Paralelos escrita por Feluriana


Capítulo 3
Bilhetes, lendas e uma garota no espelho - Parte 2


Notas iniciais do capítulo

Oi gente!! Eu deveria ter postado esse capítulo domingo, mas a faculdade ta se esforçando bastante pra me destruir nesse período. Hoje, eu consegui um tempinho livre (leia-se "estou ignorando três livros do meu lado") e aqui estou ♥
Agradecimento especial pra Iane que é sempre um amorzinho comigo!
Acho que esse aqui não tem TANTA novidade pra quem já acompanhava, mas eu mudei algumas coisinhas...



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Deixe-me contar a história de uma cidadezinha.

Paralelos é seu nome.

Revertida por uma rica vegetação rasteira, grande parte de sua paisagem se assemelhava aos pampas gaúchos, todavia, a montanhesca natureza de seu extremo sul a desclassificava dessa catalogação. Não estamos falando de algo semelhante ao Pico Paraná, eram somente elevações tímidas, como se uma parte do lugar tivesse se recusado a ser plano e desistido no meio do trabalho. A região das montanhas era chamada de Via Paralela e acabou batizando a cidade. Recebia esse nome graças a uma lenda muito antiga, cuja origem eu só posso conjecturar sobre. Minha avó, falecida quando eu ainda era muito jovem para recordar seus trejeitos ou os traços de seu rosto, tinha me contado histórias fantasiosas sobre a infância do lugar onde morávamos e tais contos rechearam meu imaginário enquanto eu crescia. A ideia de passar os anos em um lugar que parecia possuir um teor mágico era encantadora para a criança que fui; enfadonho para a adolescente que logo viria substituí-la.

Segundo minha avó, viajantes percorriam grandes distâncias para encontrar o local das montanhas – antes mesmo da cidade ser formada. O local era conhecido por possuir uma fenda com o mundo espiritual, tornando mais fácil o contato com espíritos. Conforme o imaginário das pessoas começou a abominar superstições desse tipo, a cidade perdeu seu encanto e a fresta para outros domínios tornou-se lenda.

Meus pais eram fascinados por histórias repletas de fantasia e sentiam falta de aventuras ambientadas na riqueza de lendas e crenças do nosso país. Portanto, fundaram juntos a Editora Paralelos: destinada a publicar ficções fantásticas de autores nacionais e trazer para a língua portuguesa pequenos autores estrangeiros dignos de mais reconhecimento. Gosto de pensar que fui fundamental nessa criação, mas o mérito maior é, sem dúvida, dos dois.

 Por meu lugar de nascimento ser uma cidade pequena, remota e esquecida, tive que cursar faculdade em Minas Gerais. Estudei Letras enquanto trabalhava em um emprego de meio-horário para me sustentar porque sabia que meus pais – ambos professores de literatura e donos de um empreendimento que era mais sonho do que real – não poderiam arcar integralmente com minhas despesas. Mudei-me para São Paulo logo que concluí a faculdade e alguma loucura familiar despertou em mim. Talvez alguns delírios sejam genéticos porque subitamente me vi abrindo uma filial da Ed. Paralelos na grande cidade. Durante o desdobrar do ano, eu e meus pais lutamos muito para que ela tivesse sucesso e não preciso dizer o quanto foi difícil ou o quanto chegamos à beira da falência inúmeras vezes unicamente nesse intervalo de tempo. Contudo, a jornada mostrou-se uma grande aventura por si só, estávamos mais unidos que nunca, empenhados em conquistar algo.

 Olhando para trás, vejo o porquê de nunca ter conseguido desistir da fantasia. Por mais que eu tentasse, ela sempre me puxaria de volta e me aninharia em seu manto quimérico.  

No final daquele ano, logo quando eu estava pronta para voltar para casa por alguns dias e passar as festa de fim de ano, meu pai faleceu.

Em uma noite estávamos conversando animadamente sobre autores promissores e meu pai insistiu novamente para que eu escrevesse algo.

—Essa é a sua arte, Lia. Você escreve desde pequenininha. Não sei como ainda não levou nenhum projeto para frente ainda – sua voz era doce. Eu sempre gostei de comparar meu pai com os personagens sábios de livros. Dumbledore, Gandalf, Aslam. Ele tinha 50 anos, em três meses completaria 51 e se eu tivesse que resumi-lo em uma palavra seria gentil. Seu tom era sempre amigável, nunca gritara comigo mesmo quando eu merecia alguns berros. Não importava o quanto ele estivesse quebrado por dentro, sempre haveria uma complacência professoral em seu olhar.

