Amandil - A Senhora da Luz escrita por Elvish Song, LadyAristana


Capítulo 6
Submundo


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal!
Sim, estou de volta, e não tenho muito como me desculpar pelo sumiço, não apenas nessa, mas nas outras fanfics, como escritora e leitora. Tive uma depressão bem forte, estou lutando contra ela, e por isso esse capítulo vai dedicado à minha coautora linda, a eterna Lynn de minha Amandil, Sherazade, por me ajudar com seu jeito único a superar uma das piores noites da minha vida.
Agradecimentos também a todos que continuam lendo, a despeito desse hiatus enorme. Beijos enormes a todos, e esperamos que gostem da leitura!



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Assim que ultrapassou a barreira, Amandil sentiu-se envolver por um frio anormal: não como os ventos gélidos de Caradhras, as neves eternas das Montanhas da Névoa ou o inverno do norte... Era um frio absoluto, que penetrava sua pele e congelava-a até os ossos, a despeito das roupas pesadas que vestia. Um frio que entrava pelas narinas e fazia doer sua cabeça, insensibilizava seus dedos e feria os olhos azuis, associado a uma escuridão profunda como a rainha só presenciara em um lugar: a Torre de Barad-Dûr, num tempo tão distante que poderia bem ter sido em outra vida. Ela respirou fundo, deixando que sua própria luz fosse fortalecida pela Silmaril enquanto descia a íngreme parede de pedras, rumo à fonte da escuridão, cada vez mais fundo na terra. Podia sentir a hostilidade do lugar à sua mera presença, e de repente um breve sorriso lhe curvou os lábios: sentia-se outra vez a garota que vivia imersa em problemas e aventuras, e escalando daquele modo foi impossível não se lembrar do dia em que desmoronara a passagem do Gargalo, na Batalha dos Cinco Exércitos. Contudo, suas motivações não poderiam ser mais diferentes do que naquele tempo distante.

Foi um alívio sentir seus pés no chão firme, embora cada passo dado aumentasse a sensação de escuridão e opressão; estava agora no centro de uma caverna pela qual espalhavam-se alguns ossos, esqueletos e cadáveres recentes de animais por sobre os quais alguns ratos corriam, disputando o alimento. Estremeceu levemente, tentando não pensar em como sua filha acabara ali, e o que poderia ter lhe acontecido... Eram hipóteses demais, e nenhuma delas passava sequer perto de tranquilizar a Senhora da Luz. Assim sendo, baniu todos os sentimentos que a atormentavam e focou unicamente em seu objetivo: encontrar Nerwen. Conjurou uma pequena esfera de luz branca, não mais intensa do que a chama de uma vela, e começou a caminhar através da caverna; podia sentir os rastros fracos da energia de sua filha e, prova maior ainda da presença da jovem ali, via tufos de musgo florescente na forma de pegadas. Era toda a confirmação de que precisava para duas coisas: um, sua filha caminhara voluntariamente para a escuridão profunda adiante, e dois, estava viva, ou as plantas nascidas de suas pegadas teriam definhado e morrido. Mas o que aquela menina inconsequente pensara? Como pudera ir voluntariamente para... O lado materno começou a falar mais alto, enquanto a elfa tentava não listar os sermões que faria à garota!

Nas paredes da caverna havia nichos onde diversos tipos de criaturas se ocultavam, de ratos a morcegos. Um rosnado chamou a atenção da Senhora, que levou um pequeno susto ao iluminar o focinho arreganhado de um warg a rosnar para si; com autoridade, estendeu a mão e o obrigou a recuar; incomodado pela luminosidade da rainha, a fera regressou para a fenda de onde saíra. Por entre as pedras do alto, goblins e orcs das profundezas se espremiam entre estalactites para fugir da presença desconhecida e assustadora; geralmente se mostrariam ferozes e territoriais, mas sabiam ser aquele um adversário mais forte que qualquer deles.

— Por que vocês não atacam? – indagou a mulher, confusa. Por tudo o que sabia, orcs não possuíam os instintos animais de sobrevivência... Não hesitavam ante um inimigo, e sua natureza agressiva sobrepujava a sensação de estarem ameaçados. Aqueles, porém, eram exatamente como animais, escondidos nas trevas sem dar indícios de dali sair. – Nunca viram a luz – compreendeu a mulher, seguindo adiante. A caverna terminava num declive não muito acentuado, em direção às entranhas da terra, e as pegadas de Nerwen continuavam. Cada vez mais intrigada, Amandil se abaixou e examinou os rastros, os quais contavam de muitos meses atrás mas, por algum mistério, se haviam conservado... Ao lado das pegadas da Elenië havia outro par, mas de pés masculinos e calçados; alguém que induzira a moça a seguir aquele caminho. Garota tola!

