Todas as Flores escrita por Mahucp


Capítulo 3
Capítulo 2 - Família


Notas iniciais do capítulo

Yey! E aqui estamos no nosso segundo capítulo, em que conhecemos a família da Tsuke, que é puro amorzinho.



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Tsuke estava com tanta fome, que sequer se importava de ter ficado sem banho. Na verdade, aquela era uma atitude bem inteligente. Os banhos públicos costumavam ficar lotados ao cair da noite, não seria sensato aparecer por lá depois de pegar um filhote de garuda para si. Além do mais, nunca que passaria pela cabeça daquela samurai arrogante, que alguém deixaria de tomar banho para fugir de um crime.

Usando o hashi, Tsuke pegou o máximo de arroz que conseguia e levou à boca. Embora fosse pouco, a comida estava deliciosa. Um punhado de arroz fervido, duas tiras de carne de porco grelhada, sementes de gergelim e molho de soja; para beber, chá verde.

A garuda estava em cima da mesa, posicionada entre Tsuke e o irmão mais novo, Tadaatsu. Em frente aos dois, estavam Someko e Naganari. No centro da mesa, havia uma lanterna redonda feita de bambu e emoldurada com papel, que protegia a chama do vento.   

A família se reunia em torno de uma mesa baixa, feita de madeira escura, com formato quadrangular. Estavam todos ajoelhados em cima de almofadas finas, de cor preta. O conjunto ocupava grande espaço na casa, que era muito pequena para trazer conforto a todos os moradores.

A casa era feita de madeira e tinha formato quadrado; possuindo um telhado inclinado. A entrada consistia em uma porta de correr, a qual possuía divisórias preenchidas com papel arroz. No alto da parede, estavam pequenas janelas, de formato losangular, dispostas em intervalos harmônicos, permitindo a circulação do ar. Na frente da porta, havia um degrau de pedra para se retirar os sapatos. Com exceção desse degrau, o piso era coberto com tatame, feito de palha clara.

Era uma casa com um único cômodo, contudo foi posto um biombo de bambu para dividir os ambientes para cozinhar, dormir e realizar as refeições.

Tadaatsu pegou um pouco de arroz com o hachi e entregou para a garuda, que comeu os grãos direto do pauzinho. Os olhos do menino se iluminaram de pura alegria. Ele estava alimentando a ave do imperador. Aquilo era tão legal! Se tivesse sorte, podia até ganhar um afago do imperador. Diziam que todas as crianças que recebiam carinho do imperador na cabeça eram abençoadas com grande sorte. Tadaatsu queria ter muita sorte, assim poderia se tornar um samurai famoso e derrotar todos os caras maus!

Tadaatsu tinha cerca de oito anos; era baixo e magro, mesmo para alguém de sua idade. Os traços infantis predominavam em seu rosto e combinavam com a voz fina do menino. O cabelo, preto e arrepiado, estava preso em um rabo de cavalo alto; a franja era toda espetada, com fios indo a todas as direções possíveis.

O garoto pegou mais arroz e entregou para a garuda.

— Tadaatsu, não faça isso — Someko chamou a atenção do irmão. — Desse jeito você pode acabar se machucando.

— Mas irmã! — O menino protestou, mesmo sem ter um argumento para rebater a crítica.

— Faça o que ela diz — falou Naganari. — Trocar saliva com um pássaro é uma ideia tola. Se quiser alimentá-lo, use as mãos.

Determinado, Tadaatsu cerrou os punhos e assentiu.

— Certo! — O garoto pegou um punhado de arroz e entregou para a garuda.

O pássaro devorou tudo, deu um salto e defecou na mesa. Tadaatsu soltou um pequeno grito e, usando a gola do kimono azul, limpou a sujeira da ave. Tsuke fez uma careta. Someko e Naganari não prestaram atenção na cena.

— Querido, não fale assim com ele — Someko repreendeu e pousou a mão em cima da do marido. — Devemos ser gentis com as crianças, certo?

Someko sorriu e inclinou a cabeça para o lado, o que fez Naganari corar. Ela estava com seis meses de gravidez, quase sete. O corpo, assim como o rosto, estava bastante inchado. Os olhos denunciavam cansaço, mas ainda continham um brilho gentil e acolhedor. Diferente os irmãos, Someko não usava franja, contudo mantinha os longos cabelos negros presos em um coque. Vestia um kimono verde escuro.

