Relíquia escrita por André Tornado


Capítulo 5
E no fim, o amor que recebes é igual ao amor que dás


Notas iniciais do capítulo

And in the end, the love you take is equal to the love you make
The End por The Beatles, do album Abbey Road, Lennon & McCartney



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Da ponte do cruzador estelar Finalizer, uma nave do modelo Resurgent, cujo desenho fora inspirado nos majestosos destruidores estelares da classe Imperial do Império Galáctico, Kylo Ren conseguia tocar nas profundezas do espaço. Ele não estacionava junto à janela panorâmica para distrair-se com a visão do vazio, porque ele nunca se distanciava das suas exigentes obrigações, ou para limpar a mente, porque ele nunca acumulava questões supérfluas no seu cérebro em constante atividade que carecessem de uma limpeza. Ele colocava-se diante da janela para, com o auxílio inefável da Força, realizar buscas sistemáticas e encontrar uma determinada assinatura espiritual.

O empreendimento não era fácil. Quem ele procurava era experimentado na energia cósmica que permeava a matéria celeste, que tudo ligava e tudo rodeava. O melhor dos melhores, o único e último cavaleiro Jedi. Luke Skywalker.

Já não o percebia como o seu tio, um parente próximo, ligado a si pelos laços inquebráveis de sangue, alguém com quem privara de perto e que fora, de algum modo, um amigo. Talvez até um pai… Via-o agora simplesmente como um inimigo, o mais poderoso de todos, que era preciso abater para que os seus planos seguissem adiante. Triunfar onde o Império Galáctico tinha falhado.

Procurava-o porque o Jedi tinha fugido depois da destruição do templo onde ele montara a sua academia para treinar novos aprendizes e reerguer a Ordem dos antigos cavaleiros pacíficos e justos, que auxiliaria a decadente Nova República na imposição da harmonia na galáxia – objetivo miseravelmente falhado. O Skywalker cobarde tinha-se escondido em parte incerta, ninguém sabia onde ele estava. Nem mesmo a Resistência, organização ilegal e clandestina onde se juntavam os amigos e os aliados do Jedi.

A identificação do seu esconderijo tinha-se tornado uma prioridade. Enquanto Luke Skywalker vivesse, havia o risco sério de uma sublevação baseada nos enganos proporcionados pelos ensinamentos relacionados com o lado luminoso da Força. Noções como a bondade, a caridade, a liberdade, a generosidade apenas serviam para gerar insatisfações que descambavam em anarquia, em contestação ao poder instituído. A Resistência apregoava esses paradigmas, essas falsidades.

Foram despachadas sondas por toda a galáxia, subornos eram pagos a soberanos e a chefes de bandidos para reportarem qualquer avistamento, os principais sistemas encontravam-se de sobreaviso, mas Luke Skywalker não era avistado em lado nenhum. Havia boatos de que existiria um mapa secreto que levaria até ao local onde se escondia, mas até à data nenhum tinha sido confirmado e o mapa não aparecia. Estudavam-se antigas cartas estelares imperiais, esquadrinhavam-se asteroides e planetas minúsculos dos territórios menos conhecidos, mas Luke Skywalker continuava incontactável.

Nem mesmo as explorações mentais de Kylo Ren, de pé parado diante da janela panorâmica da Finalizer, produziam qualquer resultado.

Mas ele não iria desistir. Haveria de encontrar o seu inimigo. Jurara descobri-lo e definira esse magno objetivo para si. Solicitara ao Líder Supremo os meios necessários para cumprir a missão de encontrar, aprisionar e neutralizar o cavaleiro Jedi, que incluíam vasos de guerra, veículos de assalto, armamento e respetivas munições, homens em estado de prontidão. Quando revelara que, em complemento a todo o aparato que tinha à sua disposição, também procurava o Skywalker através da Força, Snoke mostrara-lhe um sorriso torto, louvando-o pela iniciativa, repreendendo-o a seguir por ser demasiado ingénuo.

— O Jedi esconde-se de mim. Se eu não o encontro, tu também não o conseguirás fazer, Kylo Ren. – A seguir pediu-lhe, ressentido e áspero: – Continua a tentar… Nunca desistas. No dia em que desistires, de qualquer propósito que me comuniques ou que eu te venha a incumbir, irei considerar-te um fraco e deixarás de honrar os guerreiros negros.