À medida que avançava naquele submundo, a rainha da luz teve certeza de uma coisa: o ser que controlava aquelas terras estava muito ciente de sua presença, e talvez fosse este o motivo para que criatura alguma a atacasse – já não sabia nomear tudo o que vira, até agora. Pelos túneis profundos de pedra e terra ecoavam sussurros, gritos, gemidos... Ela vira fantasmas com seus próprios olhos, tremeluzentes, translúcidos e esverdeados, presos ao mundo terreno por assuntos inacabados: fitavam-na apenas por um segundo antes de desaparecer como névoa ao sol, mas suas vozes continuavam a ecoar. Guinchos estranhos, assobios, uma cacofonia de sons capaz de assustar qualquer um, mas não Amandil: não a rainha-guerreira que encarara o mal face a face. E se havia algo que a confundia acima de tudo – muito mais do que o labirinto pelo qual prosseguia, ou a atordoante sinfonia de ruídos incomuns – era a distinção entre a natureza daquele lugar e Barad-Dûr: igualmente sombrios, mas havia ali a ausência do mal absoluto que sentira em Sauron. Quem quer que dominasse o submundo, não fora completamente tomado pelo mal, embora amargura, sofrimento e solidão estivessem impressos em cada pedra do caminho. E então, a percepção mais aterradora: caminhava pelos terrenos que deviam pertencer a Námo-Mandos!!! Descia ao próprio mundo dos mortos! Mas não se tratava de Mandos quem ali governava... Seu herdeiro... Um herdeiro antigo e poderoso, mas destreinado. Tudo isso ela captava pelas impressões de energia deixadas em cada recanto, pela sensação cada vez mais intensa à medida que se aproximava de seu alvo.

— Valar, eu não sei se podem me ouvir, mas quando voltar à superfície, tiraremos satisfações por nunca terem me contado sobre isso. – Estava mais do que claro ser aquele Herdeiro de Mandos pelo menos tão antigo quanto a própria Amandil, talvez mais! E ainda assim, nenhum dos Ainur considerara importante ou relevante contar-lhe a respeito! Ah, Gandalf e Yavanna iam ouvir MUITO, quando subisse aos planos sutis novamente!

A escuridão quebrada pela esfera de luz foi aos poucos substituída pela presença inesperada de cristais luminosos: rochas que emitiam um brilho suave e agiam como archotes, lançando alguma luz sobre a trilha adiante e sua intermináveis ramificações. O peito de Amandil se contraía como se garras geladas o comprimissem, ao mesmo tempo em que sentia a energia escura se adensar, e o fraco rastro de luz deixado por sua filha imergir naquele breu sem fim e infinitos túneis labirínticos. Com a espada na mão esquerda e a direita segurando firmemente o pingente da Silmaril, continuou seguindo o rastro que, cedo ou tarde, haveria de leva-la a sua filha.

*

A Rainha da Luz já não sabia dizer há quanto tempo estava naquele lugar: dormira alguns minutos por duas vezes, então poderiam ser bem três ou quatro dias, mas não podia afirmar com certeza. Encanto que confundiam humanos e anões nas floretas élficas ora agiam sobre ela, fazendo com que não soubesse se seguia para cima ou para baixo, à direita ou à esquerda; tudo o que sabia era estar atrás do rastro de sua filha, cuja presença parecia cada vez mais forte; entretanto, podia perceber uma enorme tristeza na energia de sua menina... Estava enfraquecida, triste, desapontada... Com raiva... Mas exausta demais para lutar. Essas informações chegavam até a rainha, que se sentia cada vez mais angustiada por encontrar sua pequena Nerwen. Mas como fazer isso, naquele labirinto infinito?!