— Tanto faz — resmungou Naganari, voltando o olhar para tigela de comida.

Naganari tinha os cabelos ondulados, que escorriam pela nuca até a altura dos ombros. Era bem magro e alto. Mantinha um bigode fino, junto com alguns poucos fios de barba. Tinha uma expressão distante e fechada, como se estivesse bravo, porém sem estar disposto a dividir os sentimentos com alguém.

— Estava delicioso, irmã — disse Tsuke após comer a última porção de arroz. Pousou o hashi sobre a tigela vazia e curvou-se — Muito obrigada pela comida.

Naganari e Tadaatsu também agradeceram.

— Fico feliz que tenham gostado — agradeceu Someko e ergueu um indicador. — O segredo para uma boa comida sempre será um pouco de amor.

Ao ouvir a esposa, Naganari agarrou o tecido do kimono preto e ficou ainda mais vermelho.

— Por isso, que a comida da maninha Tsuke é ruim — provocou Tadaatsu. O menino riu e acabou recebendo um tapa de Tsuke, que lhe acertou a orelha. — Aí — reclamou o garoto, enquanto esfregava a orelha.

A garuda piou e pulou, tentando voar, contudo ficou apenas alguns centímetros no ar e logo pousou.

— Bem feito — disse Tsuke, cruzando os braços. — E isso pode até ser verdade, mas é muito melhor não ter amor do que ter que cozinhar.

— É mesmo uma rata — comentou Naganari, balançando a cabeça em negação.

— Ratos são legais, tá bem?! — retrucou Tsuke, lançando um olhar ameaçador para o cunhado. Tsuke não entendia como alguém podia desgostar dos ratos. Os bichinhos não faziam nada de mais. Simplesmente entravam na casa das pessoas, comiam toda a comida e iam embora, deixando todos doentes. Aquilo não era nada perto do que cobras e tigres podiam fazer. — Seu porco.

— Uma família não deve brigar entre si — interveio Someko. Os outros três ficaram em silêncio e voltaram o olhar para o colo. A garuda olhou para os humanos e copiou o gesto. — Agora peçam desculpas — Um murmúrio coletivo de desculpas foi ouvido. Someko sorriu — Assim está bem melhor. Tsuke como foi a sua viagem?

— O de sempre, irmã — Tsuke respondeu. — Se bem que Yin Yué estava bem vazia. Eu não entendi direito, mas acho que o imperador de Sêng vai fazer um acordo bem importante com alguma nação do oeste.

De tanto ir para a nação vizinha, Tsuke aprendeu algumas palavras da língua de Sêng. Não era o suficiente para se considerar uma falante fluente, mas o bastante para poder se virar, caso tivesse problemas.

— Oh! Para afetar uma cidade na fronteira, deve ser importante mesmo — concordou Someko. — Sobre o que será esse acordo?

— É um acordo do mal! — afirmou Tadaatsu energético. — Eles querem fazer coisas ruins conosco.

— Deve ser por causa de dinheiro e terras — opinou Tsuke. — Todo mundo faz as coisas por causa de dinheiro e terras.

— Isso não importa — Naganari cortou a conversa e apontou para a garuda. — Isso que é importante.

Naganari não entendia como podiam dispersar tanto em uma conversa, quando tinham assuntos tão importantes para tratar. Era estranho. Deviam focar os pensamentos na garuda, dedicar-se completamente ao pássaro sagrado, não conversar como se fosse mais um jantar em família.

Olhou para Someko, lembrando-se de quando a conhecera. Depois de crescer órfão e enfrentar uma guerra perdida, Naganari acreditara que estava perdido para a humanidade, que jamais saberia lidar com as pessoas. Foi o que dissera para Someko, mas ela não se intimidara. Ao contrário, sorrira e disse que não havia problema em não saber lidar com as pessoas, pois ninguém sabia. Contudo todos podiam aprender, bastava ser gentil e educado.

