Paralelos escrita por Feluriana


Capítulo 4
Montanhas, cavernas e cartas - Parte 1


Notas iniciais do capítulo

*olha só quem tem prova e deveria estar estudando*
Oláá! Eu demorei um pouquinho porque sei que os capítulos estão grandes e não quero sobrecarregar ninguém. Também fico muito insegura com capítulos que são basicamente character development ("meu deus laís, mas com o que você não fica insegura?" é, também não sei.) Tenho muito a agradecer a Luana que me viu reclamando da vida e foi me ajudar sendo leitora beta do capítulo. Obrigada ♥
Por motivos obscuros o Nyah mexeu um pouco na formatação do capítulo e eu não sei o porquê (???) e eu to correndo pra estudar agora então espero que isso não incomode muito ninguém (apesar de que isso ta perturbando muito meu pefeccionismo com formatação ave merlin).



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/727619/chapter/4

Por acaso o passado existe concretamente no espaço? Há em alguma parte um lugar, um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda esteja acontecendo?

1984. George Orwell.

Às vezes, o mundo do qual viemos nos parece vasto e ameaçador, trêmulo e instável como uma imensa gelatina; outras vezes, é uma miniatura, fascinante, girando reluzente, em sua órbita. De uma maneira ou de outra, não há como descarta-lo.

Garota, Interrompida. Susanna Kaysen  

 

Antes de conhecer uma garota no meu espelho, todas as breves experiências que tive com o declínio da realidade pareceram ter explicações razoáveis. Se eu decidisse pensar sobre elas, definitivamente não seriam pretextos para questionar a resistência das barreiras da minha sanidade. O dia em que me senti velha quando na verdade deveria ter 13 anos, além de completamente desbotado em minha memória, era justificado pelo grande estresse da puberdade e, como Cecilia Lisbon já disse uma vez, somente uma garota pré-adolescente sabe o que isso significa. No evento que sucedeu meu aniversário de 25 anos, eu não estava bem. Suponho que seja um passo tardio admitir isso agora, porém essa era a verdade. Eu estava de luto e a editora que seria o legado da minha pequena família estava falindo. As contas não paravam de chegar e eu não tinha energia o suficiente para lutar pelas coisas que mais importavam na minha vida.

Dois dias se passaram desde a noite em que eu tivera uma conversa com Eleanor. Ela era a primeira coisa que eu pensava quando acordava, meus devaneios durante qualquer trabalho que tentasse fazer revolviam ao seu redor e, por fim, também era a última coisa que passava pela minha cabeça antes que eu caísse no sono. Precisava saber se ela era real. Durante 48h, eu questionei minha sanidade, mas não estava apta a fechar a porta para tantas possibilidades que foram descortinadas na frente dos meus olhos. Em meio ao todo meu desânimo, algo em mim estava determinado a acreditar em coisas fantásticas, mesmo em momentos sombrios.

Tudo bem, baseado no meu desempenho durante o diálogo com Eleanor, e dos eventos até agora, você deve estar me achando uma criatura apática. Talvez eu tenha sido. Contudo, na verdade, eu sempre vivi mais de sonho do que de realidade. Literalmente. Meu trabalho se resume em ler, avaliar, traduzir, produzir capas, escolher fontes e papéis para que a fantasia chegue a todos os cantos do país. Portanto, acho que posso me vangloriar de ter uma mente bem aberta para coisas atípicas. O choque que recebi ao encontrar Eleanor me reduzira àquela falta de energia vital e empolgação. Eu estava em pânico. Some isso ao terrível estado de espírito que me encontrava e você tem um resultado lastimável. Não saberia dizer se tinha mais medo de que tudo fosse uma alucinação ou que fosse a mais pura verdade.

Sim, era assustador. E, quando repassava todas as palavras ditas na minha cabeça, não podia evitar um frio no estômago e uma grande alegria. Aquilo era simplesmente fantástico! Você é agraciado – ou amaldiçoado – desde cedo com o gosto pela leitura. Quando criança, conhece uma menina chamada Alice que cai em uma toca de coelho e encontra coisas maravilhosas em uma terra estranha. Anos mais tarde, descobre sobre um garoto bruxo que morava debaixo de uma escada. Em seguida, as portas para o universo de hobbits, anões, elfos e magos está aberta. Uma vez dentro deste mundo, não há saída. E você nem ao menos quer sair. A fantasia se torna uma válvula de escape para uma realidade crua. Você espera que, em algum momento, algo de mágico aconteça na sua vida e conforme envelhece essa esperança vai se diluindo nos afazeres da vida adulta. O grande desafio sempre foi não deixar que o passar dos anos dissolvesse o amor que tínhamos pelos universos fantásticos que nos embalaram e consolaram enquanto tentávamos nos adaptar – ou escapar – de um mundo atordoante.