Cada vez mais fundo, mais abaixo do que jamais fora, mesmo quando no coração das Montanhas da Névoa, ou de Erebor. Cada vez uma escuridão mais profunda, que já não lhe permitia dormir: fantasma cinza-esverdeados a fitavam com semblantes curiosos, e animais que jamais vira rastejavam por seus pés, afastando-se abruptamente ante a luz emanada pelo corpo da Senhora; ela procurava se manter longe das fendas nas paredes, de onde criaturas observavam, seus olhos brilhando em amarelo, vermelho, verde... Brilhos cruéis, feições de fera... Provavelmente não iria querer saber que tipo de criaturas eram. Por duas ou três vezes tivera a impressão de ouvir o rugido de um dragão, e memórias de milênios atrás fizeram saltar seu coração no peito, mas o amor materno falava acima de tudo, mantendo-a no caminho a despeito da desorientação.

Um tempo infinitamente longo seguiu, e as forças da Rainha da Luz começavam a falhar; suas pernas vacilavam, os pés tropeçavam em si mesmos, e o frio úmido daqueles túneis infinitos começavam a congelar seus dedos e extremidades. Sabendo que logo seu corpo a obrigaria a parar, e que não podia assumir sua forma etérea naquele lugar, abriu mão do bom-senso e chamou, à espera de qualquer resposta, por menor que fosse:

— Nerwen!  - um sussurro fraco pareceu responder; não a voz de sua filha, mas ainda assim... Era uma resposta. Algo sabia que ela estava ali, e chamava pela Ainur em ecos que ressoavam por todos os caminhos. O chamado tornou-se mais forte, e o som, mais atordoante, até ela ter de usar ambas as mãos para tapar os ouvidos sensíveis – Quem é você?! – gritou, com raiva – o que quer de mim e de minha filha?!

Como se em resposta a sua pergunta furiosa, a escuridão adiante tremulou e uma figura deixou as sombras: um ser humanoide, com fortes características de algum réptil; o rosto não possuía nariz, mas fendas respiratórias, e escamas recobriam a testa e maçãs do rosto. Os lábios eram humanos, e os olhos também o seriam, não fossem as pupilas em fenda, ora muito contraídas pela luminosidade à qual estavam desacostumadas. Usava um longo manto preto, e uma cauda lacertília arrastava-se atrás da criatura, cujas mãos de cinco dedos terminavam não em unhas normais, mas grossas, negras e pontiagudas, quase como garras. Era extremamente alta, provavelmente mais de dois metros, e ainda assim, com tantas características ferozes, havia algo quase dócil em seu semblante ao encarar a mulher de trajes brancos à sua frente. Com uma reverência profunda, que expôs os chifres brancos a crescer por entre os cabelos negros presos em trança, saudou:

— Sssseja bem vinda, Filha dasss Essstrelas – ao falar, foram expostos os dentes pontiagudos e a língua viperina, bífida, mas de algum modo nada daquilo assustou a rainha. Surpresa, sim, mas não com medo. Havia muito tempo desde que deixara de sentir medo por si própria e, no momento, tudo o que lhe importava era sua filha. Sua intuição lhe dizia que o ser com o qual interagia a levaria até Nerwen e isso era tudo quanto importava! Empertigando-se regiamente, retribuiu a reverência:

— Com quem tenho a honra de falar?

— Eu sssssou Dracccea, chefe da Casssa Real de Lorde Arthan. Ele me enviou para reccceber a ilussstre Rainha da Luzzzz.

Algo incomodava Amandil... Aquilo estava errado, de alguma forma! Sentia como se caminhasse para uma armadilha, como se galhos espinhosos crescessem ao seu redor, sufoca-la... Mas antes sobre ela, do que sobre sua menina.

— Agradeço, Dracea. – a mulher dragão se aproximou, e Amandil percebeu que ela trazia um manto escuro e pesado numa das mãos.

— Permita-me, sssenhora da luzzz. – o híbrido se aproximou e colocou a peça de vestuário nos ombros da recém-chegada; o tecido agiu quase imediatamente como uma barreira contra o frio que penetrava a carne e os ossos da dama, que subitamente se sentiu muito mais forte. Em seguida, a mulher-dragão emitiu um silvo agudo e longo, e as trevas se solidificaram na forma de um alto cavalo negro e esquelético, de olhos vermelhos, cujas patas se dissolviam em uma massa de névoa escura. A crina era uma labareda de ônix com laivos vermelhos e azuis, e a similaridade com as montarias do Nasgûl trouxe novamente memórias que Amandil preferia não ter. Entretanto, Dracea indicou a montaria – É um longo caminho dessssde a sssuperfície, majesssstade.  Cccertamente está cansssada; esssste animal a levará a ssseu desssstino.