Aquela fora a primeira vez que Naganari sentiu o coração acelerar. Antes, ele não sabia como lidar com as pessoas e não sabia como viver. Passava os dias sem rumo, sem futuro, vivia apenas esperando o dia em que morte viria buscá-lo. Com Someko, tudo mudou. Ao lado dela, Naganari deixava-se ser guiado por todos os planos que Someko tinha. Simplesmente, deixava que ela escolhesse um futuro para os dois. Aquilo era bom. Era bom poder amar e ser amado.

— Eu pretendo pegar a estrada amanhã, assim que o sol nascer — informou Tsuke, pegando a garuda com as mãos e levando-a ao cesto de palha.

— Não é melhor esperar o senhor Uchisane voltar? — Someko perguntou, com as sobrancelhas franzidas em preocupação.

— Ele vai demorar pra voltar — disse Tsuke. Passou o dedo pelo resto de molho que havia na tigela e lambeu. Ainda estava com fome, mas aquilo iria acabar. Nunca mais iria dormir com fome. Na verdade, podia ser o contrário; o estômago doeria por estar cheio, não vazio. Problemas de gente rica deviam ser tão legais! — O senhor Uchisane pode nos ajudar de vez em quando, mas não a esse ponto.

— Eu acho que você tem razão — concordou Someko, baixando a cabeça. — É só que... eu não gosto de pensar em você viajando sozinha. As estradas para a capital são muito perigosas. Não é a mesma coisa do que o caminho para Yin Yué.

— Eu vou com a maninha, irmã! — exclamou Tadaatsu. Ficou em pé e ergueu o punho fechado. — Eu vou protegê-la dos caras maus.

Tsuke revirou os olhos, segurou a canela direita do irmão e a puxou, derrubando o garoto no tatame.

— Aí! Por que você fez isso?! — questionou Tadaatsu, sentando-se.

— Eu não vou colocar a vida de uma criança em perigo — explicou Tsuke. — Muito menos a do meu irmão!

— Mas maninha... — Os olhos do menino brilharam como os de um gatinho abandonado.

— Para com isso! — reclamou Tsuke e acertou um peteleco na testa do irmão.

— Au! — Tadaatsu levou as mãos à testa e começou a esfregar o local. — Irmã, a maninha me bateu!

— Você mereceu — justificou-se Tsuke, mostrando a língua ao irmão, que também passou a fazer caretas.

Someko cobriu os lábios com a mão e riu baixinho. Era incrível; mesmo depois de tanto tempo, algumas coisas nunca mudavam. Quando os pais dos três morreram, Tadaatsu era só um bebezinho e ela e Tsuke, crianças. Sendo a mais velha, Someko assumiu grande parte da responsabilidade. Tinha que se sacrificar e dar tudo para os irmãos. Tinha que ser a mãe que eles perderam e educá-los para crescerem fortes, felizes e gentis. Someko sentia-se feliz toda vez em que via os irmãos juntos. Para ela, Tsuke e Tadaatsu sempre seriam crianças, sempre seriam o seu tesouro. Pousou a mão sobre a barriga inchada e sorriu, logo aquela família ficaria maior e ainda mais feliz.

— Tsuke, não maltrate nosso irmão — disse Someko. — E Tadaatsu, você deve deixar as situações perigosas para os adultos. Crianças devem ficar em segurança.

Envergonhados, Tsuke e Tadaatsu curvaram a cabeça e pediram desculpas. Naganari revirou os olhos e Someko sorriu.

— Mas eu ainda não gosto de você viajando sozinha, Tsuke — falou Someko. — Querido, você pode acompanhá-la?

— Se é o que você quer, eu faço — respondeu Naganari, dando de ombros. — Vou levar a katana do senhor meu pai. Pode acabar sendo útil.

— Cuide bem da maninha, senhor Naganari! — pediu Tadaatsu e bateu com as mãos abertas na mesa. — Por favor! — O garoto curvou a cabeça.

— Eu já disse que vou acompanhá-la — disse Naganari. — Não precisa pedir mais de uma vez.

— Desde que você não mate ninguém — Tsuke se pronunciou. — Pode levar a katana.

— Que seja — retrucou Naganari.