Agora algo de mágico realmente acontecera e eu estava cruzando todos os dedos para que Eleanor estivesse em qualquer lugar no tempo-espaço, viva. Respirando. Existindo.  

**

Estar no meio de uma atividade e acabar adormecendo estava se tornando um hábito frequente. Para ser honesta, eu passava boa parte do meu dia desacordada. Era mais fácil lidar com as coisas dessa forma, porém sempre havia um sabor amargo na minha boca quando despertava. A primeira coisa que eu tentava entender era a passagem de tempo. Quantas horas se passaram desde que adormecera? Estava relendo O Mundo de Sofia porque a necessidade absurda de revisitar histórias ao invés de conhecer novas se apossava de mim e logo quando Sofia entrava na igreja para encontrar o misterioso filósofo... Bom, aparentemente, meu corpo resolveu desligar-se por conta própria. Há sensação melhor do que adormecer enquanto se está lendo e acordar com o livro ainda em mãos? Eram aquelas pequenas coisas que faziam com que eu me sentisse segura. Coisas que não tinham mudado nem nunca mudariam, independentemente do que ocorresse no mundo exterior, ainda seriam as mesmas e estariam esperando por mim. Demorou alguns instantes até que eu identificasse o ruído abafado que me acordara. Procurei o celular debaixo do travesseiro e semicerrei os olhos diante da súbita claridade. Na tela o nome Gustavo reluzia.

—Alô? – me surpreendi com a própria aspereza da minha voz. Pigarreei e tentei redimir meu tom. – Bom dia, Gustavo.

—Lia, você pretende aparecer aqui hoje?

Conheci Gustavo enquanto ainda idealizávamos uma nova filial em São Paulo. Ele ajudou a mim e meus pais nessa empreitada e, quando soube da cidade que deu o nome ao nosso sonho, quis conhecê-la. Coberto das peculiaridades de um jovem artista, ele decidiu morar na fria e esquecida Paralelos. Ele a chamava de a esquecida menina dos olhos; era absurdamente apaixonado pela indiferença que cobria minha terra natal. Gustavo transformou a simpática casa editorial também sebo e lojinha de pequenos artigos. Contratou uma “equipe” de dois jovens adolescentes para ajuda-lo no trabalho e morava no segundo andar, insistindo todo mês para pagar uma porcentagem do aluguel. Visto que a editora não rendia tanto dinheiro, então ele também lecionava como professor de filosofia (de onde recrutou seus funcionários). Uma janelinha em seu quarto improvisado tornava fácil a subida até a beira do telhado, onde ele se sentava para escrever poesias, ler ou tirar fotos do céu estrelado, tudo isso enquanto contemplava a silhueta das montanhas. Agora tudo aquilo havia mudado. A equipe fora despedida e não tínhamos como pagar o aluguel do lugar. Paralelos estava fechando. Gustavo voltaria para São Paulo, onde a única coisa que mantinha o escritório funcionando era o dinheiro que meus pais tinham economizado durante anos.

—Você precisa de mim para alguma coisa? – perguntei soando, mais uma vez, um pouco mais ríspida do que o pretendido.

—Ouch.

—Não, desculpa, eu não quis...

—Tudo bem, eu entendo, você acabou de acordar, não é? – sua voz tinha um tom leve e brincalhão. – Não consigo entender como você consegue dormir até meio dia quando as manhãs são tão lindas aqui. Sem barulho de trânsito, sem gente estressada, essa leve neblina... Vou sentir falta daqui.

Senti um aperto no coração. Hoje era o dia que precisávamos entregar o local. Eu não queria estar presente para ver aquilo. Não queria ter que recolher as coisas da mesa onde meu pai trabalhava, ela estava intocada até hoje, mesmo com tantos meses decorridos. 

—Gustavo, eu não tenho certeza se consigo...

As palavras ficaram engatadas na minha garganta e sabia que se continuasse falando era provável que começasse a chorar.

—Lia, eu sei que é difícil, mas vai se odiar no futuro se não estiver aqui. É um desvio de caminho importante.

—Eu não sei o que você quer dizer com isso, Gustavo. Estamos falindo, tudo está dando errado. Paralelos está basicamente vivendo de trabalho voluntário. Temos que ser realistas.

Era verdade. O salário da minha singela equipe em São Paulo só teria como ser custeado por mais alguns meses. Eu sabia que as meninas que eram responsáveis pelo funcionamento da editora só não tinham desistido por consideração a mim e ao momento que estava passando. Eu tinha muito a agradecer, mas a piedade não as manteria comigo por muito.