Não se ofendera com a repreensão, nem com a aparente falta de confiança. Considerava a exigência legítima, a censura adequada.

O Líder Supremo não o encorajara, mas também não o tinha claramente demovido, pelo que Kylo Ren, na ponte do cruzador estelar, com uma serenidade gelada, continuava a procurar por Luke Skywalker através da Força.

A margem para erros era inexistente, porque a reconstrução da galáxia depois do descalabaro daqueles últimos anos, privados de um governo forte e impiedoso, obrigava a passos seguros na direção do futuro, sem contratempos derivados da incompetência e da hesitação.

Em toda essa empresa global estava em causa a probidade e a reputação da organização que conduzia o processo de revolução pela força bruta, a Primeira Ordem, que Snoke representava e que ele integrava, nascida dos escombros fumegantes do Império Galáctico, forjada a partir do metal derretido dos sonhos megalómanos de um soberano absolutista.

Após a Batalha de Endor, privados da liderança do Imperador Palpatine que morrera nesse confronto decisivo em que a Aliança para a Restauração da República conhecera um brilhante triunfo militar, o poder residente em Coruscant encetou variados encontros diplomáticos com os rebeldes tendo em vista a transição de competências e o estabelecimento de um novo governo que servisse os interesses mútuos.

Alguns almirantes, porém, não se sentaram à mesa das negociações. Reuniram uma frota ofensiva e desafiaram a Aliança para uma última batalha que iria definir o destino da galáxia. E assim aconteceu. A Batalha de Jakku, como ficou conhecida, terminou finalmente com as ambições imperiais. Os almirantes que não foram mortos nesse dia acabaram capturados e sentenciados pelos tribunais, entretanto montados pela rebelião, que estavam a julgar os crimes de guerra. Toda a organização militar do Império foi desmantelada, os exércitos e a armada colocados sob as ordens dos Mon Calamari, aliados dos rebeldes. Foi assinada a vergonhosa Concordância Galáctica que punha um fim à guerra civil e que dissolvia o Império.

O contrato firmado não agradou a todos, obviamente. Oficiais, stormtroopers, pessoal técnico, políticos, nobres, senhores da guerra refugiaram-se nas Regiões Desconhecidas e juraram ressuscitar o extinto Império Galáctico que tinham servido e que os servira tão bem. Assim foi o nascimento da Primeira Ordem. Porque essa era, de facto, a primeira ordem que todos tinham e à qual obedeciam sem vacilar. Recomeçar, apoiados nos princípios rígidos do regime imperial, e, daquela vez, fazê-lo corretamente.

Uma das primeiras medidas da Nova República foi recuperar o Senado Galáctico e promover eleições livres, instaurando a democracia entre as estrelas. Os políticos que se mantinham fiéis ao Império, refugiados nas Regiões Desconhecidas, começaram a influenciar os partidos com assento no senado e que se mantinham ideologicamente próximos dos ideais imperiais, conseguindo, mais tarde, que eles próprios fossem também eleitos. A estratégia era simples. Utilizavam o Senado para subverter o sistema, começando a fomentar a noção de que a galáxia estava a resvalar para o caos sob o governo da Nova República que, graças aos seus métodos brandos e evasivos, não conseguia impor a ordem necessária para a reconstrução exigida a seguir à guerra. Enquanto isso, a Primeira Ordem empreendia um estupendo esforço para se equipar militarmente, apoiada por vários sistemas que subjugava e escravizava, servindo-se dos antigos segredos das forças armadas do Império para produzir um exército superior àquele que o Império Galáctico possuíra.

Este processo foi sendo encoberto pelos políticos, que no Senado passavam mentiras propositadas que indicavam que a Primeira Ordem era inofensiva e que não tinha qualquer apoio significativo dos sistemas mais importantes, que poderiam fornecer tecnologia e equipamentos. Ao mesmo tempo, desenvolviam contactos secretos com os planetas mais ricos para injetar milhões de créditos que permitiam o financiamento desse esforço bélico, que permanecia secreto. O objetivo final era declarar guerra à Nova República, num momento em que as forças da Primeira Ordem seriam muito superiores e que garantiriam uma vitória fácil e rápida.

