Meu amado é um lobisomem escrita por Lailla


Capítulo 7
Capítulo 7: Segredo revelado


Notas iniciais do capítulo

*Lembrete: Tsuki significa Lua em japonês ;)



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O jipe estava abarrotado de caixas e malas, até mesmo no banco do carona. Tudo o que eu tinha na verdade cabia em algumas caixas e malas. Roupas, sapatos, coisas de cozinha, álbuns de fotografia. O resto eu vendi ao deixar o apartamento em Tokyo. Ninguém compreendeu.

Meu pedido de demissão foi encarado de forma surpresa. Não havia nenhuma reclamação minha ou sobre mim de meus colegas de trabalho. Eu completava minhas tarefas e fazia meu trabalho bem. Porém quis sair. Akio não compreendeu e me parou no corredor quando soube que eu iria embora. Precisei explicar que aquele não era meu lugar e que eu deveria ir para casa. Pelo visto ele não entendia o que era estar perdido. Pessoas que se acharam facilmente não sabem como é.

Mina veio atrás de mim quando eu comecei a fazer as malas. Perguntou por que eu queria sair, pois ela achava que tudo estava indo bem. Falei que realmente estava indo bem, porém que eu não me encaixava em Tokyo e que o homem que eu amava não estava ali. Ela chorou e disse que eu era boba por largar tudo por causa de um homem que eu não sabia se voltaria pra mim. Mas eu não me importava. Eu tentaria assim como tentei quando fiz a prova para o colégio que estudei em Tokyo e como tentei quando fiz o exame para a faculdade. Não sabia se Yuzo me aceitaria de volta ou se ao menos eu conseguiria encontrá-lo na floresta. Mas eu tentaria pelo menos uma vez.

Quando me despedi repentinamente de Tia Mizuki, dizendo que partiria para Okayama, ela perguntou por quê. Eu apenas sorri, contando que precisava ir para casa. Ela sorriu e me abraçou, me apoiando como sempre me apoiou enquanto morei com ela.

Parti após uma semana. Estava próxima de casa, da minha cidade. A cidade estava coberta por neve e parecia ainda mais bela. Cortei-a ao meio, passando direto pela prefeitura onde Haku trabalhava, pelo mercado onde vi Sana ajudando uma senhora com as compras e pela casa de Sana, onde vi sua mãe vendendo uma torta para uma garotinha. Parei rapidamente na casa de Sana, cumprimentando senhora Ryoko e comprando uma torta de maçã que acabara de sair do forno. Ela ficou surpresa por me ver de volta e me deu boas-vindas. Após a cidade, avistei minha rua e sorri, virando à direita na estrada de terra coberta por neve e mais uma vez à direita na entrada da minha casa.

O telhado estava encoberto pela neve, assim como a frente e a entrada. Era um mar de neve em frente a minha casa e sobre a horta vazia. Quando saí do jipe a neve cobriu minhas pernas até o joelho. Caminhei com dificuldade até a entrada de casa, destrancando a porta e entrando. Tossi um pouco pela casa estar fechada há quase três meses e abri as janelas, procurando pela pá de neve nos fundos da casa e cavando um caminho para eu entrar e sair. Pus as caixas e malas para dentro, olhando para a estante vazia e vendo apenas a carta que meu pai me deixara.

Havia deixado sua carta em Okayama. Não acreditei que teria coragem de lê-la algum dia. Porém acho que esse era o dia para coragens. Fui até a estante e a peguei, rasgando o lado e desdobrando-a ao tirá-la do envelope. Sem hesitação, sem medo. Eu queria lê-la.

Tsuki,

Você está agora apenas no segundo ano de faculdade. Me mandou uma foto de você e sua amiga Mina, dizendo que estava com saudades e apresentando sua amiga através da foto. Eu estou feliz por você, Tsuki. Você é a lua do meu céu como sua mãe era meu sol. Estou feliz por estar construindo sua vida. E espero que faça as escolhas que te deixem feliz. Como eu fiz. Mas agora preciso pedir algo, filha.