Mesmo com todos os seus instintos gritando contra o ato, a rainha Elenië alcançou o corcel, que parecia tão etéreo que suas mãos poderiam atravessá-lo; foi uma surpresa senti-lo tão sólido quanto qualquer criatura viva, e ao içar-se para o lombo magro, surpreendeu-se mais ainda com o quão confortável era o dorso do animal, como se estivesse sentada sobre uma almofada macia! A docilidade da montaria acalmou um pouco de seus receios, e avivou outros... Pelos Valar, aquilo tinha TODAS as características de uma armadilha. Mas que outra escolha tinha?

Viu Dracea subir ao lombo de um animal similar, e o sorriso de dentes pontiagudos antes que sua “anfitriã” dissesse:

— Não reccceie, majesssstade. Meu sssenhor a aguarda, e em breve reencontrará ssssua filha.

— Preocupa-me em que condições o farei, senhora Dracea. – respondeu Amandil, polida, mas direta – estou pronta, contudo, para quaisquer situações que possam surgir. – ela bateu os calcanhares levemente na barriga do cavalo, que se pôs em marcha – pode guiar-me, por favor?

Novas tochas fracas e bruxuleantes se acenderam nas paredes à medida que avançavam rumo às profundezas, cada vez mais para baixo nas entranhas da terra; a escuridão se fechava às suas costas, e a Elenië sabia de uma coisa com toda a certeza: seria impossível retornar sem as bênçãos do ser que ali vivia. A escuridão, ali, não era apenas a ausência de luz, mas um ser vivo e pulsante, como a própria terra na superfície. Mais do que isso, era parte daquele reino, e um poderoso guardião, contra o qual não havia como lutar.

*

Conduzida por seu estranho guia, que ainda a fazia tatear o quadril à procura da espada que não estava mais ali, tirada dela pela criatura reptiliana como “medida preventiva” quando haviam desmontado, alguns metros atrás - a semelhança de Dracea com um Nazgûl, vista pelas costas, arrepiava os cabelos da dama - Amandil seguia pela escuridão quase total, quebrada apenas por uns poucos musgos bioluminescentes que pareciam ter sido cultivados em locais estratégicos.

Finalmente pararam onde o túnel terminava em uma porta entalhada com esmero em cenas de caça e guerra que, exatamente pelo esmero com que haviam sido reproduzidas, faziam revirar o estômago da mulher. Que tipo de ser doente veria beleza naquilo? Não teve, porém, tempo de conjecturar, pois o etéreo ser de manto negro falou em sua voz feminina sibilante:

— O sssenhor a aguarda, Rainha da Luzzzzz

As portas se afastaram para revelar um salão de enorme pé direito, com colunas hexagonais a sustentar o teto do qual pendiam cortinas de joias verdes e negras que cintilavam num brilho fraco, suficiente para, em conjunto com as tochas de chamas verdes bruxuleantes, iluminar o enorme aposento em cujo centro havia um trono de pura obsidiana, situado sobre uma plataforma de basalto maciço que o punha bem acima do chão. Um trono com formas curvas e sinuosas, outras retas e definidas... Um trono feito com ossos e espadas de obsidiana, cujo coroamento era um crânio de dragão. Não um crânio de gemas... Um crânio verdadeiro, talvez de um filhote, dado o reduzido tamanho, não superior a meio metro.

Ao lado da enorme cadeira, à sua direita, havia outra: não era feita de obsidiana, mas de cristal puro, vítreo, e refletia todas as poucas cores que havia no lugar; sua forma era de folhas, troncos e gavinhas a se entrelaçar, adornada por flores de rubis e folhas de ouro e esmeralda. E sentada naquele trono esplêndido, vestida com uma túnica negra que lhe cobria até os pés, os cabelos louro-avermelhados adornados por uma tiara de diamantes, estava Nerwen. Tinha as faces muito pálidas, os olhos fechados e o semblante entristecido, mas o que mais assustou a Senhora foi a fraqueza que acometia sua filha. Com voz trêmula, chamou-a:

— N-Nerwen... Minha menina...

Os olhos azuis e tristes se abriram, fixando-se na mãe. Por um instante ela piscou, perplexa, certa de se tratar de apenas outra miragem causada pela saudade, mas então percebeu tratar-se da verdade, e ergueu-se de seu trono com um grito de alegria:

— Nenith! - desceu as escadas e correu para Amandil, que avançou e envolveu sua menina nos braços. Entretanto, logo reparou nas correntes douradas que pendiam dos pulsos da Senhora da Vida, atando-a ao trono de cristal... E nada poderia ter preparado a rainha para o horror que tal visão lhe causou.

