os mistérios revelados pelo exercício da meditação, viu o olhar incisivo de Luke alertando para os perigos fingidos nas lições enganadoras, viu, estranhamente conseguiu ver, o olhar desiludido de Leia falando sobre as suas ambições esmagadas. Viu o Universo implodir e no vácuo ulterior restaram ele e Snoke, naquele palácio dos Sith.

Ele erguia o pescoço com altivez, combatendo os seus instintos que o avisavam para usar as suas defesas, como o medo e a dissimulação. Não tinha energias suficientes para avançar mais, nem conseguia lembrar-se de como poderia combater aquela imensidão de promessas personificadas pelo Líder Supremo.

Havia ali milhentas verdades que não conseguia reter e depois repetir, ou sequer lembrar-se e usar noutra ocasião.

Eram verdades, todavia, e isso foi o bastante para não abandonar o salão com uma vénia, despedir-se e ignorar aquela tentação. Verdades… Precisava destas. Estava farto de mentiras, de enganos e de constrangimentos.

A garganta de Snoke gorgolejava, num som asqueroso de gosma presa antes de se soltar e desimpedir as vias respiratórias. Os olhos opacos fixavam-no avidamente. Liam-no, despedaçavam-no, engraçava com a raiva dentro dele, mantinham-no frio e submisso, preso em promessas.

— Tens sempre vivido do lado contrário. A luz… A luz não te serve, queima-te. Estás condicionado pela luz… Não desenvolves o teu verdadeiro potencial, a tua verdadeira essência. Tens tanto dentro de ti, jovem Skywalker…

— Tenho crescido a escutar o que me estás a dizer – disse ele, desafiador, elevando a voz para poder igualar o timbre grave do Líder Supremo. – Julgava que, ao ter vindo até aqui, terias algo novo para me oferecer… Pelos vistos, enganei-me.

— Tu não és feito de luz, nem de sombras – prosseguiu Snoke como se não o tivesse escutado. – Tu não és só um dos lados da Força, és todos os lados. Existes num equilíbrio precário que faz de ti um guerreiro ideal porque não te deixas condicionar pelos extremos. Esse ponto intermédio torna-te extraordinário. Mas também te está a desfazer, a corromper. Sabes que estás a enfraquecer, de dia para dia, se não tiveres o professor certo para explorar esse potencial.

— Não tens nada que me possas oferecer que eu já não conheça. És como todos os outros, que apenas querem usar-me. O Jedi Skywalker quer a minha luz, tu queres as minhas sombras. Eu, pelo contrário… quero tudo!

— Comigo, terás tudo.

Snoke abriu uma das mãos enormes. Ficou voltada para o teto rachado, como um cálice formado pelos longos dedos. Revelou, ávido:

— Quero-te para meu aprendiz.

— Estou a perder tempo…

— Estás perdido, foste abandonado. Não tens ninguém para te ajudar a desenvolver as capacidades únicas que sentes dentro de ti. O Jedi Skywalker apenas quer a tua luz… Eu quero as tuas sombras, não o nego, mas também quero a luz. Quero que a sintas, que a percebas, que a domines… Para que depois consigas eliminá-la definitivamente.

Dobrou lentamente os dedos da mão, unindo-os pelas pontas, deixando um espaço entre estes, formando uma prisão.

— Vou mostrar-te um novo conceito, em que te fortalecerás através dos equilíbrios que tu próprio irás definir. Aos poucos, saberás onde te encaixas, onde serás perfeito e invencível. Tu é que farás as escolhas, não te vou obrigar a nada.

— O que pretendo é compreender o meu próprio poder e servir-me dele, de forma implacável, sem tremer a mão.

— Dar-te-ei o que pretendes… Irás descobrir-te e irás maravilhar-te.

— Quem sou eu?

— Hoje, não te posso responder a essa pergunta…

— E poderás responder-me, mais tarde?

— Depende…

— Do quê?

— Do Mal que estás disposto a absorver, do Bem que estás disposto a prescindir.

Ele sorriu de viés, ao captar a contradição.

— Então, sempre é uma questão de luz e de sombras.

Snoke tornou a recostar-se no trono, tornou a esconder-se na penumbra.

— Se saíres deste palácio, tornar-te-ás uma de duas coisas. Ou serás o meu inimigo, porque lutarás ao lado de Luke Skywalker e de todos os Jedi ineptos que ele está a treinar para a condenação e para a morte. Esse combate acontecerá contra os meus poderosos cavaleiros de Ren, dos quais já conheceste dois e percebeste como podem ser temíveis.