Há alguns anos eu conheci um menino. Não soube seu nome por muitos anos, mas ele se chama Yuzo. É um bom menino. Vocês têm idades próximas, apenas um ano de diferença. O vi no rio um dia enquanto caminhava. Estava frio e eu disse que ele poderia se resfriar. Ele parecia assustado quando me viu e me olhou com um olhar sério ao qual nunca vi nem em homens adultos. Por muitos anos o convidei para vir comigo até nossa casa, mas ele nunca aceitou. Yuzo dizia que morava na floresta. Porém que criança mora na floresta sozinha? Ele tinha doze anos e quando descobri tirei uma foto para procurar por seus pais, mas ninguém sabia quem ele era. Todos pareceram esquecer e ele continuou na floresta. Então comecei a caminhar sempre nos mesmos horários para vê-lo e lhe dar comida, mas ele nunca parecia estar com fome. De algum modo ele conseguia sobreviver muito bem na floresta. O que ele gostava mais eram as tortas de maçã. Podia sozinho comer uma torta inteira.

Nunca os apresentei por não saber quem ele era e por não querer deixá-la confusa com isso. Você é tão curiosa, então inventei a história do monstro na floresta. Yuzo desaparecia algumas vezes e voltava semanas depois. Às vezes ele assustava até a mim. Quando eu pescava e ele estava comigo, tirávamos fotos juntos. Ele nunca gostou. As fotografias estão nas caixas de fotos se quiser conhecê-lo. Ele cresceu e depois que você foi embora, minhas caminhadas diminuíram um pouco. Fiquei velho. Porém Yuzo começou a vir até nossa casa para me ver. Não sei como me encontrou, talvez tenha me seguido um dia. Mas ele cresceu durante os anos e percebi que esse rapaz nada tinha de perigoso. Ele é bom e apenas parecia querer cuidar de mim. Ou ter alguém próximo. Não sei. E se você conseguir acreditar em mim, eu digo que ele é tão silencioso quanto eu. Por muitas vezes apenas eu conto histórias enquanto ele me olha contá-las. Ele nunca me disse seu nome de família ou de onde veio. Mas ele é bom, filha. Confie em mim.

E o que peço à você é que cuide dele quando eu me for. Sei que terá seu emprego e talvez não volte para Okayama, mas não desejo que ele fique sozinho naquela floresta. E nem você. É o que peço a você.

Quando receber essa carta provavelmente eu já terei ido. Mas tenha em mente que você é a melhor filha do mundo e me fez feliz por estar sempre comigo mesmo que distante.

Amo vocês, Tsuki e Yuzo, meu segundo filho.

Abaixei a carta e limpei prontamente as lágrimas que escorreram durante a leitura. Não foram arrependimentos e nem nada parecido. Ele conhecia Yuzo desde sempre e queria que eu o ajudasse. Sorri e guardei a carta dentro do envelope, pondo-a na estante novamente. Corri até o jipe e peguei a torta que ainda estava no carro. Estava quentinha e parecia gostosa. Porém ao invés de voltar para dentro de casa, caminhei na direção oposta. Para a floresta.

A trilha estava encoberta pela neve, porém eu conhecia bem aquele caminho. Caminhei até o rio onde Yuzo e eu íamos e me sentei numa pedra, pondo a torta de maçã no colo. Esperava que o cheiro o atraísse de alguma forma, como quando eu quis conhecê-lo. Até aquele dia eu não fazia ideia de como um cheiro tão longe pudesse atraí-lo, claro que ele não estaria por perto. E claro que naquele dia do inverno ele não estaria onde passeávamos juntos. Se eu ao menos soubesse onde era sua casa... Mas será que ele estaria lá? Yuzo havia me dito que vendera todas as suas coisas. Como ele esteve nesses dois meses e meio?