— Filha... Quem lhe fez isso?! - as correntes que prendiam Nerwen não eram apenas feitas de ouro, mas possuíam em si um feitiço obscuro e poderoso que impedia a moça de se libertar, e mesmo de assumir sua forma etérea. Estava presa a seu próprio corpo, incapaz de fugir, até mesmo de se afastar demais do trono... E para a senhora da vida, estar rodeada por tudo que fazia alusão à morte era... Um ato de inominável hediondez! Amandil teria rebentado de imediato as correntes, se pudesse ter certeza de que isso não drenaria a força vital de sua preciosa filha, mas o encanto parecia diretamente ligado às forças da jovem Senhora da Vida. Libertá-la poderia ser o mesmo que matá-la!

— Mãe - implorou a menina, em pranto - você tem que sair daqui. Por favor, precisa deixar este lugar... Aqui não é lugar para um Elenië! Muito menos para a Rainha da Luz!

— Eu vim buscar você, menina! E não vou sair sem minha filha! – segurou o rosto da filha com desespero, beijando a tez da garota antes de abraçá-la.

A moça começou a soluçar, um pranto convulsivo que a fez esconder o rosto no colo da mãe:

— você não entende... Ele nunca vai me deixar partir! Estou presa aqui por meus próprios atos. Eu causei isso a mim mesma.

— QUEM é ele? - Amandil nunca vira Nerwen naquele estado tão miserável e doente. Sua filha costumava correr pelos bosques em roupas rasgadas pelos galhos, e parecer uma rainha ainda assim. Agora, vestia-se como a mais rica das rainhas, e não era mais que uma sombra pálida e fraca... Morrendo na escuridão, longe de seu reino e de tudo o que lhe dava forças! As mãos de Amandil já se iluminavam com chamas brancas, pronta a entrar em combate com quem tivera tamanha ousadia.

— Imagino que se refira a quem sou EU - declarou uma voz masculina e poderosa, quase hipnótica. Amandil se voltou na direção da voz, ainda com a filha envolta nos braços, e contemplou o alvo de seu ódio: um homem alto, de feições poderosas e angulares, sobrancelhas oblíquas, queixo firme, lábios finos... Olhos amendoados e vermelhos, com um brilho cruel... E o mais perturbador: orelhas pontiagudas de elfo. O QUE ERA AQUILO?!

— Bem vinda a meus salões, majestade - o estranho de cabelos louro-platinados executou a mais perfeita reverência. Era elegante e emanava um poder inflexível, sombrio, letal... Mas não exatamente cruel. Irado, talvez, e impiedoso como a própria morte. Amandil vira Mandos apenas uma vez, e via naquele albino tudo o que outrora vira no Senhor da Morte, de modo ainda mais exacerbado! - E perdoe o descontrole emocional de minha rainha... Ela ainda não está habituada a seu novo papel.

— Bastardo, desgraçado - Amandil rosnava por entre os dentes, ocultando Nerwen atrás de si - como OUSA aprisionar minha filha deste modo?!

— Aprisioná-la?! - a surpresa nos olhos do homem era genuína quando subiu para seu trono e ali se sentou - creio que tenha compreendido errado a situação, majestade: é ELA quem me tem como seu completo e mais devoto escravo.

— Você é monstruoso - o desprezo era evidente na voz de Amandil; ela não hesitaria em matar aquela criatura, se fosse o preço para libertar Nerwen - liberte-a AGORA!

— Ah, eu creio que ela não tenha lhe contado como foi que tudo se passou, não é? - perguntou o estranho albino, em cuja fronte agora surgia uma coroa negra de ônix e rubi - foi SUA FILHA quem veio até mim. Sentiu a morte em meu reino, e pensou poder preenchê-la com sua vida. E o fez: trouxe vida e alegria para meu mundo de escuridão e trevas. As plantas luminosas que viu em seu caminho para cá? Todas criadas por ela. Foi minha hóspede de boa vontade, deu-me risos, encantos e fascinou-me... Capturou um coração que eu não sabia existir. E agora, não posso deixa-la partir. Ela me pertence, e eu a ela, para toda a eternidade.

Amandil olhou perplexa para sua filha: Nerwen sempre fora imprudente, mas chegar àquele ponto?! Por Erú, o que acontecia ali?! Ela tinha quase certeza, mas não queria assumir para si mesma o que sua intuição gritava...