Em verdade, Tsuke preferia que não houvesse espada, contudo sabia que seria a minoria ali. Era ridículo. Katanas eram o símbolo da morte, não importava se quem a portava usava para proteger ou para matar, as armas continuavam representando a destruição da vida. Espadas só serviam para ameaçar, causar medo e matar, nada além. Ao menos, aquela seria a última vez em que Naganari portaria uma katana. Depois de ficarem ricos, usariam dinheiro para causar medo. O que era perfeito, afinal dinheiro causa medo, mas não mata ninguém.

— Bom, eu vou preparar um pouco de onigiri para vocês levarem — anunciou Someko.

— Tem certeza? — Naganari perguntou e ergueu uma sobrancelha em dúvida.

— Irmã, haverá comida para vocês? — Tsuke perguntou. — Eu acho que a viagem vai levar uns seis dias. Nós sempre podemos roubar alguma coisa, ou arranjar comida na floresta.

— Temos que nos manter longe da floresta; e você sabe disso. Mesmo se usarmos máscaras, a floresta continuará perigosa — Naganari falou, antes que Someko tivesse a chance de abrir a boca. — Podemos ser atacados por um gashadokuro ou qualquer outro monstro.

— Obrigada pelo apoio — resmungou Tsuke.

— Não se preocupe. Nós vamos ter comida sim — disse Someko sorrindo. — Só me deixem ajudá-los um pouquinho. Considerem o onigiri como um amuleto da sorte, e quando forem comer lembrem-se, eu e Tadaatsu estamos torcendo por vocês.

Naganari corou e não conseguiu pensar em uma única resposta racional para dar. Era como se o cérebro dele estivesse completamente desligado.

— Bem, eu não vou ser trouxa de negar comida — comentou Tsuke e curvou a cabeça. — Obrigada pelo apoio, irmã.

— Eu também vou fazer onigiri! — Tadaatsu se empolgou. — Quero que a garuda coma a minha comida.

— Sim, vamos fazer a comida juntos — disse Someko.

                                    ~~=*=~~

Tsuke acordou com os primeiros raios de sol, que entraram na casa. Ela sentou e empurrou o cobertor do futon para o lado. Someko e Tadaatsu já haviam levantado e dobrado os futons, deixando mais espaço para circular. Naganari dormia. Tsuke bocejou e esticou os braços, espreguiçando-se. Olhou para o lado e viu que a garuda descansava na cesta de palha. Próxima ao pássaro havia uma pequena estátua de madeira de um dragão, de corpo comprido e delgado.

A camponesa pegou a estátua e sacudiu a cesta de palha, acordando a garuda. A ave piou e ergueu a cabeça. Tsuke mostrou a estátua à garuda, mas o filhote não teve reação ao vê-la.

— Hm... você não reconhece ela — Tsuke disse consigo mesma. — Essa aqui é a Shijié, deusa do céu e do vento. Ela é a irmã da Zhihui, deusa do sol e criadora das plantas; e do Shenxun, deus da lua e criador dos animais. E é aí que você entra. As garudas são crias de Zhihui e Shijié, não de Shenxun. Claro que o Shenxun não gostou da ideia, e aí ele criou vários monstros para serem inimigos naturais das garudas e do povo de Zhihui. — Tsuke explicou, contudo o filhote continuou sem ter reação. A ladra aproximou a estátua do pássaro. — Então, essa é meio que a sua mãe. Não a sua mãe, que pôs o ovo, mas a sua mãe sagrada... — A garuda piou, mas Tsuke tinha a impressão de que não era relacionado à sua explicação. — Bem, acho que o senhor imperador vai lhe explicar melhor isso. Você irá ficar com o senhor imperador, depois que chegarmos à capital. E eu vou fazer coisas de gente rica, tipo aprender a ler e escrever.

Tsuke deixou a estátua de lado e levantou. Dobrou o futon, colocando-o com os dos irmãos e atravessou o biombo. Logo Naganari também levantou e os quatro se sentaram para a refeição matinal. Comeram um pouco de arroz, sardinhas grelhadas e salada de pepino com molho agridoce; para beber, água.