— Dificilmente me assustaram – opinou, zangado.

— Ou serás um proscrito, à margem da futura guerra, sem um lugar digno para ocupares e que faça jus às tuas maravilhosas habilidades que irás desperdiçar em momentos de revolta desajustada e vazia. Ninguém te vai levar a sério se atuares sozinho e se fores egoísta.

— Continuas a colocar o assunto como uma simples variação entre Bem e Mal. Existem sempre duas hipóteses, não mais do que duas.

— Já desististe da academia Jedi, vais desistir também daquilo que te estou a oferecer. E nem sequer conheces a verdadeira amplitude da minha oferta.

A voz elevou-se num urro:

— Pensa, jovem Skywalker! Pensa bem! Tu já procuravas por mim, antes de eu te procurar. Sou eu quem te vai esclarecer e quem te vai conduzir à glória. Serás tão odiado, temido e venerado como aquele que mais admiras. O teu sangue ferve quando pensas nele, eu sei…

— Falas de Vader?

— O destino do neto do último dos grandes lordes Sith é grandioso. Não consegues ter essa visão através da Força? Não estás a realizar o teu exercício corretamente. Não estás a vislumbrar o teu caminho, porque carregas os pesos impostos pelos freios e pelas precauções do teu mestre Jedi, que te nublam a mente. – Cuspiu as palavras, com desprezo: – Mestre Jedi! Irei destruí-lo facilmente.

— E tu poderás mostrar-me… esse destino grandioso?

— Claro que sim. Eu próprio já o vi. Tu és um líder de povos. Tu és o líder do Mal!

— Disseste-me que tenho em mim o equilíbrio dos dois lados da Força. Como posso ser o líder do Mal? Implica que irei decidir-me por um desses lados. Perderei o que me torna… extraordinário! – contestou irritado. – Se optasse por seguir a Luz, também poderia ser um Líder do Bem. Como o Jedi Skywalker pretende.

Um dedo espetado elevou-se na bruma negra.

— Sim! Sim! E tornar-te-ias fraco, manobrável, destrutível. Tombarias no meu campo de batalha, agarrado a uma crença morta e falível. Jovem Skywalker, eu conseguirei extrair de ti o melhor que guardas nessa alma atormentada, porque não te vou impor nada. Tu descobrirás o teu ponto de chegada na imensa viagem que irás fazer ao meu lado, como meu aprendiz. E verás que será o Mal, que será a Força negra, a escuridão, o melhor dos aliados. Tu saberás o que fazer com a Luz, melhor do que se fosse eu a mostrar-te. Tu poderás fazer tudo sem que eu te condene pelas tuas opções.

— E se eu optar pela Luz, durante os teus ensinamentos?

Snoke riu-se.

— Eu nunca me engano, jovem Skywalker.

De repente, ele agarrou-se à cabeça que começou a latejar terrivelmente. Dobrou-se a gemer dolorosamente, tentando debelar aquele sofrimento inesperado que o atacou, que o deixou cego e ofegante, a suar sem controlo. Sentia o rosto encharcado, o corpo antes frio a aquecer-se febril, o foco do mal-estar a provir do seu cérebro que se contorcia em pura agonia, como se se quisesse escapar da caixa craniana. Percebeu que era Snoke que fazia uma exploração intrusa da sua mente, remexendo em todas as suas memórias, tornando a experiência estranhamente física, dorida, aflitiva e horrenda, em todos os aspetos.

Por detrás das pálpebras fechadas via luzes a piscar rapidamente, as lembranças misturavam-se, sobrepondo ódio ao amor, dor ao prazer, tristeza à alegria. Tudo se tornou negro e deprimente, onde antes havia algum brilho e bonomia. O calor sumiu-se, restou o frio. As certezas foram-se e ficou um absoluto desnorte. Desilusões sobre extravagâncias, solidão acima de companhia, amargura sobrepondo-se a tranquilidade. Havia um vazio desolador onde anteriormente se erguia um edifício sólido.

— Compreendes a tua essência?

A pergunta de Snoke reverberou no ar do salão.

Estava derrotado, mas não o demonstrou. Nunca iria dar a satisfação, a quem quer que fosse, nem àquela criatura omnipotente, que o vissem derrotado. Caído, talvez, ferido, inconsciente, mas nunca subjugado. Aguentou-se firme sobre as pernas trémulas. Soltou a cabeça, os braços grandes e desajeitados balançaram ao longo do corpo. O estômago revolvia-se em espasmos e ácidos, susteve o vómito. Os olhos ardiam, estariam vermelhos. A raiva desaparecera e o sangue, que parecia ter confluído para o coração para mantê-lo a bater enquanto Snoke lhe invadia a mente, cravando nessa exploração algo semelhante a cacos de vidro imaginários que lhe destruíram as memórias, não irrigava as outras partes do organismo e decerto que empalidecera até se mostrar semelhante a um condenado sentenciado à morte.