—Não. Isso é um contratempo. Quem precisa de prédios alugados, hein? Podemos continuar através da internet. Você tem que vir aqui porque desvios no caminho são importantes. Toda vez que tropeçamos, ganhamos um impulso. Dói o nosso dedão, mas pelo menos não ficamos parados. Você tem que vir aqui machucar o dedão do seu pé e ganhar forças.

Foi inevitável não rir daquela metáfora. Sabia que Gustavo tinha razão. Era preciso, no mínimo, recolher as coisas que pertenciam ao meu pai. Usei toda a energia que eu tinha para me arrastar para fora da cama e fui recolher alguns fragmentos meus na esperança de um dia poder reagrupa-los mais uma vez.

**

—O que você acha, Lia? – mamãe perguntou, com um grande sorriso no rosto, quando meu pai tirou as mãos que cobriam meus olhos.

Parecia uma loja de bugigangas que alguém poderia ver em filmes. Se fingisse que estava em uma história de fantasia medieval, poderia ser uma taberna. O lugar era pintado para parecer que as paredes eram madeira mogno. O frontal onde havia Editora Paralelos escrito já estava pintado em letras garrafais, na mesma fonte usada para o título de O Senhor dos Anéis.

—Ficamos muito na dúvida se você ia preferir a fonte de Não entre em Pânico, Harry Potter ou Senhor dos Anéis – papai informou – Espero que tenha sido a escolha certa.

Sim. Estava incrível.

As janelas de vidro me permitiam ter um vislumbre do ambiente interno. Era amplo graças ao vazio, mas logo o preencheríamos com algumas estantes de livros – publicados pela nossa própria editora. Paralelos. Destinada a manter a fantasia viva. Uma escada levava a um segundo patamar mais estreito que o primeiro. Como nas livrarias, o segundo andar ocupava somente os cantos, contornando o recinto e deixando o espaço no meio livre. Era perfeito.

Fazia muito sol no dia que concluímos a arrumação do lugar. Eram as férias de julho e aquele era o ano em que me formaria na faculdade. Tudo parecia sincronizado e um bom pressentimento se alojou em meu peito. Talvez, ao contrário do que as pessoas sempre disseram, fosse possível viver de sonho.

**

Tecnicamente, Paralelos não é uma cidade tão pequena. O que a tornava pequena e quase fantasmagórica eram seus enormes terrenos. Mansões luxuosas para magnatas excêntricos que gostavam de passar alguns dias perto de florestas, lagos e montanhas; reclusos das grandes metrópoles. Esses enormes ranchos em geral tinham sua entrada na beira da estrada e seguiam adentrando em áreas florestais. Eram afastados uns dos outros, alguns casebres antigos e abandonados também se espaçavam por aquelas direções e conectavam-se com estrada principal por uma trilha que, muitas vezes, era entrecortada por minúsculos laguinhos. Tenho uma tenra lembrança infantil do quanto eu ficava assombrada ao constatar que o lugar onde morava era parecido com a maioria dos cenários de filmes de terror. Todavia, isso foi alterado quando entrei na adolescência e notei que minha cidade também era parecida com panos de fundo de cenas típicas de filmes existencialistas com fotografias excepcionais.

Minha casa ficava em uma dessas regiões afastadas, porém ainda longe das áreas florestais. Situada próxima da estrada principal que levava ao centro, a vizinhança onde eu morava permanecia a mesma desde que eu era criança. Um quarteirão, depois um razoável caminho reto e arborizado até que se pudesse avistar mais casas; se você continuasse seguindo reto chegaria ao pequeno e lindo centro da cidade. As ruas de pedrinhas eram uma das minhas coisas favoritas quando eu tinha nove anos. Ele era coberto por lojinhas de artesanato, pequenas praças e jardins. Escolas, creches, oficinas e... Pessoas. Morando tanto tempo em um dos lugares mais afastados, quase chegava a esquecer de que a região norte era cheia de bairros com casas reais que abrigavam pessoas reais com problemas reais. Para alguém que passava tanto tempo cercada por fantasmas e ecos, essa era uma sensação muito bem-vinda.

Estava saindo de casa para me despedir de um lugar que eu amava quando fui abordada por uma saudação calorosa.

—Bom dia, Lia.

Eu me sentia tão rústica e tão mal lapidada para sair de casa que fui surpreendida ao ser reconhecida como ser humano.

—Ah, olá Ana – cumprimentei minha vizinha da frente que era também a amizade mais duradoura que eu possuía.