A aldeia de Inaba acordava aos poucos. Pessoas saíam de suas casas prontas para o dia que estava para começar. O sol nascia no leste e derramava raios quentes sobre a vila, colorindo-a de vários tons de vermelho, laranja e amarelo. A cadeia de montanhas, a oeste, ainda mantinha-se silenciosa e sombria.

Tsuke estreitou os olhos. Era horrível ter que viajar com o sol na cara. Pior é que ela não tinha um chapéu ou uma sombrinha para tornar a caminhada mais confortável. Olhou para Naganari, que usava um chapéu de palha em formato de cone. A katana estava presa na faixa da cintura. Fora isso, Naganari não carregava nada. Tsuke olhou para cesta de palha, onde estavam a garuda, os mantimentos e três bombas de fumaça. Não era justo. Só porque Naganari tinha uma katana, ele não podia carregar nada; tinha que estar com as mãos sempre livres. Mais um motivo para odiar espadas. E samurais.

Tsuke virou e encarou os irmãos, que estavam em pé na entrada da casa.

— Nos vemos em breve — Tsuke disse e acenou.

— Façam uma boa viajem — desejou Someko, também acenou. — E se cuidem.

Naganari assentiu e se virou, começando a caminhar na direção da estrada. Tsuke lançou um último olhar para os irmãos e logo seguiu o cunhado. Someko e Tadaatsu ficaram observando os dois viajantes até que sumissem de vista.    

 — Tadaatsu, você pode me ajudar a entrar? — Someko pediu com gentileza.

O garoto piscou assustado, como se tivesse saído de um transe.

— Sim! — respondeu o menino, cheio de energia. Tadaatsu correu e abriu a porta, deslizando-a completamente. Someko sorriu e entrou na casa, deixando as sandálias no bloco de pedra. Tadaatsu a seguiu, também ficando sem calçado. O garoto correu e ajudou a irmã a se sentar na almofada. Tadaatsu se ajoelhou ao lado de Someko.

— Tadaatsu, agora você terá de me ajudar bastante — Someko disse. — Será difícil, mas é por pouco tempo.

— Irmã, eu vou poder viajar pra Sêng? — perguntou Tadaatsu. O menino baixou a cabeça e ficou esfregando um indicador contra o outro.

— Não, você é muito pequeno para viajar sozinho — Someko respondeu.

— Hum... eu odeio ser pequeno — Tadaatsu resmungou, fazendo bico.

— Um dia você vai crescer, mas até lá eu e Tsuke vamos cuidar de você — disse Someko. — Só não tire de nós esse prazer antes do tempo — Someko pegou a mão do irmão e a colocou sobre a barriga.

Os olhos do menino brilharam. Ele abriu a boca, impressionado.

— Tá se mexendo!

— Sim, sim — Someko sorriu, diante da felicidade do irmão. Ela própria se enchia de alegria, ao sentir a criança que havia dentro de si se mexer. Um dia todos eles ficariam juntos e felizes. Seriam uma família unida, onde todos estariam sempre rindo. — Este pequeno será ainda menor do que você. Terá de me ajudar a cuidar bem dele, Tadaatsu.    

  — Eu vou fazer isso, irmã — Tadaatsu se levantou e cerrou os punhos. — Eu vou ser o melhor irmão do mundo!

Someko escondeu a boca com a mão e riu

— Irmão não, tio.

— Tio?! — O garoto arregalou os olhos, confuso.

— Sim, tio — confirmou Someko. — Os filhos de suas irmãs não podem ser seus irmãos, porque os pais são diferentes. As crianças que virão só te chamaram de tio. Entendeu?

— Eu acho que sim... — Tadaatsu respondeu. Na verdade, ele não havia entendido, mas se a irmã estava dizendo que seria tio, logo ele seria tio. A irmã Someko era a pessoa mais inteligente que Tadaatsu conhecia, ela não iria mentir. Nunca. — Então, eu vou ser o melhor tio do mundo, irmã!

Someko sorriu. Ela não tinha dúvidas da afirmação de Tadaatsu.

                                               ~~=*=~~

A estrada de terra batida era suficientemente larga para que carroças pudessem circular em ambos os sentidos. Do lado direito, havia uma floresta densa, com árvores de copas grandes e fechadas; enquanto do esquerdo via-se um imenso bambuzal, com plantas tão altas que chegavam a inclinar em direção à estrada.