— Eu me apaixonei por sua filha, minha senhora. E ela correspondeu ao meu amor. Deu-me seus beijos, suas carícias, seu calor... Dizia que eu não era mau como pensava, que apenas faltava-me amor... E quando eu estava completamente dependente de seu amor, de sua luz e paixão, anunciou-me que pretendia retornar à superfície. Que já não podia permanecer nas sombras... E o que mais eu poderia fazer?! - a sinceridade nas palavras dele perturbavam até o âmago de Amandil, pela honestidade fria que possuíam, associada a uma paixão brutal e obscura - diga-me, senhora: pediria a um mortal que parasse de respirar? - a expressão da rainha foi resposta suficiente - não me peça, então, que a deixe partir.

— Nerwen, isso é verdade?! - perguntou a Senhora da Luz, virando-se para sua filha, que ainda chorava, agora parecendo envergonhada - o que ele diz...

— É verdade, mamãe... - chorou a garota - eu não pensei... Não imaginei... por Ilúvatar, mamãe, eu o amei quando pus meus olhos nele! Meu coração me acorrenta ainda mais do que estas cadeias! - a menina fraquejou, e teria caído de joelhos se a mãe não a sustentasse - mas não posso mais ficar aqui... Preciso da luz... Preciso do Sol, das plantas e animais... Estou morrendo aqui embaixo, e ele não me permite partir.

— Você é minha esposa, Nerwen - declarou o soberano daquele reino obscuro - devia ter pensado nas consequências quando aceitou ser minha rainha. Agora, pertence a este mundo.

Amandil segurou a cabeça entre as mãos, atônita: o que podia fazer? Haveria algo a fazer?! Não podia deixar sua filha ali, mas ela era CASADA com o homem que a impedia de deixar o... Submundo? Mantê-la ali, porém, destruiria a Elenië em corpo e espírito e... Espere! Era isso!

— Lorde Arthan - Ela viu os olhos do homem se arregalarem ao pronunciar seu nome, sem que ele o houvesse dito, mas guardara bem cada palavra de Dracea - lamento pelo mal-entendido ocorrido, porém, esta situação é insustentável. - ainda abraçando Nerwen, deixou que o poder da Silmaril fortalecesse a menina - posso fornecer um pouco de minha força a Nerwen, mas ela é a própria Senhora da Vida. E este lugar, pelo que posso ver, é uma ode à morte. Nada senão goblins e orcs vi por aqui, ou então sombras e fantasmas... Nerwen está gravemente doente, e apenas a luz das estrelas, do Sol e da Lua pode curá-la. Se realmente a ama como diz... Precisa deixar que parta.

Ela viu a dor nos olhos de Arthan ao fitar a figura de Nerwen, agora menos pálida devido aos efeitos positivos da gema no colar da mãe. Ele estava em dúvida, então agora era o momento certo para projetar a força da Silmaril sobre o albino. E funcionou: com olhos marejados, ele perguntou:

— Não existe outro modo? – estava mais do que óbvio que a ideia de perde-la, fosse para a morte, ou para o mundo exterior, dilacerava o coração do homem.

— Não, majestade - respondeu a rainha, sincera - se ficar aqui, não apenas o corpo de Nerwen fenecerá, mas sua alma. Nada restará da mulher que diz amar.

Com a própria vontade minada pela Silmaril, e receoso de perder a única coisa que amava, o homem tinha seus pensamentos estampados no rosto: a dúvida cruel entre prolongar o tempo ao lado de sua amada, mas perdê-la para a total destruição, ou perdê-la para o mundo do qual sua luz viera, e ao qual devia retornar. E a dor no olhar dele era tão grande, que Amandil reconheceu ali o verdadeiro amor que se estabelecia quando dois elfos encontravam o parceiro de sua alma... ainda que estivesse corrompido pelas sombras e torpezas daquele submundo abominável.

— Arthan - gemeu Nerwen, caminhando para longe da mãe e subindo para junto do trono - sou sua esposa por minha vontade, e sabe o quanto o amo. Mas irei morrer se permanecer aqui... Preciso voltar para casa, fortalecer-me outra vez, curar-me... Para poder retornar.

Ele ergueu os olhos vermelhos para ela, surpreso:

— retornar?