Você deve se recordar dela. Lembra que disse que ela era a única que possuía a chave da minha casa além de mim? Então, conheçam Ana, de verdade dessa vez. Ela era como uma daquelas imagens estereotipadas de mulheres francesas em versão tamanho real. Eu zombava de todo esse clichê ambulante a chamando de Amélie Poulain, o que a deixava irritada. Mas em minha defesa, ela realmente era uma sonhadora incurável repleta de ânsias de um mundo idealizado que nunca iria existir – uma romântica incurável. Por esse motivo, nos identificávamos tanto uma com a outra. Apesar disso, não havia existido duas pessoas mais diferente que nós duas. Ela foi fazer faculdade de arqueologia e museologia em Edimburgo e retornou para a casa dos pais alguns meses após o meu próprio regresso para a pesquisa de seu mestrado. Além das lendas, não se conhecia muito sobre a formação da cidade e de sua história. Não se tinha noção de há quanto tempo existia, em que contexto histórico se encaixava e quais povos nativos – se existiram – viveram aqui. Ela estava tentando remexer no passado mítico da região próxima às montanhas e encontrar premissas lógicas para toda a peculiaridade que parecia emanar do solo de Paralelos, de acordo com a geologia e outros aspectos que não me interessavam muito, receio admitir.

A última vez que havíamos nos falado foi na ocasião da morte do meu pai. Ela não pôde viajar, mas me ligou várias vezes e eu também comecei a receber constantes mensagens de apoio.

—Você parece indisposta – eu franzi o cenho e me senti um pouco ofendida com aquele comentário. Nem todo mundo consegue ter uma aparência impecável como você, viu Ana?, pensei coberta de amargura. Não é só porque seu rosto é salpicado de sardas adoráveis, e a ponta arrebitada no seu nariz combina perfeitamente com a sua boca que todo mundo acorda deslumbrante assim também.

—Hum – foi o máximo que consegui retrucar. Ela veio saltitando em minha direção enquanto eu trancava a casa. –E você parece muito animada. Em doses que deveriam ser proibidas uma hora dessa da manhã.

—Você pensou no que eu disse? – seus olhos estavam cheios de expectativa.

—O que você disse?

—Ah, Lia. Você nem lembra? Chamei você pra me ajudar na minha pesquisa.

—Ana, eu nem ao menos sou desse ramo. Eu não entendo nada que não seja fictício, as únicas coisas que eu sei sobre Paralelos é que ela é fria, chove muito e tem umas montanhas ali – apontei para a direção sul, indicando o cenário formado pelos picos das montanhas.

—Justamente! – meu tom de recusa parecia incentivar mais ainda o entusiasmo dela – Você vai descobrir tantas coisas! Não te incomoda não saber a história do lugar onde você nasceu?

—Sinceramente? Não muito. Eu nunca me considerei muito presa a lugares – falei tentando encerrar o assunto enquanto andava até minha bicicleta. – A não ser que esse lugar seja a Terra-Média.

—Mas você não percebe? De alguma forma, o lugar onde a gente nasce deixa uma marca na nossa vida, quer você queira ou não. Bilbo Bolseiro sabia disso, conhecia suas raízes, e foi exatamente por esse motivo que decidiu dizer sim ao mundo aventuroso. – a observei de frente, pela primeira vez desde que começamos aquele embate e percebi que seu rosto estava mais anguloso do que nunca.

—Você anda pesquisando demais e esquecendo-se de comer, não é? – repreendi.

—Não. – falava como uma criança que tinha acabado de ser flagrada fazendo algo grave. Não desviei o meu olhar severo e isso a fez amolecer a expressão – Talvez.

—Você fica pagando de Sherlock Holmes toda vez que está muito imersa em uma pesquisa, esquecendo-se de comer, dormir... – aproximei-me dela e fingi farejar algo – e até de tomar banho, pelo visto.

—Ei! – protestou – eu tomo banho, viu? Quer saber? Esquece, eu não preciso da sua ajuda.

Percebi que ela estava legitimamente chateada e comecei a rir. Fomos melhores amigas durante toda nossa vivência como vizinhas, mas, conforme crescemos, a bifurcação dos caminhos foi inevitável.  Pertencíamos a mundos diferentes e a Ana que eu conheci já não existia, da mesma forma que a Lia que foi sua melhor amiga já não morava mais em mim. Contudo, de alguma forma, eu ainda a via como minha melhor amiga porque simplesmente parecia errado não considera-la dessa forma. Certas pessoas estavam destinadas a sempre retornar e pertencer em seus lugares de origem. Naquela situação, nós duas éramos novamente vizinhas e amigas, como se o abismo de anos não se interpelasse entre nossas atuais personalidades.

—Tudo bem, eu ajudo você. Não sei como poderia fazer isso, mas tudo bem. Irei para garantir que você tenha hábitos saudáveis – decretei.