As movimentações de bastidores implicavam também o recrutamento de políticos ambiciosos, nomeadamente os Centristas, como agentes desestabilizadores, que pronunciavam discursos em defesa da Primeira Ordem e dos seus princípios inócuos, atestando que não passavam de uma ideologia como qualquer outra, assente em princípios mais firmes do que aqueles defendidos pelos Populistas, por exemplo – o que enfurecia esse partido –, enquanto outros afirmavam, convictos dos relatórios fabricados que lhes eram fornecidos, que não passavam de invenções fantasiosas as notícias de que a Primeira Ordem se encontrava fortemente armada.

O cérebro por detrás de tudo era o Líder Supremo Snoke que, para além de ser um estratega astucioso e um estadista empenhado, era também sensível à Força e conhecia a importância de possuir um corpo especial para auxiliar a Primeira Ordem no cumprimento das suas diretivas extraordinárias, ou seja, o controlo da parte espiritual e incorpórea da galáxia, em que existiam também confrontos invisíveis entre dois opostos em equilíbrio precário. O Bem e o Mal. O lado luminoso e o lado sombrio da Força.

Se o Império Galáctico tivera o importante apoio do poder negro dos Sith, Snoke criou os cavaleiros de Ren e dotou-os de habilidades extraordinárias, adquiridas através de um treino intensivo e místico, acessível apenas àqueles que sentiam o despertar da Força. Podiam perfeitamente serem admitidos na academia do Skywalker e tornarem-se Jedi de pleno direito, mas ao serem convertidos para as maravilhas tenebrosas do lado sombrio, essas criaturas tornavam-se em cavaleiros Ren, herdeiros dos poderes dos temidos Sith.

Entrementes, os agentes clandestinos infiltrados no Senado Galáctico assumiam, com cada vez maior proeminência, a defesa política da Primeira Ordem, legitimando-a no plano democrático. As últimas eleições intercalares tinham permitido aos Centristas alargar os assentos senatoriais e variadas intrigas, destinadas a afastar os senadores mais críticos em relação à Primeira Ordem, tinham sido reveladas. Entre estas contava-se a bombástica notícia do parentesco existente entre o antigo agente imperial Darth Vader e a senadora Leia Organa que terminara com a carreira promissora desta.

O dia em que se conhecera a verdade fora marcante, a todos os níveis.

Uma viragem evidente na História.

Vexada pelos ataques à sua reputação, enquanto real e sincera defensora da democracia, a senadora Leia Organa acabou por afastar-se do Senado Galáctico e fundou uma pequena organização, onde reuniu os seus apoiantes mais leais. Chamou-lhe Resistência e começou a operar nas sombras, igualando os métodos operacionais da Primeira Ordem que também gostava de laborar incógnita, através de fantoches que manipulava habilmente. Procurou obter o apoio do irmão, o Jedi Skywalker, mas ele manteve-se afastado, em lugar desconhecido, depois da destruição do templo onde ensinava.

Leia Organa não se limitou a lutar às escondidas. Continuou a falar no Senado contra a Primeira Ordem, utilizando palavras cada vez mais duras e inflamadas, mas poucos se convenciam do perigo mortal que pendia sobre a galáxia, que a senadora veementemente afirmava como concreto e elevado. Desmotivada por não conseguir convencer os seus colegas, foi-se afastando cada vez mais da tribuna onde discursava. Tinha também recebido conselhos para se resguardar, pois havia quem desejasse silenciá-la. 

A guerra ainda não tinha sido declarada oficialmente, mas o ambiente era tenso como se o conflito já existisse. Com o Senado Galáctico domesticado pelas mentiras, os dois lados definiam-se entre a Primeira Ordem, liderada por Snoke, e a Resistência, liderada por Leia Organa.

Kylo Ren relaxou os ombros. Abriu as mãos devagar, que tinha crispadas em dois punhos contraídos. Os dedos penderam, dormentes.