— Sim! - ela o beijou e acariciou o rosto pálido, para espanto de Amandil - eu te amo, e você sabe disso! Preciso partir, pois é parte do que eu sou! Mas agora, você também é! Por favor, eu preciso ir... Não posso resistir mais tempo aqui embaixo, mas tampouco suportaria viver para sempre na superfície, longe de você. Pare com isso, e confie em mim. Confie em NÓS! Em nosso amor.

Era hora de lançar sua última cartada, ao que parecia... Cruzando os dedos num pedido mudo de boa-sorte, a rainha declarou:

— Deixe-a partir, milorde, e ficarei no lugar dela, como refém e garantia do retorno de Nerwen.

O casal a encarou, mais surpreso do que a própria Amandil ao saber do casamento:

— O QUE?!

— se milorde consentir, e considerar que a Rainha dos Elenië é uma refém valiosa o bastante, permanecerei aqui até o retorno de Nerwen, como garantia de que lhe será permitido voltar. De outro modo, seus irmãos e irmãs a impedirão de voltar. Mas comigo aqui... Sou sua moeda de troca.

Após um longo e constrangedor minuto de silêncio, Nerwen segurou o pulso de seu esposo e pediu:

— pode deixar-me a sós com minha mãe?

Com semblante de profundo desagrado, ele franziu o cenho e anuiu, erguendo-se e desaparecendo nas sombras. Neste instante a senhora da vida de voltou para sua mãe, toda a fraqueza anterior desaparecida em meio à fúria:

— Você enlouqueceu de vez, Nenith?!

— Eu perguntaria o mesmo, ao saber que se casou sem consentimento com... Com ALGO que sequer sabemos o que é.

— Ele é um de nós, mãe! Mas não foi moldado em luz, e sim em sombras, para ser o Herdeiro de Mándos! Desde o nascimento foi banido da luz e rejeitado pelos elfos, pois sua condição torna qualquer luz direta uma dor infinita a sua carne!

— Ele é um ser sombrio, Nerwen – a mãe foi direta – não duvido mais de que a ame, mas ainda assim, como você mesma disse, ele foi banido do amor, expulso para as trevas. Senhor da Morte, cerca-se de criaturas que outrora serviram a Melkor e Sauron! Tudo nele é corrompido e perigoso!

— Você não sabe o que diz, Nenith. – insistiu a menina – ele não é como... Como os lordes obscuros.

— Ainda não é. Mas como saber até quando?

— Você não fará mal a ele! Por Erú, mãe, jure que não o ferirá, ou eu me recusarei a deixar este lugar, e morrerei aqui! – os olhos de Amandil se arregalaram em terror:

— Tem ideia do que está dizendo?!

— Se tenho noção de que a terra se cobriria com um inverno de décadas? Sim, tenho. Mas o que aconteceria se todas as sombras e fantasmas e orcs mantidos aqui embaixo ficassem, subitamente, sem direção e controle? – de repente a menina era uma mulher defendendo aquilo em que acreditava. Subitamente, Nerwen estava de volta ao que costumava ser, quando acreditava em algo, e a fraqueza física era obrepujada pela fortaleza do espirito inquebrável – Não pode mata-lo.

— Matá-lo? – foi a vez de Amandil ficar impaciente – ficou louca, menina? Acha que eu o mataria?

— Não mataria?

— Não depois de ver que ele é o companheiro de sua alma. Se ele a houvesse mantido aqui como prisioneira, já estaria morto. Mas eu não provocaria tal dor a você, minha filha, e se pensa o contrário, então me conhece muito mal.

— É que... Sei o quanto teme que outra sombra se erga...

— Sim, eu temo. E por isso estou disposta a ficar aqui embaixo, neste mundo esquecido por Erú, para garantir que esse rapaz abandonado pelos Valar conheça e siga as regras. Para que saiba quem é, e não se revolte contra o mundo que o baniu, liberando sobre inocentes as consequências de um ódio acumulado por anos.

— eu posso abrandá-lo com meu amor! – protestou a moça – não precisa se sacrificar deste modo!

— Estará ausente, filha. E a dor de não tê-la, o medo de perde-la... Não posso expor o mundo a tal risco.

— Mas mãe... Você é a Senhora da Luz! Quanto tempo resistirá aqui, longe da fonte de sua energia?

— Tempo o bastante – a mãe acariciou o rosto da filha, e beijou sua fronte com carinho – tempo suficiente para que fique forte, e retorne para seu homem.

— Parece ter aceitado isso muito... Facilmente. – havia desconfiança na voz da mais moça.