O sorriso que ela me ofereceu em retribuição foi tão espontâneo que eu quase me senti mal por estar evitando sua companhia desde que voltara para casa. Às vezes você não precisa de alguém que lhe mostre o lado positivo das coisas, você só quer mergulhar em um vórtice de melancolia e em Ana cabia tanta alegria que transbordava para quem estava ao redor.        

—Você quer uma carona até o centro?

Nem perguntei como ela sabia para onde eu estava indo, era um pouco óbvio. Notei uma expressão triste em seu rosto.

—Minha mãe ligou para você, não foi? – indaguei com um olhar perscrutador e, depois de alguns segundos, ela aquiesceu tepidamente. —Gosto mais da minha bicicleta do que da sua moto. E, além disso, é uma boa forma de não deixar meu sangue congelar.

—Sim, está certa. O exercício vai te fazer bem. Hoje, 16h, vamos às montanhas. Esteja aqui.

Fiz uma careta e ela me deu uma piscadela. Observei enquanto se afastava, quase saltitando, com os cabelos cor de palha dançando de um lado para o outro. Sorri ao perceber que, não importa o quanto cresçamos e nos afastamos de nossas raízes, algumas coisas nunca mudam.

**

A Editora Paralelos situava-se no centro da cidade e uma sensação familiar de segurança apoderou-se de mim quando pus meus pés naquele chão de pedrinhas. Ver o movimento das pessoas através de um cenário tão singelamente bonito como aquele fez com que a morosidade do meu espírito fosse se esmaecendo. Muitas vezes, você precisa alterar sua perspectiva quando as coisas parecem difíceis demais. Como uma sociedade de poetas mortos nos ensinou uma vez, é necessário que subamos em mesas em determinadas ocasiões. Abandonar a atmosfera densa da minha casa cercada de fantasmas e me posicionar no meio da vida urbana fez com que eu me sentisse em cima de uma mesa bem alta. Esse pensamento me fez sorrir e quase me vi falando “oh capitão, meu capitão” em voz alta, para ninguém em particular. A sensação de compadrio que tive com a cidade naquele momento fez com que eu tivesse a impressão de estar sendo acalentada por velhos amigos. Minha apatia foi um tanto aplacada, dando vazão a outros sentimentos. A maioria deles não era boa, porém para alguém que oscilava entre o sono e o vazio, sentimentos de qualquer natureza eram bem-vindos. Eu estava acorrentada em um ciclo de repetições tóxico, mesclando entre o desânimo e a agressividade, flertando com a autodestruição e o descaso.

 Algo novo se anunciava naquele dia.

É engraçado pensar como um dia pode mudar tantas coisas. Bernard Cornwell, um dos meus autores favoritos, escreveu uma vez que todo dia é um dia normal, até que não é mais. Levantamos da cama com preguiça, ficamos mal humorados com a manhã e, durante esse tempo todo, nosso dia abafa umas risadinhas porque sabe o que está por vir. Sabe os estragos ou as maravilhas que nos reservou.

Já passava um pouco das 10h quando eu abri a porta da lojinha-barra-editora e fui recebida com o som dos sininhos que ficava acima do batente superior para avisar a chegada de um visitante.

—Lia! – Gustavo estava descendo da escada com uma mochila nas costas e outra na mão – Parece que eu não te vejo há séculos!

—Quanto drama, Raskólnikov. Aparentemente você resolveu deixar a arrumação toda pra última hora.

Apesar do frio, ele estava de bermudas e uma blusa de meia, o que fez com que eu me sentisse ridícula com minhas duas blusas e um casaco por cima. 

—Exato – retrucou com um sorriso cínico. Não parecia nem um pouco abalado com a entrega do estabelecimento e a mudança repentina em seu cotidiano, era uma daquelas pessoas que estavam sempre aptas e receptivas a mudanças. Tinha ideia novas para tantas coisas. Voltaria para São Paulo, melhoraria o site da editora, iria para todos os eventos importantes e os não importantes também. Lecionaria e incentivaria os alunos a escrever. Revolucionaria uma geração. Quanta energia. Quanta semelhança ao que eu era alguns meses atrás.

Mesmo com minha expressão carrancuda, não escapei de receber um abraço de urso que quase esmagou minhas costelas e me levantou do chão. Gustavo começou a falar sobre várias coisas relacionadas ao mundo editorial e eu nem ao menos estava escutando, só assentia e olhava ao redor. Recordei o pouco tempo que passei ali na companhia dos meus pais, nós três imersos em silêncio ou, eventualmente, os três em ligações diferentes resolvendo assuntos. Essas últimas ocasiões em particular me faziam sentir imensamente poderosa. Uma criança sabe o que significa quando sua mãe a deixa tomar alguma decisão importante. Toda vez que mamãe me perguntava o que eu achava melhor, me sentia como uma garotinha sendo permitida a ajudar em alguma decisão familiar fundamental.