As estrelas piscavam na negra cortina do firmamento. O cruzador estelar navegava em velocidade subluz pelos territórios da Orla Exterior, para permitir uma transmissão mais adequada dos últimos dados recolhidos pelas sondas. Ele não acreditava que teriam alguma informação pertinente sobre Luke Skywalker, mas não interferia na busca sistemática que a Primeira Ordem realizava, pois também não era impedido pelo Líder Supremo durante os seus frustrantes exercícios para encontrar o Jedi com a Força.

Atrás da máscara preta e prateada, ele soltou o ar que retivera no peito.

Luke Skywalker não estava ali, em parte alguma.

Tudo se ligava, refletiu.

O dia em que soubera que Darth Vader era o seu avô fora também o dia em que tinham traído a sua mãe, a senadora Leia Organa, no Senado Galáctico. A voz dela tinha deixado de ser ouvida com o devido respeito, ela voltara as suas forças para outro tipo de luta, porque ela nunca deixava de lutar.

No dia em que Darth Vader passou a ser, oficialmente, o seu avô, a Primeira Ordem tinha obtido uma vitória importante na casa de democracia ao atrofiar uma das suas principais detratoras, a senadora Leia Organa. Tinha também posto em movimento a vontade da senadora de combater essa ameaça que ela considerava inadmissível, tinha também criado a Resistência.

No dia em que conheceu o seu novo avô, Darth Vader, ele tinha declarado morte à Ordem Jedi de Luke Skywalker, ao abandonar o templo com a ideia de regressar para arrasá-lo, porque odiava tudo o que ele representava, desde a sua prisão, até à sua humilhação.

Como sempre, Han Solo, o seu pai, estivera ausente.

Deu meia volta, enquanto colocava as mãos insensíveis atrás das costas. Começou a abandonar a ponte da Finalizer. À sua volta havia a azáfama típica de uma nave militar em plena ação. O crepitar dos painéis de instrumentos, comunicações e alarmes, as ordens dos oficiais, as respostas dos imediatos, os passos dos soldados de um lado para o outro a cumprir as diversas incumbências, androides a complementar o trabalho humano.

 Tudo se ligava, mas ele não se importava com essa transformação, o pormenor tão potente que causara uma inflexão no decurso da História. Até ele tinha mudado. Já não era o filho da senadora Leia Organa com um nome importante, já não era o aprendiz a Jedi de Luke Skywalker.

Era Kylo, o décimo primeiro dos cavaleiros de Ren, leal ao seu mestre, o Líder Supremo Snoke. Era, sobretudo, o herdeiro sombrio de Darth Vader.

Inteirou-se do curto reporte do capitão, que lhe transmitia os resultados preliminares obtidos pelas sondas. O que ele esperava. Fez um curto sinal com a cabeça, escondida pela máscara. Disse ao capitão, na sua voz mecânica, grave e abafada que deveria prosseguir com o que fora planeado. Não iriam deixar os territórios da Orla Exterior sem que todos os sistemas fossem esquadrinhados à procura de pistas sobre o paradeiro do cavaleiro Jedi.

Ele sabia que o velho Skywalker não estava ali. Porém, podiam descobrir alguém disposto a colaborar que indicaria um planeta, um lugarejo onde se esconderia um amigo do Jedi, alguém que os levaria até outro sistema onde possivelmente se encontrava o mapa perdido.

A ironia era que tanto ele, Kylo Ren, como a senadora Leia Organa procuravam por Luke Skywalker e faziam-no pelo mesmo motivo. A luz.

Sentiu um amargor no estômago.

Apressou-se e saiu da ponte. Trocou um olhar de relance com o general Armitage Hux, que comandava o cruzador estelar e toda a sua tripulação, mas não se cumprimentaram. A sua relação era estritamente profissional, existindo, de vez em quando, alguma picardia entre eles, estimulada pelas extremas ambições do general, pela intolerância crónica dele.

O jovem tenente, que defendia métodos rigorosos para a seleção, treino e apresentação dos soldados ao serviço da Primeira Ordem tinha conseguido a promoção a general, graças aos seus méritos pessoais que eram inquestionáveis, mas também porque era filho, contava-se que bastardo, de um dos fundadores da Ordem, o comandante Brendol Hux, que dirigira em tempos recuados a exclusiva Academia imperial de Arkanis. Hux tornara-se ainda mais fanático e presumido ao chegar a general, cultivando uma personalidade um pouco irritante e extremamente inconveniente. Armitage Hux era dos poucos que se atreviam a enfrentar Kylo Ren, nunca se rebaixando ante o protegido do Líder Supremo, acendendo raivas e rancores.