—Talvez eu ainda não tenha encontrado minha história, pai. Nada dá muito certo, o máximo que já escrevi de uma mesma narrativa foram 40 páginas e depois disso eu só conseguia me perguntar por que eu fazia aquilo. Não sei, tenho essa ideia fantasiosa de que uma história deve ter um propósito. Já é injusto demais que nós, os criadores, não tenhamos isso.

—Sempre filosófica demais! Isso vai acabar te matando – ele riu na outra linha e aquela risada foi contagiante demais para que eu não a acompanhasse. – Você complica demais as coisas, querida. Nem sempre uma história precisa de um propósito, às vezes ela precisa somente ser.

Algumas horas depois, durante a madrugada, eu tentava decidir alguns aspectos técnicos de um livro de contos que seria publicado no próximo mês – fonte, papel, tamanhos etc. – quando recebi uma ligação da minha antiga vizinha. Andreia, mãe de Ana, me deu a notícia de que papai tivera um ataque cardíaco e que eles não conseguiram chegar ao hospital a tempo. Minha mãe não conseguia pegar o telefone para falar comigo.

Odiei Paralelos. Odiei sua tranquilidade e seus bairros afastados do centro. Odiei sua suavidade. Odiei as grandes mansões perto das montanhas que passavam boa parte do ano desocupadas. Odiei meus pais por amarem tantos as peculiaridades solitárias daquele lugar. Se não estivessem lá, talvez meu pai pudesse ter sobrevivido. Odiei, acima de tudo, o Universo por leva-lo antes da hora certa. Muito antes.

Décadas se passaram e eu aprendi a lidar com o vazio da morte dele, mas ainda me pego pensando na pergunta que faria se pudéssemos conversar mais uma vez.

Você foi feliz?

Não sei se me importo com os grandes questionamentos da raça humana. Essa é minha pergunta primordial. Essa é a pergunta mais importante da minha existência. Não quero saber de onde viemos, por que viemos, para onde vamos ou por que vamos.

Tudo bem, talvez isso tudo em segundo lugar.

Quando somos jovens, sentimos que não podemos estar fadados a uma existência simplória. Aliás, eu sei que consigo conquistar o mundo. Eu sinto que tenho grandes habilidades para realizar grandes feitos. Pensei assim durante a pré-adolescência inteira, até chegar perto dos 20 e começar a observar mais os adultos ao meu redor e não achar que eram somente cascas vazias. Eles também tiveram esse sentimento um dia. Algo também lhes dissera que eram essenciais. Será que se sentiam assim ou será que esse era só o tipo de pensamento que amadurecia com o tempo e ficava reduzido a um mero delírio infantil? Será que o Universo mente para todos nós?

Naquela época, era só nisso que conseguia pensar: se tudo tivera um propósito para meu pai. Odiava a sensação em meu âmago que dizia que não. Voltei para casa para o funeral e o enterro. Um violento torpor se apossou de mim e de minha mãe. Ficávamos o dia inteiro deitadas assistindo programas terríveis na TV. Ela tirou uma licença do trabalho, mas de vez em quando recebia visitas dos alunos e dos colegas de profissão. Eles conseguiam animá-la mais do que qualquer outra coisa. Acho que é assim que as coisas funcionam quando você realmente ama seu trabalho; o seu trabalho ama você em retorno.

Estávamos em abril quando minha mãe decidiu morar com minha tia Bianca no Rio de Janeiro. Eu amava minha tia, ela era uma daquelas mulheres extravagantes que viviam contando piadas obscenas e não tinham vergonha de absolutamente nada. Ganhara muito dinheiro com imóveis e permanecia no topo do negócio mesmo após anos de atuação. Titia e mamãe eram inseparáveis e não poderiam ser mais diferentes. Mamãe era Paralelos – calma, com cheiro de grama depois da chuva, gentil – titia era Rio de Janeiro – barulhenta, agitada, ensolarada, areia quente nos pés.