—Lia, pare de ficar desse jeito. Como um sábio disse uma vez. Sempre há esperança – lançou uma piscadela para mim.

—Aragorn?

—De quem mais eu estaria falando?

A leveza de espírito me impeliu a sorrir. Frequentemente, otimismos românticos me deixavam zangada, mas daquela vez a esperança de Gustavo funcionou como um exercício de respiração.

Fique calma. Mude sua perspectiva. Suba em uma mesa.

—Lia... – sua voz assumiu um tom mais sério. Percebi que ele adentraria em um terreno mais volátil agora e me preparei para o que viria a seguir. –Eu sei que é um momento terrível, mas... Você não pode se deixar levar por tantas coisas assim. Não vou ser óbvio e dizer aquilo que todos dizem em filmes...

—Por favor, seja óbvio – interrompi. Parte de mim queria ouvir clichês. Parte de mim queria ser resgatada e temos que começar em algum lugar.

—Seu pai odiaria ver você desse jeito.

Odiaria mesmo. Provavelmente me daria um cascudo e me perguntaria se eu não tinha lido A Pedra Filosofal vezes o suficiente para saber que a morte é somente a próxima aventura. Eu conseguia vê-lo e ouvi-lo dizendo aquilo em minha cabeça quase como se fosse uma memória real. Aquilo fez com que meu coração transbordasse de saudade e comecei a chorar. Gustavo me abraçou mais uma vez e dessa vez que não lhe dei tapinhas nas costas para que aquilo acabasse logo como eu sempre fazia.

—Tenho um presente para você – anunciou enquanto me segurava pelos ombros – Dirigiu-se até uma estante, pegou uma caixinha azul e me entregou. – Voilà!

 Analisei o objeto. Era irregular, tão torta que seria incapaz de ter uma tampa para fechá-la. Era pintada de azul dentro e fora, com pequenos pontinhos brancos salpicados. Na parte de dentro, havia também algumas ondas desenhadas no meio.

   -Isso é horrível. Por que você gastou dinheiro com um negócio desse?

  -Não gastei. Eu fiz – explicou, soando ofendido. –Ah, tudo bem, tem razão. Ficou uma coisa horrível, eu só estava em um daqueles dias onde sinto vontade de fazer algo, sabe? Construir algo com as minhas próprias mãos.

   Fez uns gestos agressivos com as mãos tentando indicar trabalho manual. 

     -Acho que é meu excesso de masculinidade.

Gargalhei espontaneamente daquilo e o som pareceu um forasteiro em uma terra desconhecida.

    -De fato. Essa caixinha é muito máscula. Acho que você deveria ficar com ela.

   -Não, você vai ficar para lembrar de que desvios no caminho são importantes. É isso que ela significa.

     -Engraçado porque eu não vejo absolutamente nada que remeta a isso. São pedaços de madeira mal cortados e tortos, com pregos à mostra – provoquei.

     -Lia, quando você vê uma obra de arte, tem que levar em consideração o universo perceptível do artista. Tudo que ele estava pensando e sentindo. Se eu, o artista, digo que isso significa isso então você tem que calar a boca e pensar “uau, arte contemporânea”.

      -Isso nem faz sentido, Gustavo.

     -Pelo o amor de tudo que é mais sagrado, só deixa eu me livrar dessa caixa horrorosa.

     Dei o braço a torcer e começamos a recolher nossas coisas. O lugar nunca havia se tornado o que deveria ter sido. Eram somente três estantes no andar de baixo com alguns livros publicados pela Editora, mas a maioria pertencia a minha casa. Tínhamos trazido para que o ambiente não aparentasse tão vazio. Havia três mesas de trabalho simbólicas e duas poltronas. Gustavo havia ligado para um serviço de mudança e eles viriam recolher as caixas e levar até minha casa. Enquanto eu recolhia bugigangas de enfeite das estantes, consegui finalmente formular um pensamento que estava se formando em minha mente há um tempo.

—Gustavo – arrisquei – você abandonou a faculdade de física, não é?

—Há muitos anos, eu tinha 17 e agora tenho quase 30. Era apaixonado pelo céu, o universo e todas as possibilidades contidas no cosmos, mas a quantidade absurda de matemática exigida para entrar em contato com essas coisas me afastou dos astros – seu tom era galanteado, como se estivesse recitando as falas de uma peça. Eu sabia que ele estava tentando me fazer rir, então lhe concedi o desejo e sorri. – Preferi outro tipo de contemplação. Por que você quer saber disso?