Fiquei sentada por algumas horas, vendo coelhos, cervos e até guaxinins em cima das árvores olharem para mim. Provavelmente suas presenças decorriam do cheiro da torta que eu segurava. Abaixei a cabeça, contendo as lágrimas. Não queria ir para casa, porém anoiteceria logo. Percebi o cervo correr para longe e levantei a cabeça, olhando para o lado e vendo uma silhueta encapuzada se aproximar. Parecia estar com as mãos nos bolsos e de cabeça baixa. Apertei a embalagem da torta, receosa sobre quem seria. Quando se aproximou e saiu de perto da árvore, permitindo que a luz do sol que estava prestes a se pôr iluminasse seu rosto... Finalmente vi Yuzo.

Apertei a embalagem e tracejei um sorriso no rosto, levantando e vendo-o há apenas poucos metros de distância. Seu cabelo estava um pouco maior. Ele estava surpreso, os amarelos de seus olhos nítidos. Com certeza pensou que eu nunca mais voltaria. Levantei a torta para ele, sorrindo enquanto uma lágrima escorreu sem querer por minha bochecha. Yuzo abaixou o olhar.

— Não deveria estar na floresta com comida. – disse ele – Tem alguns ursos por aí.

Engoli em seco, minha garganta doía.

— Eu...

— Vá para casa. – disse Yuzo, me olhando.

— Venha comigo. – pedi.

— Sua casa é em Tokyo.

Abaixei os braços, olhando-o.

— Não moro mais em Tokyo. – confessei – Eu voltei... E agora vou ficar.

Suas sobrancelhas franziram em minha direção. Eu engoli o choro, olhando-o enquanto minha garganta doía cada vez mais por segurá-lo e por segurar as palavras que desejava dizer.

— Eu li a carta do meu pai. – disse à ele – Ele disse que eu era a lua do céu dele como minha mãe era seu sol.

Yuzo me olhava, calado.

— Eu... – gaguejei – Eu quero ser a sua lua, Yuzo.

Corei exageradamente ao terminar. Ele continuava a me olhar com as mãos dentro do bolso de seu casaco escuro. Passaram-se segundos e ele nada dizia. Deixei o ar escapar no frio, pensei que aquele momento se prolongaria para sempre. Apertei a barra do meu casaco cinza com uma mão e pus a torta sobre a pedra. Não consegui mais olhá-lo e esfreguei o braço no rosto, limpando as lágrimas que caíam involuntariamente. Me curvei para ele, tratando-o formalmente e me virei para ir embora, dizendo:

— Adeus.

Meu coração se partira mais uma vez, pensei que nunca mais o veria e isso doía demais. Porém antes que eu me afastasse do rio, algo me impediu. Parei de andar e olhei para trás. Yuzo segurava a manga do meu casaco. Me virei e nossos olhares se encontraram. Ele me puxou levemente e me acolheu em seus braços.

— Senti... Sua falta. – disse Yuzo.

Fechei os olhos lentamente e o abracei. Yuzo voltou comigo para casa. Para nossa casa.

Quando chegamos na entrada, ele olhou para a casa como eu olhei ao voltar para a cidade na primeira vez. Um sentimento nostálgico. Yuzo viu as caixas e malas quando entrou, porém o fiz vir comigo para prepararmos o banho. Havia anoitecido quando voltamos e estava frio. Nem sei por quanto tempo ele ficara na floresta, devia estar com muito frio.

Abrimos o chuveiro e a banheira se encheu em alguns minutos. A água estava quente e parecia ótima. Deixei que ele tomasse banho primeiro, porém Yuzo fechou a porta do banheiro e me virou para ele, tirando meu casaco enquanto me fazia olhá-lo. Ao me despir completamente, ele me pegou no colo e me pôs dentro da banheira. A água me esquentou de imediato. Ele então tirou sua camisa, despindo-se por completo. Aquele fora um dos melhores momentos da minha vida.