Então, Snoke disse-lhe:

— Tanta maldade que te fizeram, meu aprendiz. Depois de ver, compreendo como desejas a minha proteção. Como a buscavas com tanta insistência e desespero. Vejo em ti tantas faces do Mal… Abandono, desleixo, desamor… Vejo em ti a necessidade de pertenceres a um lugar. Eu sou esse lugar!

— Sim, Líder Supremo.

Não era ele que respondia, era a sua boca exangue e seca, era a sua cabeça devassada, era o seu espírito carente, era o seu corpo mole. Era ele inteiro e partido, ao mesmo tempo. O equilíbrio a desfazer-se, entre luz e sombras, a recuperar-se na tal planície devastada onde se encontrava agora, nu e a aguardar pelo conforto da capa que em breve lhe aqueceria os ombros tiritantes, num outro equilíbrio que ele iria definir com os seus próprios dogmas. A comissura dos lábios torceu-se num esgar que lhe mostrou os dentes. Desejava, insensatamente, o amplexo daquele holograma intangível.

Não lhe parecia assim tão execrável, censurável, condenável.

Ele tinha procurado sozinho, sempre sozinho, malgrado o insistente acompanhamento do tio, a pedido da sua mãe, do desenvolvimento da sua personalidade com base na sua herança e na Força, pelas respostas aos grandes mistérios que o assombravam nas longas noites de insónia. Nunca ninguém tinha conseguido penetrar no âmago, naquele poço tenebroso, onde ele gritava por ajuda.

Tentara com a rebelião juvenil e falhara.

Tentara com os Jedi e falhara.

Snoke anunciou, solene, oculto na escuridão:

— A partir de hoje, por me teres aceitado como o teu mestre, incluo-te nesse venerável corpo de elite que são os cavaleiros de Ren. Escolherás a tua armadura e a tua máscara, o seu desenho único, que deverás usar enquanto estiveres em missões oficiais em meu nome. A partir de hoje assistimos ao teu renascimento e, por isso, tens direito a seres chamado por um novo nome… Serás Ren, Kylo Ren, porque és o décimo primeiro cavaleiro. A arma dos meus nobres defensores… é um sabre de luz. Sei que tens contigo o punho da espada que construíste quando treinavas com os Jedi. Vais alterá-la e refazê-la. Utilizarás um cristal kyber que te será oferecido após um grande sacrifício pessoal, o primeiro de todos aqueles que te serão exigidos. A lâmina será rubra.

As mãos alvas de Snoke pousavam nos braços do trono.

— Terás vários aliados, vários amigos, que deverás descartar sem misericórdia. Vou mostrar-te a verdadeira face do poder. O medo, a segurança, a Luz, as Trevas, o ódio, o amor. Vais livrar-te de tudo, até restares tu… puro diante do Universo. Atingir esse derradeiro estágio de sabedoria… vai exigir-te equilíbrio. Sei que o encontrarás, Kylo Ren.

— Sim, Líder Supremo.

O holograma desapareceu com um zumbido

Ficou o silêncio e ficou ele, que se viu curvado numa deferência, que se viu sozinho diante de um antigo altar dos Sith, despido e desfeito.


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Notas finais do capítulo

“Come Together” é a canção que abre o álbum Abbey Road, escrita principalmente por John Lennon, sendo ele o cantor. Especula-se que cada verso se dirija a cada um dos membros dos Beatles. É uma das canções mais reconhecidas do grupo e tem conhecido inúmeras versões feitas por outros artistas. A letra conta-nos a história de um líder poderoso, muito seguro de si próprio…

O encontro de Ben com Snoke parecia pouco promissor, mas o Líder Supremo não quis largar a sua presa, a sua mais importante aquisição para o seu corpo especial de guerreiros da escuridão, os cavaleiros de Ren.
A aranha capturou a mosca na sua teia.
Para a escolha do nome Kylo optei por uma solução bastante simples: K é a décima primeira letra do alfabeto... O que implica que os outros dez cavaleiros terão nomes começados por A, B, C, D...
Temos, assim, e na visão desta história, a criação de Kylo Ren.

Próximo capítulo:
Porque o céu é azul, faz-me chorar