— Um casamento consumado é fato indissolúvel, especialmente para nossa raça – declarou Amandil – não significa que eu não tenha vontade de pegar um cinto e surrá-la até arrancar a pele de seu traseiro. – mesmo zangada, a mãe não conseguia esquecer o alívio infindo de ver sua filha viva, e prestes a se libertar... Ao menos por algum tempo. E pelo tempo em que sua filha estivesse segura, poderia saber quem realmente era o homem a quem Nerwen tomara por consorte. Pois sua única certeza, no momento, era que ele a amava, completa, louca e desesperadamente. E que tipo de atitudes poderia ter um homem tão obscuro, tomado por um amor tão intenso? Isso era o que realmente precisava saber.

— Tem certeza de que fará isso, Nana? – Nerwen temia por sua mãe, pelo que o tempo no submundo poderia lhe causar.

— Tenho dois excelentes motivos para fazê-lo: sua liberdade, e a segurança de nosso mundo. – e ante a expressão da filha, respondeu à pergunta não feita – e se eu tivesse de escolher entre os dois... Você seria a minha escolha.

A animosidade que houvera momentos antes se havia dissipado totalmente, e a moça abraçou a mãe com todo o seu amor, ignorando as mãos acorrentadas:

— Eu te amo, mamãe. – afastou-se um breve instante – perdoe-me por causar tudo isto... Eu não queria... Nunca pensei que...

— Não peça desculpas por um ato de amor. – Amandil aninhou a filha contra o peito – nosso povo ama apenas uma vez... E preferiria desaparecer nas trevas a vê-la sofrer pela eternidade a perda de um amor fenecido antes mesmo de se iniciar. Por mais atribulações que este amor possa causar... – ela sorriu brevemente – afinal, o que poderia ser mais adequado, ou mais irônico, do que um casamento entre a Senhora da Vida e o Soberano dos Mortos? É quase tão perturbador e poético quanto uma lenda antiga. – ela acariciou tristemente o rosto da moça, desejando que houvesse outro modo, que Arthan fosse apenas um captor ao qual pudesse aniquilar, ou um ser fraco que se dobraria à sua vontade. Nada disso, porém, ocorreria. E agora precisaria lidar com as consequências daquele acaso nada fortuito e completamente inesperado, pois sua filha não mais tinha condições de prosseguir em tal missão.

O som de passos ecoou no corredor de pedra, e Arthan surgiu das sombras, sua energia agora menos agressiva e mais receptiva:

— Creio que nosso primeiro contato tenha sido inadequado. Afinal, majestade, ainda é minha sogra e, principalmente, uma rainha. Ordenei a Dracea que lhe preparasse aposentos confortáveis; falarei com minha esposa, e durante o jantar conversaremos de modo apropriado. – ele estalou os dedos, e as algemas douradas se soltaram dos pulsos de Nerwen – perdoe-me pelo que fiz, meu amor. Foi um ato desesperado; não quis lhe causar dor ou sofrimento...

— Posso pensar nisso – Nerwen não o fitou diretamente, ainda magoada com o esposo – mas não pense que vai dormir ao meu lado, hoje. – ela passou as mãos pelos cabelos, como sempre fazia quando estava nervosa – eu mesma levo minha mãe a seus aposentos.

Enquanto seguiam pelos corredores iluminados por tochas bruxuleantes multicoloridas, adornados por esculturas e altos-relevos ora belos, ora assustadores, a rainha meditava sobre o que vira e sentira na sala do trono: as correntes que prendiam sua filha... Conhecia o tipo de encanto usado, e era algo complexo até mesmo para ela. O fato de Arthan ter aberto os grilhões com apenas um estalar de dedos... Fora ele quem tecera as correntes, e isso dava a ela boa noção do poder de seu genro. Um poder grande o bastante para fazer frente ao seu... Porém, enquanto ela era luz, ele pertencia à escuridão. Mas até que ponto? Estaria diante de um futuro Senhor do Escuro? Ou, como Námo-Mandos, tratar-se-ia de um Senhor da Morte que compreenderia o equilíbrio e faria seu melhor para mantê-lo? Por Ilúvatar, não sabia, mas iria até seu limite, e além, para garantir que a segunda alternativa se confirmasse.


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Notas finais do capítulo

Bom, é isso. Merecemos Reviews? O que têm a dizer?
Beijos enormes, amores, e até logo!!!



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