Yuzo acariciou meu corpo, beijando meu pescoço e meus lábios de uma forma que demonstrava sua saudade. Ele me fez subir em seu colo e eu o abracei, beijando-o. Fizemos amor na água quente naquela noite. Algo mágico, arquejante e incrível.

Nos dias que se seguiram, arrumamos a casa juntos e eu cortei o cabelo de Yuzo. Limpamos o chão e móveis, passamos panos úmidos até tudo brilhasse e ficasse como antes. Quando as pedras da pia e o chão de madeira brilharam, colocamos tudo em seu lugar. Os pratos, talheres, copos e panelas na cozinha. Minhas roupas, as roupas de Yuzo que ainda estavam guardadas e álbuns de fotografias no quarto. Telefone, tv, mesa baixa do chá no cômodo principal. E por fim, os retratos de minha mãe e meu pai na estante.

Yuzo viu a carta aberta na estante. Peguei-a e dei a ele, apontando para o final onde estava escrito “Amo vocês, Tsuki e Yuzo, meu segundo filho”. Yuzo sorriu e pude ver as lágrimas caindo e escorrendo por seu rosto. Ele leu a carta na cozinha, sentado à mesa enquanto eu fazia o almoço e sorria durante alguns parágrafos. Quando terminou, dobrou-a cuidadosamente e a colocou de volta no envelope, pondo-a ao lado da foto do meu pai. Virei-me para a panela e sorri. Ele me abraçou por trás de repente, apoiando a testa na minha cabeça.

— Você acha que ele quis nos juntar? – perguntou.

— Espero que sim. – sorri – Mas no final não precisou da carta.

— Hum. – Yuzo concordou, cheirando meu cabelo.

Tudo parecia estar indo bem. Em um mês e meio a primavera viria e eu voltaria a plantar na horta. Com o dinheiro que meu pai deixara, não teríamos problemas em não vender nada no inverno. Lembro-me que quando criança, meus pais cortavam alguns gastos por causa do inverno. Mas isso não aconteceria conosco e eu agradecia constantemente ao meu pai.

Yuzo e eu passávamos a maior parte do tempo em casa. Muitas pessoas não sabiam que havíamos voltado ou que eu havia voltado para a cidade. Porém após eu comprar aquela torta de senhora Ryoko, as notícias correram pela cidade e as pessoas começaram a nos visitar. A primeira, claro, foi senhora Kei. Ela trouxera chá e tomou conosco, vendo que Yuzo e eu havíamos voltado a morar juntos. Na segunda vez, ela trouxera uma torta de maçã e chá, chegando com nossos outros vizinhos. Isso acontecia muitas vezes enquanto observávamos a neve, sentados em frente à entrada. Como não íamos à cidade vender verduras ou cuidávamos da horta, nosso inverno foi observar juntos a neve no quintal e os flocos caindo do céu. Eram tardes maravilhosas.

Um dia, após o jantar, eu arrumava nossa cama para dormir. Yuzo assistia a um programa na pequena tv. Acho que eram desenhos, porém o chiado era terrível. Não fazia ideia de como ele conseguia ouvir o desenho. Fui até a cozinha e desliguei a luz, me juntando a ele. Assistimos ao desenho e quando terminou, Yuzo desligou a televisão. Olhei para ele, parecia ter algo o incomodando.

— Está tudo bem? – perguntei.

Ele me olhou como se quisesse dizer algo.

— Yuzo?

— Eu... Preciso mostrar algo. – ele me ofereceu sua mão.

Após pegá-la, Yuzo me levou para nosso quarto. Me sentei na cama, no chão, e ele à minha frente, no tatame. Não compreendia o que ele queria me mostrar. Yuzo desviava o olhar do meu, parecia receoso.

— O que quer me mostrar? – perguntei.

— Ahm... Eu... – ele me olhou – Tem outra parte de mim que você não conhece. Algo... Literal.