Por sua parte, o cavaleiro de Ren mais temido continuava a opinar a favor de um exército de clones em vez de homens tornados mecanizados através do exercício repetitivo e exigente, que derivava da cartilha da Academia de Arkanis, contrariava alguns comandos e recusava-se a obedecer aos ditames de Hux, o que muito irritava o general.

Kylo Ren esqueceu a sua concorrência surda com Armitage Hux. Passara tão depressa pela sua mente, como ele tinha passado pelo general, na ponte.

Percorria os corredores assépticos da nave na sua marcha habitual acelerada.

A Finalizer era, de momento, a sua casa. Estava em permanente deslocação e só raramente, quando a sua presença era indispensável, ele desembarcava no solo de um planeta ou lua, usualmente para concluir uma ação militar ou para se inteirar dos resultados, no âmbito da perseguição ao cavaleiro Jedi.

Com mais de nove mil pés de comprimento, equipada com a mais recente tecnologia bélica e aproveitando os últimos desenvolvimentos em termos de engenharia naval, a Finalizer era um navio de assalto magnífico, que se impunha através do terror. Estava armado com turbolasers e canhões de iões, mísseis defensivos e projetores de raios tratores. O seu poder de fogo estava reforçado com esquadras de caças TIE, veículos de assalto terrestre, transportadores de tropas de combate, vulgarmente designados por AAL, Atmosferic Assault Lander, e uma base prefabricada que podia ser erguida em qualquer lugar onde se quisesse estabelecer um quartel-general. Albergava uma população militar superior aos oitenta mil elementos, incluindo oficiais, pessoal diverso e cerca de dez mil stormtroopers altamente treinados. Tinha como competência principal servir de nave-bandeira numa frota, acrescentando-se a função de transporte militar, cargueiro e destruidor, quando designado para manobrar em cenário real de batalha.

Kylo Ren não estranhava habitar uma nave em viagem constante. Sentia-se mais confortável naquele ambiente frio e obscurecido, desprovido de privilégios, obrigado a cumprir uma hierarquia – embora ele se encontrasse no topo da mesma, reportando exclusivamente ao Líder Supremo – e uma rígida disciplina, onde os castigos eram severos. O luxo era inexistente, mas completamente diferente do ascetismo que tinha vivido no templo Jedi, que ele considerava despropositado e fingido. Na Finalizer ou em qualquer outro sítio que conhecera, enquanto membro da Primeira Ordem, aceitava com naturalidade qualquer indicação, porque existia uma lógica agregada e não se sentia obrigado a seguir algo que não se coadunava com a sua moral.

Descobrira que apreciava ser respeitado através do medo, porque era o mestre dos cavaleiros de Ren, o preferido do Líder Supremo, um carrasco impiedoso com as suas vítimas. Hux criticava-o furiosamente quando ele assassinava um soldado impertinente que lhe tinha desagradado, mas ele encantava-se com as reações do general e aproveitava para alfinetá-lo com a questão dos clones.

Descobrira que apreciava ser transportado de um lado para o outro, querendo isto dizer que tinha uma tripulação particular para o seu vai-e-vem, do modelo Upsilon, incluindo piloto, copiloto e navegador.

Detestava quando se via obrigado a pilotar, sentar-se aos comandos e revelar um dos seus defeitos mais secretos. Os seus dotes para a pilotagem eram sofríveis. Sabia conduzir uma nave com razoável competência, mas a sua perícia e improvisação em questões de navegação eram praticamente nulas.

Quando era rapaz tivera um professor excecional, que ele, todavia, não tinha aproveitado. O seu pai, um dia, tivera a brilhante ideia de o sentar aos comandos da Millenium Falcon, o lendário cargueiro YT-3000 que servira adequadamente a Aliança rebelde, depois de ter ganhado fama como a nave mais veloz da galáxia, que era capaz de fazer a corrida de Kessel em menos de doze parsecs. Característica essencial para escapar de todos os inimigos que Han Solo, o seu famoso pai, colecionara quando era um reputado contrabandista.