Eu sabia que nosso luto não poderia durar para sempre e que aquilo era o melhor que minha mãe podia fazer por si mesma, porém mesmo assim me senti traída. Tenho a tendência a machucar as pessoas quando estou ferida. Um mecanismo de defesa doentio que não me permite admitir que não estou bem e, ao invés disso, magoo outra pessoa. Quando mamãe me contou que não podia ficar mais naquela casa, eu lhe disse coisas horríveis e meu ego nunca me permitiu pedir desculpas. Mas, sendo minha mãe, ela sabia que aqueles espinhos não passavam de alegorias visuais.

—Já se passaram quatro meses, minha filha. Ele não vai entrar magicamente por essa porta. Você precisa tirar o tempo necessário para ficar de luto, sei disso, mas não é saudável ficar trancada nessa casa o tempo todo. Você nem ao menos sai para trabalhar e acaba trazendo tudo que tem para fazer para cá. Eu sinto que a culpa é minha, você quer cuidar de mim, ficar comigo, mas eu não quero ser a razão pela qual sua vida vai estancar dessa forma. Não quero ser tóxica para você. Fique aqui enquanto sentir que precisa. Eu vou visitar Bianca e depois, quando você não estiver com tanta raiva, nós vamos conversar sobre manter a fantasia viva, tudo bem?

Manter a fantasia viva. Era o que nós três dizíamos um ao outro. Parecia errado usar aquela expressão na ausência de um membro de nossa equipe.

Ela estava decidida mais do que nunca a manter a editora longe do fracasso enquanto eu fazia meu trabalho da forma mais displicente possível; não tinha paciência para lidar com autores ou personagens; estava completamente vazia. A editora, que oscilava na beira de um abismo, estaria completamente arruinada se Gustavo, diretor da filial de Paralelos, não a mantivesse funcionando e se a equipe de São Paulo não se empenhasse bastante na divulgação e promoção de eventos. Acima de tudo, se mamãe não tivesse reassumido as rédeas da ideia. Ela era muito mais forte e corajosa que eu.

Então, simples assim, eu estava sozinha novamente em Paralelos, onde encontrei, mais uma vez, a verdade oculta das lendas.

As lendas de minha avó estavam certas quanto a uma coisa. Paralelos era sim uma fenda. No entanto, não com o mundo espiritual, mas com outro universo.

**

Talvez você já tenha perdido a paciência comigo. Vou e volto nos acontecimentos como se o tempo não seguisse uma trajetória linear. A verdade é que minha mente funciona um pouco assim, atrevida a confundir presente, passado e futuro; minhas narrativas não poderiam ser diferentes. Também tenho um problema com surtos de criatividade e energia. Ora estou disposta a escrever um romance russo de 700 páginas, alguns minutos depois já estou exausta. Essa história em particular é difícil de escrever. Mais fácil seria se estivesse inventando tudo, entretanto estou cutucando uma ferida cicatrizada, trazendo de volta para a superfície eventos que já deveriam estar repousando. As pausas que faço na história são justamente para que eu possa continua-la; mudar constantemente de assunto se tornou meu mais novo e essencial mecanismo de defesa.

**

Logo após prender a resposta aos dois bilhetes que encontrava entre o vidro e a moldura do meu espelho, fechei os olhos. Talvez eu estivesse esperando que alguma mágica acontecesse e quem pode me garantir que magias não eram tímidas? Olhar pode retraí-las e estragar tudo.

—Olá?

Meu coração acelerou subitamente acompanhado do tão conhecido ardor na nuca em situações de estresse. A voz feminina era melodiosa e completamente desconhecida para mim. Minha primeira reação instintiva foi girar o corpo violentamente e olhar para trás, procurando a dona da saudação.

—Não, não estou aí atrás. Alô?

Eu nem vou tentar descrever a sensação que experimentei em seguida. Não sou uma escritora tão boa assim, não posso me apoderar de emoções e fazê-las se tornarem reais no organismo de quem as lê. Como você se sentiria se visse um reflexo no espelho que não era seu? Não era o rosto tão costumeiro e intrínseco ao que eu represento. Era um completamente diferente. No meu espelho. E aquela nem era a primeira vez que isso acontecia.

Claro que em situações assim, você questiona imediatamente sua sanidade. Lembro que li uma vez que a loucura era a total ausência de questionamento. Ver algo que não deveria estar ali e, ao invés de pensar que aquilo é completamente impossível, você acredita ou sente medo – dependendo daquilo que está vendo. Eu estava questionando a existência daquele rosto, então acho que esse era um bom sinal.