— Literal?

Yuzo assentiu.

— Pode fechar os olhos por um momento?

— Ahm... Tudo bem.

Fechei meus olhos e ele continuou a falar.

— Você quer ficar comigo? Você quer ficar comigo pra sempre?

Sorri, imaginando.

— Sim.

— Tsuki... Abra os olhos.

Abri meus olhos, me perguntando o que ele me mostraria. Ao fazê-lo, vi algo que jamais imaginei existir. Yuzo olhava para baixo e de seu cabelo surgiram grandes orelhas negras de animal. Em seus braços começaram a crescer pelos negros, assim como seu pescoço e pernas. Suas mãos e pés possuíam garras e tornaram-se grandes patas com formato humano. Permaneci imóvel, sem acreditar. Para mim aquilo existia apenas em livros e filmes. Porém ao olhar para seu rosto, compreendi o que Yuzo havia dito. Seu rosto mudara como todo o corpo. Havia um longo focinho e pelagem negra. Ele havia se transformado em um grande lobo, em um lobisomem. Porém ainda era Yuzo. Ele estava com os mesmos cabelos, que se misturavam ao pelo negro azulado. E quando abriu seus olhos, pude ver os amarelos brilhantes. Estremeci, encolhendo-me ao tentar entender como aquilo era possível.

— Tsuki... – disse Yuzo sem me olhar – Esse sou eu.

— Você é um lobo? – gaguejei.

Ele assentiu. Ajoelhei-me, apoiando as mãos no chão e engatinhando lentamente até ficar cara a cara com ele. Olhei todos os detalhes de Yuzo como lobo. A pelagem, a cor, as garras. Recordei algo. Toquei seu peito, correndo suavemente a mão até a pelagem e subindo, fazendo-o olhar para mim.

— Você é o lobo daquela vez. – falei – Na grama alta.

Yuzo assentiu com a cabeça.

— Toshihiko jogava a bola vermelha pra avisar que não havia ninguém por perto. Não queria que ninguém soubesse de mim. Então ele combinou isso comigo.

— E... Aquele dia na chuva? – perguntei – Eu caí e...

— Eu estava bebendo água no rio quando começou a chover. Ouvi alguém na trilha e fui ver. Era você. Caiu no barranco e desmaiou. – ele abaixou o olhar – Eu vivia mais como lobo do que como homem. Por isso não tinha muitas roupas e por isso elas sempre estava sujas, eu as escondia numa árvore oca. Voltei a ser homem e levei você pra casa. Achei que era alguém para ajudar Toshihiko em casa.

— Você estava na floresta quando ele morreu. – pensei.

— Não consigo me adaptar muito bem às pessoas.

Abaixei o olhar e segurei em sua grande mão, olhando-o mais uma vez. Era bem maior e com pelos que aqueceram minha mão.

— Ainda é você. – falei, docemente – E eu amo você.

Yuzo me olhou, encostando carinhosamente seu grande focinho em seu rosto e me abraçando. Seu corpo ficara maior também. Ele mudara, porém ainda era meu Yuzo. Enquanto me abraçava, voltou ao normal. Seu tamanho diminuiu, a pelagem desapareceu, e ele voltou a ser um homem. O olhei quando cessou o abraço e o beijei, abraçando-o novamente. Fizemos amor antes de dormimos e nos deitamos, porém eu não consegui dormir. Fiquei observando Yuzo dormir enquanto ele me abraçava até que caí no sono. No dia seguinte, ele fez o que eu desejava que fizesse há dois meses e meio. Yuzo me contou sua história.

Seu nome era Yoshiro Yuzo. Ele era descendente do lobo japonês, que foi considerado extinto. Herdara o sangue tanto dos lobos como dos humanos. E não sabia dizer se haviam mais deles. Se sim, eles conseguiam esconder. Yuzo me disse que sentiu medo em contar seu segredo pra mim, pois nunca contou a ninguém sobre isso.