—Bom, é complicado. – ao ouvir isso, ele cruzou os braços e me olhou atenciosamente, fez um meneio com as mãos para que eu prosseguisse – Você acredita em universos paralelos? Quer dizer... Eles são possíveis?

—Olha, Lia. Eu não acredito no impossível quando se trata do nosso cosmos. Para tudo há uma possibilidade, entende? Nós somos tão insignificantes para afirmar algo com certeza absoluta... Não chegamos nem a ser um grão de areia cósmico. 

A conversa partiu para um ramo filosófico coberto de incertezas, poesia, exageros e referências literárias. Apesar de amar esses assuntos, eu esperava uma resposta mais concreta, mais científica. Voltei para casa junto com o caminhão de mudança, fiquei ensimesmada o caminho inteiro, porém com sono demais para pensar logicamente. Gustavo me acompanhou e passou o curto caminho batendo papo com os funcionários. Eleanor, Eleanor... Eu ainda não consigo encontrar uma explicação racional para você, mas, por favor, seja real. Por favor.

Como eu não tinha onde colocar nada, resolvera vender as estantes, as mesas e as poltronas para a senhora que me alugava o ponto comercial então elas ficaram na antiga casa da Editora. Paguei pelo serviço e pedi que só largassem as caixas na sala. Desamarrei minha bicicleta da caçamba do caminhão e, simples assim, pensei que a parte mais difícil do dia tinha passado. Eu estava errada.

—Então, acho que é isso - Gustavo pegaria uma carona de volta até o centro e depois iria embora. –Você tem planos de voltar a São Paulo? Sabe que lá é seu lugar.

Sim, de fato. Eu tinha muito trabalho a fazer e nenhum deles teria mais frutos em Paralelos. Aquela cidade havia se transformado em um beco sem saída. O que tinha para mim aqui?

A resposta era simples.

A possibilidade de ser assombrada novamente por uma garota no meu espelho.

—É provável que você esteja certo, mas... Não agora.

—Vou perturbar você todos os dias até que decida voltar. Guardou direitinho sua caixa? – assenti. Ela estava, de fato, junto com alguns livros – Muito bem, então. Agora preciso ir até a rodoviária e pegar um ônibus para um lugar que me leve de volta ao mundo real.

Abraçou-me mais uma vez e, enquanto subia no caminhão, voltou-se em minha direção.

—O mundo real vai ficar te esperando. Não fique presa demais aqui.

**

O frio e o meu desânimo contribuíram para que eu dormisse o resto da tarde, esquecendo até mesmo de almoçar. Acordei com a barriga roncando e saí enfiando na boca tudo que havia na geladeira quando entrevi Ana no corredor.

—As pessoas costumam tocar a campainha, sabia?

—Você me deu a chave por um motivo.

—Já são 16h?

—Não, são 15h30, mas sabia que você se atrasaria, então decidi vir antes. – ela aparentava ser uma personagem de filmes baseados em livros de Julio Verne.

—Você realmente deveria usar calças cáqui para subir uma montanha?

—O que mais eu usaria?

Calçava all-stars e vestia um colete marrom e charmoso com infinitos bolsos. Tinha a mochila nos ombros e segurava uma maleta. O cabelo longo estava preso em um rabo de cavalo alto. Tudo aquilo lhe acrescentava um ar adorável e, ao mesmo tempo, profissional.

—Onde estão seus pais mesmo? – indaguei.

—Fazendo um tour pelo nordeste, pelo visto cansaram das montanhas e agora decidiram que preferem praias. Talvez vendam a nossa casa aqui, sabia?

—Sério? Sua família já morava aqui bem antes da minha. É estranho pensar nisso.

—Eu sei. É meio esquisito dizer adeus a algo que sempre pertenceu a você. Não consigo explicar, mas... Parece errado. De todas as formas, eu não vou continuar morando aqui e não posso exigir que meus pais continuem. Cada um tem que fazer o melhor para sobreviver. É injusto prender coisas e pessoas só porque elas transmitem segurança.

Sua voz era casual, porém seu semblante denotava uma leve soturnidade. Agora pude entrever o motivo por trás da fixação de Ana com a história de Paralelos. Ela tencionava encontrar os modos de como a origem da cidade mesclava-se com sua própria vida, se atrelando em sua essência. Desejava todas as respostas antes que tivesse que encerrar definitivamente aquele capítulo. Tudo que ela dissera parecia ser uma repreensão ao que eu estava fazendo com a minha vida. Prendendo-me em coisas antigas só porque pareciam ser de indubitável confiança. Afastei aquele pensamento porque não queria me sentir mal por precisar de uma reafirmação, um tempo para voltar atrás e respirar.