—Tudo bem, já ficamos em silêncio tempo suficiente para você absorver o que está acontecendo. Já podemos conversar agora? – seu tom era completamente natural, como se estivesse esbarrando com um amigo na padaria. –Sinto muito ter assustado você e confesso que fiquei um pouco magoada por ter jogado todos os meus bilhetes fora.

Eu só conseguia encarar o espelho, de boca aberta, estupefata. Se eu pudesse me ver, com certeza constataria que estava parecendo totalmente estúpida. Mas eu não podia porque tinha outro rosto no meu espelho. Não posso enfatizar isso o suficiente de forma que você entenda meu pânico silencioso.  

Subitamente, a expressão da intrusa assumiu um ar contraditório e decepcionado.

—Não acredito! Por que eu erro tudo que eu faço? Que ano é esse? – questionou com uma urgência na voz como se aquela fosse a pergunta mais importante do mundo. Eu, por um lado, ainda não conseguira encontrar nem um mísero fiapo de voz para dizer algo. – Você está tão assustada que eu realmente estou com medo de ter te matado. Por favor, por favor, não tenha um ataque cardíaco, por favor. Será que ainda existem ataques cardíacos onde você mora? Ai deuses antigos, por favor, não morra. Oi? Fale comigo! Socorro, você vai morrer, não é? Perfeito, se alguém souber disso...

Acho que ela despejou todas aquelas palavras em menos de trinta segundos. Eu viria a descobrir que aquela era uma mania constante. Também viria a adorar essa característica.

—Olá? – respondi os devaneios, finalmente, incerta do que estava acontecendo.

—Você está viva! Yey!

A estranha convidada sorriu abertamente. Seus cabelos formavam uma nuvem ao redor de seu rosto de formato de coração. A pele negra tinha as bochechas coradas, os lábios eram cheios e bem desenhados. Todo esse conjunto exorbitante fez com que eu tomasse consciência da minha figura desgrenhada e ficasse um pouco envergonhada.

—Eu não ficaria tão certa disso – retruquei baixinho antes de ser atingida por um pensamento. – Você esteve me observando?

Senão, como mais saberia que eu jogara os bilhetes fora?

—Eu? Não! – exclamou, parecendo ofendida. – Talvez um pouquinho, mas só enquanto eu tentava mandar os bilhetes. Juro, depois eu encerrava o contato porque achava que não seria justo se você não pudesse me ver também...

—Eu estou ficando louca. Conversando com um espelho. Estou ficando louca. Minha mãe tinha razão – murmurei desconexamente.

—Calma, por favor, permaneça calma.  Você não está louca, eu realmente existo. Bom, quer dizer, isso é um pouco relativo, mas para fins explicativos, vamos dizer que eu exista, meu nome é Eleanor e estou aqui falando com você nesse exato momento. Hum, na verdade isso também é relativo. Como devemos julgar o tempo, conforme o seu horário ou o meu horário? Tecnicamente...

—Meu deus, pare de falar por um instante – gritei. – Só um instante. Por favor. Cale a boca – pronunciei cada sentença lentamente.

—Tudo bem, tudo bem. Você precisa de tempo, eu respeito isso – ela imitou meu tom de voz, como se estivesse mostrando a um animal selvagem que não representava perigo algum.

Fiquei mais alguns minutos em silêncio, me concentrando em respirar fundo. Fechei os olhos várias vezes e, toda vez que os abria, constatava que aquela pessoa ainda estava ali, me contemplando de volta com uma expressão complacente. Aproximei-me do espelho e, vagarosamente, encostei as pontas dos dedos no vidro. Levemente. Como se estivesse apavorada que algo fosse me morder (estava mesmo).

—Já se sente melhor? – questionou, franzindo o cenho. Confesso que a beleza dela foi me acalmando aos poucos, seu rosto transmitia nada além de compreensão pela minha hesitação.

—Um pouco. Não estou louca? Você tem certeza disso? Realmente estou aqui falando com você?

—Bom... Isso também é bem relativo, sabe? Claro que você não sabe – começou a balbuciar novamente – Você precisa aprender a me ignorar. Eu falo coisas sem sentido o tempo todo. Também falo rápido e alto demais quando estou nervosa...