Bom, o certo é que a experiência de pilotar a Millenium Falcon tivera tanto de maravilha, como de trauma. O wookie Chewbacca sentava-se atrás dele, que ocupava o lugar de piloto, o seu pai servia de copiloto. Entre solavancos, berros, medos e decisões catastróficas que queimaram um motor, destruíram o compressor e inativaram o hiperpropulsor, ele sentia, cheio de vergonha, as lágrimas de frustração e de cólera a humedecer-lhe as faces quentes. O seu pai afirmava que nunca vira tamanha inaptidão, ele murmurava que estava a tentar, o cargueiro era demasiado velho e difícil de manobrar. Han Solo arrancara-lhe os comandos das mãos, ofendido com a crítica à sua querida nave.

O corelliano gostava mais da Falcon do que do seu próprio filho.

Depois desse dia horrível, jurara que só iria pilotar uma nave quando ninguém estivesse a observar.

Jurara também que nunca mais sairia de viagem sem uma tripulação.

O seu pai achava as mordomias do Senado Galáctico escandalosas, mas ele adorava-as, porque permitia-lhe ter essa tripulação e um transportador, porque era filho da senadora Leia Organa. A mãe era uma pessoa importante e ele, por ser filho dela, também se tornava importante. Podia usar o transportador da senadora e ele usava-o, para fazer visitas a locais de diversão, ou simplesmente para viajar pelas estrelas sem a pressão de estar a pilotar.

Ao lado da mãe sentia que podia fazer tudo o que quisesse. Ao lado do pai era vulgar, não passava de um rapazinho desajustado, que fazia levitar objetos quando estava aborrecido.

Soltou uma rosnadela. Quando se lembrava de Han Solo, a raiva acendia-se, de um vermelho intenso, na sua alma. Utilizava as lembranças do seu pai para aplacar os instantes luminosos que o assolavam, de vez em quando. Havia uma contradição, porém. As mesmas lembranças convocavam uma luz benfazeja e tépida que o confortava na sua solidão. O seu pai contava piadas muito boas, fazia coisas proibidas como roubar comida das despensas do Senado e preparar piqueniques às escondidas da mãe, só com ele e com Chewie… Convidava o tio Luke para esses passeios, às vezes, desde que ele não abrisse a boca sobre a infração. Acabavam todos a rir à gargalhada, deitados na relva, a saborear o calor do sol nos rostos suados e felizes, as barrigas cheias com as deliciosas comidas condimentadas furtadas aos senadores gulosos.

Alcançou os seus aposentos. Abriu a porta cinzento-escura, pressionando o botão do painel lateral. Esta deslizou horizontalmente para a sua direita, as luzes do compartimento ligaram-se automaticamente. Entrou com menos pressa, como se a atmosfera no interior tivesse uma composição mais rarefeita do que no restante cruzador estelar, onde lhe era mais difícil respirar. Mas nem por isso retirou a omnipresente máscara negra e prateada.

Sentou-se diante do santuário que tinha preparado para a relíquia recuperada do túmulo, em Endor. Um pedestal com uma plataforma triangular, que ele mandou colocar no seu quarto, num local de acesso restrito. Quando se sentia desmoralizado ou inquieto, vinha contemplar a relíquia.

Não eram sentimentos recorrentes. Ele não vacilava nos seus objetivos de trazer a ordem para a galáxia, depois da confusão provocada pela democracia e pelos gestos brandos fomentados pela Nova República. Um estado ordeiro galáctico era essencial para que a civilização pudesse regressar à estabilidade que promovia o progresso. Essa estabilidade só seria possível, na sua visão, através de um poder totalitário, um governo apoiado por uma força militar sólida que não admitisse divergências ou críticas, uma lei forte que tudo regulasse numa coerência enformada numa política firme. No fundo, acreditava genuinamente na Primeira Ordem.

Contudo, quando se sentia acossado pelas intermitências luminosas, enviadas até si através da Força, sentia-se enfraquecido e cansado. A inspiração podia encontrá-la junto da máscara queimada e retorcida de Darth Vader e era diante desta, posta no santuário elevado pelo pedestal, que se sentava.