Apressei-me em vestir um jeans qualquer e uma blusa de meia. Ana repreendeu-me por não pegar um casaco, eu a ignorei e nós saímos de casa, seguindo de moto entre as trilhas que levavam até as montanhas. Não conheço nada sobre modelos de motocicletas, então só posso dizer que a que pertencia a Ana era vermelha e muito bonita, acrescentava uma personalidade selvagem e inusitada naquela arqueóloga deslumbrada com o passado. Estava próximo do entardecer, o momento mais suavemente colorido do dia. Recantos do céu mergulhavam em um azul límpido ao passo que outras partes entregavam-se a um rosa delicado. O vento tocou friamente na pele descoberta do meu antebraço e transmitiu um quê de tranquilidade. Pequenas coisas como aquelas me recordavam o motivo de eu ter ficado. Elas deveriam estar me ajudando a manter-me de pé, mas em vez disso, eu me fechei para todas as formas de auxílio.

A região das montanhas possuía algumas casas luxuosas que eram alugadas eventualmente, entretanto nenhuma pousada propriamente dita. Chegamos até a residência que ficava mais próxima à trilha que seguia montanha acima e Ana guardou sua moto na entrada.

—Isso não é invasão de propriedade?

—Você está vendo alguém aqui pra reclamar?

Mediante tal argumento, tudo que pude fazer foi calar a boca.

Apesar de estar calçada e vestida para uma árdua caminhada, eu encontrava dificuldade em acompanhar o passo da minha amiga. O sedentarismo é meu calcanhar de Aquiles. Ela carregava alguns materiais de estudo que eu não sabia identificar e, mesmo assim, andava mais rápido que eu. Muito bem, Lia. Meu coração parecia não ter espaço suficiente em meu peito, minhas bochechas queimavam e respirar era difícil.

—Ana – chamei, quase sem fôlego. Falar fazia com que meus pulmões entrassem em desespero.

—Você está com uma aparência terrível. Me espere aqui, vou continuar subindo e já volto.

Fiquei agradecida por aquele ato misericordioso e sentei-me em uma pequena pedra no encostamento, bebendo todo o conteúdo da minha garrafa térmica. Era difícil apreciar a vista enquanto eu ainda não recuperara o fôlego, contudo, assim que voltei ao normal, não pude deixar de arfar mediante a beleza mística do lugar.

Um pecado que nós, sonhadores, cometemos é idealizar o que está distante e amar o impossível, isso machuca aquilo que temos à nossa volta. Sim, eu queria as terras encantadas de Nárnia, mas também existia algo mágico em minha vida. Essa nova perspectiva tinha uma razão. Tudo que eu via parecia mais majestoso e solene agora que Eleanor cruzara meu caminho.  

Apesar da paisagem considerada austera, tudo era tão vibrante e cheia de vida ali. Os pássaros quebravam o silêncio com uma melodia que parecia uma perfeita combinação com o suave farfalhar das folhas. O cheiro de terra trazia uma sensação magnífica de simplicidade. Perto dos meus pés, uma fila de formigas levava uma aranha morta para o interior da parede da montanha. Olhei para cima e imaginei quanta vida havia dentro daquelas pedras. Passei a mão e senti a textura áspera. As montanhas eram tão lindas e, ao mesmo tempo, tão intocáveis. Era impossível saber de verdade o que escondiam. Pobre Ana. Quanto tempo levaria até que descobrisse isso? Tudo era tão distante, ninguém conhece nada de verdade. Você pode visitar uma cidade, mas nunca vai saber de todas as suas ruelas. Montanhas, pessoas, lugares. Todos inalcançáveis. 

Levantei-me e andei em círculos, admirando a paisagem até que, subitamente, algo captou a atenção dos meus olhos. Desci um pouco a trilha e me aproximei do que percebi ser uma inscrição no chão, feito com pedrinhas. Como nas brincadeiras de criança, aquelas em que desenhávamos quadrados de amarelinhas na calçada. Meu coração parou quando li o que estava escrito. Três letras.

LIA.

Meu nome, ali, às margens da trilha.

Ao lado da anotação, onde um amontoado de pequenas rochas encostava-se a própria montanha, bem apertado e quase imperceptível, estava preso um envelope. Ávida, o recolhi com a certeza de que era pra mim. Abri o invólucro, sentindo meu organismo em estado de alerta.

“Querida Lia...

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eu espero que todas vocês estejam bem hidratadas e se cuidando bastante, hein? Quero todas saudáveis e felizes ♥
Me desejem boa prova! Até o próximo e que as fadas protejam vocês!