—2016 – interrompi, enquanto me aproximava cada vez mais do espelho. O torpor causado pelo pânico estava sendo gradativamente substituído pela sublime curiosidade.

—O que? Ah sim, eu perguntei o ano e agora você está me respondendo. Sim, sim. Bom, isso é ruim. Isso é muito ruim. Ai, droga!

—Por que é ruim? – atrevi-me a perguntar.

—Bom, para início de conversa... Porque eu posso arruinar completamente sua existência.

Um pesado silêncio se esgueirou pelo quarto. Eu ainda estava digerindo aquelas palavras e ela parecia ter medo de dizer algo mais. Meu corpo ainda estava em estado de alerta e me sentia pronta para correr ou gritar a qualquer instante. Talvez eu estivesse parecendo um felino com os pelos eriçados, calculando qualquer simples movimento. Ou talvez só parecesse alguém prestes a passar mal.

—Você está em silêncio há um tempão... Hum, quer saber? Acho melhor terminar por aqui, certo? Isso não foi nada, sua existência é real e singular no universo. Tenha uma boa vida.

Nem sabia dizer quanto tempo havia passado em silêncio, na minha cabeça não pareceu mais de alguns segundos, porém ao ouvir a mera menção de um adeus meus neurônios resolveram voltar a funcionar. Descobri que tinha um medo selvagem que ela sumisse, pois assim eu teria que enfrentar perguntas impossíveis em minha cabeça. Quem era ela, de onde mandava aquelas mensagens e, o mais importante, como conseguia estar ali? No meu espelho. Meu. Espelho. Receava ficar sozinha depois deste terrível rompimento com tudo que havia de lógico na minha vida.

—Não! — o tom de urgência na minha voz era nítido. –Você não pode fazer isso. Chegar aqui, me deixar completamente maluca e ir embora.

—Tem razão. Isso seria bem indelicado da minha parte. – sua expressão assumiu um ar contemplativo. –Você acha que consegue conversar agora ou precisa de mais algumas horas pra se recompor do choque?

—Eu não passei horas me recompondo – retruquei, ultrajada. Gostava de me imaginar como uma pessoa calma, imperturbável e dotada de uma mente aberta para as mais diversas possibilidades. Mas quem, em sã consciência, conseguiria conservar todos esses atributos perante tal situação? Bom, eu precisava fazer isso naquele momento porque não queria que ela fosse embora. –Posso conversar.

—Ah que bom. Qual seu nome? – inquiriu com animação transbordando pelos enormes olhos que adornavam seu rosto.

—Não, não vamos começar assim. O espelho é meu, você está nele e eu faço as perguntas.

—Tudo bem, qual sua primeira dúvida?

Estranhamente, me encontrei de boca aberta sem saber o que falar. Eu não tinha absolutamente a mínima ideia de como formular um questionamento. 42. A resposta da vida, do universo e tudo mais. Todavia, qual a pergunta? Douglas Adams, eu nunca pensei que isso fosse fazer tanto sentido. As perguntas são realmente mais importantes que as respostas.

—Lia. Meu nome é Lia – respondi sua indagação anterior e ela pareceu entender que eu estava completamente desnorteada para elaborar e conduzir meu próprio questionamento.

—Qual o nome da sua cidade, Lia? – foi engraçado ouvir meu nome sendo pronunciado por aquela estranha presa no vidro do meu espelho.

—Paralelos.

—Então quer dizer que eu errei somente a data, não o local. Isso é bom – falava consigo mesma como se eu não pudesse ouvi-la. –Lia, me desculpe, eu achei que você estaria familiarizada com contatos, mas eu deveria ter adivinhado pela aparência da sua casa. Não pude ver muito, mas...

—O que isso quer dizer? – a interrompi bruscamente.

—Eu deveria estar falando com alguém do seu futuro, mas pelo visto, infelizmente, errei os cálculos – suspirou pesadamente – Tudo bem, Lia, isso pode ser difícil de entender porque você não estava preparada. Como poderia estar? Mas faça um esforço, ok? Meu nome, como eu já lhe disse, é Eleanor. Eu tenho 20 anos e moro aos arredores de uma cidade chamada Paralelos.

Ela falava em um ritmo lento, como se esperasse cada palavra ser absorvida pelo meu cérebro antes de dizer a próxima.