Entrelaçou os dedos enluvados, dobrou ligeiramente o pescoço.

— Foste poderoso – disse. – O Líder Supremo diz que eu também sou poderoso, mas o mestre dos cavaleiros de Ren tem muito para fortalecer para que se possa igualar a ti, senhor dos Sith. É o que eu quero… Honrar o teu legado. No meu sangue corre o teu sangue. No meu espírito existe a tua escuridão. Perdi o equilíbrio das sombras e da luz, deliberadamente, para aproximar-me de ti… avô.

Engoliu em seco.

— Procuro pelo Jedi que te derrotou. Ele julga que a luz o vai proteger, mas existirá o dia em que essa proteção deixará de ser suficiente. Vai esboroar-se com o poder do lado negro, vai ficar exposto a mim e à minha fúria. A Força será manipulada pelo Mal e verão, por fim, toda a amplitude desse poder. Do poder que foi teu, avô. Do poder que começa a ser meu.

Fechou os olhos.

— Prometo-te, avô, que acabarei com a Ordem Jedi para sempre. A galáxia será, por fim, libertada desses malditos cavaleiros que ousam manipular a Força com base em enganos e em pressupostos errados, que varrem o Mal com os seus sabres de luz pura.

Um esgar torceu-lhe os lábios secos, visionou o deserto gelado, pejado de crateras cinzentas, onde vivia num tenebroso silêncio. Revoltado e zangado, torcia-se, entre uivos e espasmos.

— Mentiram-te a ti e voltaram a mentir-me. Não deixarei que continuem. Ajuda-me, mostra-me o caminho correto. Apaga em mim a luz que sinto. Então, a glória descerá sobre a minha obra.

Enrouquecido, afirmou:

— O último Jedi cairá às minhas mãos.

E pronunciou as palavras que haveriam de se converter no seu lema pessoal:

— Terminarei… o que tu começaste!


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Notas finais do capítulo

“The End” encerra Abbey Road e também o famoso medley deste álbum. Foi composta por Paul McCartney. Tornou-se numa canção emblemática, apesar de ser muito curta, pois foi a última canção gravada em conjunto pelos quatro Beatles enquanto grupo musical. Segundo a revista musical Rolling Stone esta canção “é um epitáfio perfeito para a nossa visita ao mundo dos sonhos acordados dos Beatles”. É a conclusão perfeita para qualquer obra, na realidade…

Assim dá-se por concluída a história "Relíquia", em que tivemos a transformação de Ben em Kylo Ren. Após este último capítulo temos o cenário preparado para o início do episódio VII de Star Wars, O Despertar da Força/The Force Awakens.

A ideia que me motivou para escrever sobre Kylo Ren foi muito simples: fiz uma simples pergunta. Como foi que Kylo Ren recuperou a máscara queimada de Darth Vader?
Responder a essa pergunta levou-me a mergulhar no personagem Ben (para o qual inventei o nome "verdadeiro" de Obi-Wan, sendo que Ben seria apenas a sua alcunha) e posteriormente no personagem Kylo Ren.
Esta história podia ter tido apenas um único capítulo - a ida de Kylo Ren a Endor para recuperar a máscara de Vader, que lá deveria ter estado até ter sido recolhida pelo cavaleiro - mas cedo percebi que Kylo é alguém muito complexo que merecia uma exploração maior.
Criei, então, esta fanfic, que é densa e intimista, metendo-me na pele e na cabeça de Ben/Kylo para tentar perceber como seria "ser" Ben/Kylo.
De forma totalmente intuitiva aconteceu que duas noções cruzaram todos os capítulos desta história e que lhe deram um mote: uma foi evidentemente Darth Vader, a outra foi a História.
É importante conhecermos a História e todas as nossas pequenas histórias particulares, para não repetirmos os mesmos erros.
É inevitável, somos humanos e temos anseios, somos humanos e erramos. Esse é o meu Ben/Kylo - humano e a errar, apesar de tão poderoso.

Muito obrigado a todos aqueles que escolheram esta fanfic como favorita, que leram e que comentaram. É uma honra ter-vos como leitores do que escrevo.

Até à minha próxima fanfic!