Yuzo nascera em Nagano, em Koshinetsu. Sua mãe era como ele e se casou com alguém comum. Uma jovem que acabara de terminar a faculdade e namorava o mesmo rapaz desde o colegial. Ela tinha longos cabelos ruivos e olhos amarelos, porém Yuzo herdou os cabelos negros azulados do pai. Quando bebê, Yuzo se transformava em lobo e corria pela casa. Sua mãe precisou ensiná-lo a ser apenas um menino, pois se seu pai chegasse do trabalho e visse um pequeno lobo em sua casa, ele enlouqueceria quando a esposa explicasse que era seu filho. A infância de Yuzo foi difícil.

Ele não compreendia quem era ou quem deveria ser. Não sabia se desejava levar a vida de um humano ou de um lobo. Na escola, ele tinha poucos amigos. E os poucos que tinha mal o conheciam de verdade, o que os fez se afastarem de Yuzo. Por causa disso, sua mãe passava a maior parte de seu tempo com ele. Ela conhecia o sentimento de não saber qual deveria ser seu lugar. Os dois viravam lobos e percorriam os parques de Nagano. Grandes extensões e poucas pessoas circulando. Eles poderiam ser quem queriam. E Yuzo percebeu que gostava de ser um lobo, era como se isso se encaixasse perfeitamente à ele. Porém um dia, sua mãe desapareceu.

Seu pai a procurou por todos os lugares onde achava que ela estaria. Ligou para seus parentes e para a tia da esposa, pois ela havia perdido os pais quando tinha seis anos. Ninguém sabia onde ela estava. Porém Yuzo descobriu após assistir a uma reportagem na televisão. Bombeiros haviam encontrado o corpo de um lobo num dos parques de Nagano, um dos parques onde os dois iam juntos. Uma família vira o lobo e chamou a polícia. Ninguém sabe o que acontecera, apenas viram o lobo fugir. Um tempo depois, encontraram o animal na beira do rio. Provavelmente fugindo, a loba despencara do barranco e se afogara de alguma forma. Ele disse que quando a mãe se transformava sua pelagem ruiva brilhava ao sol, que era lindo. Foi assim que ele a reconheceu na televisão. O pai de Yuzo não compreendeu porque seu filho chorou por semanas.

Yuzo tinha oito anos. E os anos seguintes foram ainda mais difíceis sem sua mãe. Ele não virava mais lobo e não contava ao seu pai o que havia de errado. Dizia apenas que sentia falta da mãe e que sabia que ela havia morrido, pois nunca os deixaria. Seu pai não sabia o que fazer com Yuzo. Ele estava diferente, afastado e começara a não querer mais ir para a escola.

Porém um dia, Yuzo brigou com um garoto na escola. O garoto era um ano mais velho e maior, porém Yuzo bateu tão forte nele que o fez desmaiar. Sua mão se tornara maior, ele se descontrolara por um momento apenas. As outras crianças o olharam, assustadas. Ele escondeu a mão e fugiu da escola. Se seu pai perguntasse como ele fizera aquilo, ele não saberia o que dizer. Então ele fugiu de casa, passando de floresta em floresta até chegar em Okayama, lugar onde achou que nunca seria encontrado e onde passou a ser um lobo. Mas quando tomou banho no rio como menino, conheceu meu pai.

Yuzo me contara toda a história, sentado à mesa durante o café da manhã. Ele não me olhou sequer um minuto, não desejava lembrar-se do que se passou. Depois que me contou, foi para o quarto e passou o dia deitado na cama que não havíamos desfeito. Levei as refeições para ele durante dia e quando voltava, o prato estava vazio. Ao menos ele comia. Ao anoitecer, deitei ao seu lado e o abracei.

Não sabia o que aconteceria a partir do momento em que o escolhera. Mas uma coisa eu tinha certeza: nunca mais o deixaria.


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