—Calma... Então isso é algum paradoxo temporal? Você é do futuro? – conjecturei.

—Não, não é bem assim. Estamos tecnicamente existindo em tempos diferentes, mas não vamos falar disso agora. Passos de bebê, certo? Bebês não andam, na verdade. Nunca entendi essa expressão, mas tente me acompanhar.

Assenti e só então percebi que ainda estava de boca aberta. Senti-me um tanto estúpida e simplória perto daquela garota mais jovem que parecia reter um conhecimento muito maior do que o que eu jamais iria adquirir durante toda minha vida. Puxei a cadeira em frente à escrivaninha que ficava o espelho e sentei.

—Ninguém vive em Paralelos, na minha Paralelos, porque é um lugar um pouco inóspito por aqui. Porém, há dois anos descobrimos que aquela cidadezinha possuía uma ponte com o resto do universo. Nossos pesquisadores da SETI, por um acaso, captaram sinais de rádio completamente novos vindo da direção da cidade e desde então ela se tornou um forte tecnológico destinado a manter comunicações extraterrestres.

Ela fez uma pausa, pois sabia que já tinha despejado informações suficientes para enlouquecer alguém como eu. Algumas das nomenclaturas me chamaram atenção. Graças a uma história de ficção científica que lera no ano passado, sabia que SETI era sigla de Search for Extraterrestrial Intelligence porque isso realmente existia, porém seus avanços – se existiam – não eram divulgados para o grande público. E, mais uma vez, ela disse extraterrestre. Extraterrestre. Além do mais, falou de uma cidade chamada Paralelos. Como não poderia ser a minha Paralelos? Ela tinha que estar na Terra e só existia um lugar com esse nome.

—Isso quer dizer que você é da Terra – apresentei minha dedução em voz alta – Não de algum planeta longínquo. Você é humana. Respira oxigênio e precisa de água pra sobreviver.

Falei aquelas conclusões em voz alta mais para me acalmar do que qualquer outra coisa.

—Sim, muito bem, você é bastante perspicaz – com aquela afirmação eu quase me senti como um cachorro que ganha petisco depois de fazer cocô no quintal e não na sala. –Eu sou do planeta Terra, ano 4.016. Dois mil anos à sua frente.

—Então eu estava certa desde o início – contestei. – você é do futuro.

—Não é tão simples assim, Lia. Eu sou do planeta Terra, mas não daquela que você conhece.

—Não – interrompi – calma. A ideia de viagem no tempo, tudo bem, eu consigo aceitar. Assisto Doctor Who. Estou acostumada com essas confusões temporais. Agora, você quer dizer que existem universos paralelos? Mais de uma Terra rodando no espaço? E, se isso for verdade, a comunicação deveria ser impossível, certo?

—Doctor Who? – ela perguntou, confusa.

—Não acredito que não existe Doctor Who na sua Terra. Isso me faz ficar grata por estar nessa versão do planeta – balbuciei.

—Voltando ao que importa – repreendeu com uma expressão contrariada. – eu não sou de um universo paralelo. Sou da Terra primordial. A verdadeira.

Achava que não poderia ficar mais aturdida do que já estava, porém, como todos podem ver, eu erro com frequência.

—O que diabos você quer dizer com isso?

—O seu planeta, Lia, é uma projeção. Tecnicamente falando, em escalas cósmicas, não existe.

Talvez eu realmente tenha ficado algumas horas em silêncio depois disso. O que fora mesmo que ela dissera anteriormente? Ah sim, que podia arruinar minha existência. Agora eu estava sendo apresentada à premissa daquela conclusão.

—Acho que isso é demais pra aceitar, não é mesmo? Eu não vou usar termos científicos, só uma explicação simples de como são as coisas. Imagine que você é está em um planeta muito distante da Terra. Se pudesse observar o que está acontecendo, provavelmente veria a Terra dois mil anos antes...

Ela tinha voltado a falar desenfreadamente e eu retinha a essência de poucas palavras. Sentia-me presa em uma espécie de torpor, forçando minha mente a ter um melhor desempenho naquela conversa. Por isso foi somente depois de alguns minutos que percebi o silêncio do meu quarto.

A imagem da garota que dizia se chamar Eleanor e morar em outro Universo tinha sumido do meu espelho.  


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Notas finais do capítulo

Até o próximo! Que a Força esteja com vocês!