Fale. escrita por Lyn Black


Capítulo 3
Ela e eu, eu e ela




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Ela quer escrever, precisa, é uma necessidade vital, preencher a tela com palavras, sentido. Não consegue. Encontra-se imobilizada, incapaz de fazer fluir na sua frente a bela melodia de seus dedos contra as teclas, produzindo a sua mais sincera companhia. Escuta o vazio, a tela em branco, instigando-a, mas quase uma provocação de mal gosto, feita apenas para fazer seu coração pesar. 

Um dia chamaram isso de bloqueio criativo, mas que nome sem significância, ela pensa, tão complicado que não atinge a alma de quem acha que não está passando por isso. Oh, ela anota como diagnóstico: tristeza aguda. Não entendo até hoje por que não grave, mas pelos seus sussurros o charme das palavras conquistam-na de quando em quando. Lucy sorri enquanto os olhos brilham d'água para as letras que se formam, mas lamento informar que a alegria passa longe, e isso não passa de frustração profunda enterrada nela, sufocando-a.

Ela que dança sozinha, canta para chuva e fala com o espelho. Eles se espantam quando falo com emoção sobre suas conversas intermináveis, tão poéticas e enigmáticas, que tem com o próprio reflexo. Ela se admira com tanto fervor, as mãos nos lábios como suave toque, os olhos encarando fundo a sua distorção, meio de se enxergar como alguém. 

"Ela fala com o espelho?" repetem em tom interrogativo o que eu disse, horror estampado em suas veias saltadas no pescoço, ao mesmo tempo que estranheza e identificação misturadas nos olhos. Se há consenso externo sobre ela, é este: Estranha. Todos concordam que ela foge da norma como diabo foge da cruz, mas para perceber sua aversão ao mundo é necessário conhece-la, e isto é para poucos, quase números nulos. 

Há quem diga, mas isso é raridade, que ela é uma peça especial, com erro de fabricação, porém isso que seria problema é o que a faz tão única e fascinante. Uma joia que esqueceram de moldar, e foi pelo mundo girando, numa dança contra o fogo que funde o ferro. Suas conversas com o próprio reflexo refletem a sua tão profunda introspecção, afinal quem melhor para discutir com e tentar compreender do que ela com ela mesma? São o par perfeito, invencíveis, invencível. 

Todo homem é uma ilha, pintou com letra grossa prateada na parede de seu quarto, para onde olha toda dia, a primeira coisa ao acordar e a última antes de adormecer de cansaço. E, sinceramente, ela está completamente envolvida com os quase invisíveis grãos de areia que a formam, o mar ao redor a abraça em forma de ondas, com marés que dita, pois curiosamente ela também é a sua própria lua. Busca-se profundamente, nas suas raízes, recôndito de seu ser, e é por isso, aposto, que falha em estabelecer pontes, já que deseja tudo intensamente, e não se contenta com elos levianos.

Um dia, porém, depois de tanto me escutar falar sobre, você a conhece, e a realização, seguida de pena, enche seus olhos tão nitidamente que até ela para por um momento de cortar o papel, tão concentrada, para analisar o vinco entre as suas sobrancelhas. E você denomina essa grande história como um "in love", pois só assim eu poderia ter enxergado algo lá. Tão ordinária com seus olhos castanhos, seu sorriso alinhado automaticamente como um desenho, traços ordinários, um turbilhão de pensamentos flutuam pela sua mente.  A pena que despeja sobre mim me dá alergia, mas teimo em persistir.

Uma personagem feita a mão a partir de um ser vivo, ou não?, afinal esse conceito abstrato foi apenas criado para nos tirar do sentimento de vazio, a incompreensão que temos quando somos munidos de apenas cinco sentidos, ela diria. Amor por uma invenção, lente sobressalente que nunca foi vendida ou encaixada na armação: Projeção. Admiro novamente seus globos brilhantes ouro, caramelo, castanho madeira, e como ela se olha com tanta paixão, embora a tristeza inunde seu rosto ao sair da sua hipnose desconexa e irreal. Ela, ela e ela, sua voz desafinada e carregando as dores do que interpreta, perco-me no seu charme de sereia da meia-noite, e desisto finalmente de tentar não me deixar imergir dentro de seu ser. 

Custa tanto, e rasga meu peito saber que eu sou ela, alter-ego da minha idealização da poesia que nunca existiu em mim.


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