Tsuke preferia caminhar em lugares estreitos e fechados, como a ravina que levava à Sêng. Em espaços abertos, a chance de ser descoberta era maior. Não que ela estivesse fazendo algo de errado, mas... bem, os samurais não iriam entendê-la. Para os guerreiros, a garuda deveria ser entregue ao senhor de Inaba e depois ser entregue ao imperador. Aquilo não tinha a menor lógica. Tsuke vira a garuda primeiro, tocara na garuda primeiro e alimentara a garuda primeiro, logo ela deveria entregar a ave ao imperador. Simples assim, nada dessas complicações irritantes cheias de honra e lealdade.

A camponesa bocejou. Ela e Naganari caminhavam fazia tempo, talvez umas quatro horas. Tsuke estava ficando com fome e os pés começavam a doer. Durante o percurso, os dois haviam cruzado três carroças e alguns poucos caminhantes. A estrada estava vazia e, conforme o passar do dia, o movimento tenderia a diminuir. Inaba era uma província pobre, pequena e na fronteira com Sêng. Com tais condições, havia pouco interesse em viajar para lá. Por outro lado, essas mesmas condições trouxeram relativa paz à longínqua província.

Enquanto os senhores da guerra digladiavam entre si, sonhando com a conquista e a reunificação de Takei Yama, Inaba era mantida à parte, como se ninguém tivesse interesse em guerrear contra o pequeno clã. Tsuke não entendia nada de guerra, mas aquilo fazia sentido. Pessoas em busca de glória não procuravam lutar contra um adversário fraco. Além disso, das inúmeras províncias de Takei Yama, Okuda era a única que fazia fronteira com Inaba. Se alguém quisesse invadir Inaba, antes teria que passar por Okuda. Se fosse para chutar, Tsuke diria que o clã Okuda buscaria conquistar as terras a leste, para depois de preocupar com Inaba, que jamais representou perigo.

— Vamos parar um pouco — Tsuke pediu. — Estou ficando cansada.

— Está bem — Naganari concordou.

Os dois se sentaram na borda da estrada, próximos ao bambuzal. Tsuke logo buscou por um onigiri na cesta. A garuda estava ali, mas ainda dormia. Tinha sorte de o pássaro ser recém-nascido e só dormir e comer. Tsuke não fazia ideia de quando a garuda cresceria ou aprenderia a voar, mas torcia para que acontecesse depois de entregá-la ao imperador. Deu uma mordida no bolinho de arroz. Estava delicioso. Someko e Tadaatsu haviam recheado o bolinho com salmão cru e um pouquinho de wasabi.

— Quer um? — Tsuke ofereceu ao cunhado, mas ele negou. — Água?

— Não, obrigado.

Tsuke deu de ombros e não insistiu. Naganari sempre fora calado e mal-humorado. Às vezes, Tsuke chegava a se perguntar por que Someko estava com ele. Os dois não tinham nada em comum. Chegou a conversar com Tadaatsu sobre isso, o irmãozinho chegou à conclusão que Naganari era do mal, porém estava virando do bem, por causa de Someko. Fazia sentido. Não em relação ao mal e ao bem, mas em outro aspecto, algo mais sentimental. Tsuke não tinha coragem de perguntar para a Someko sobre isso, parecia invasivo e ela devia respeitar intimidade dos mais velhos.  No fim, aquilo não importava. O que valia era que Someko estava feliz junto de Naganari.

Tsuke comeu todo o onigiri e bebeu um pouco de água, que estava guardada em uma cabaça branca. A garuda moveu a cabeça e abriu os olhos. O filhote soltou um pio alto, que chamou a atenção de Naganari.

— Por que você acordou ela? — Naganari perguntou.

— Eu não acordei ela! — justificou-se Tsuke, irritada com a acusação. Parecia que uma pedra teria mais tato do que Naganari. — Ela deve estar com fome.

Tsuke arrancou um pedaço de outro bolinho e ofereceu os grãos de arroz à garuda, que aceitou de bom grado.

— Temos que ser discretos — disse Naganari. — Não podemos deixar ela ficar cantando.

— Eu sei — Tsuke retrucou e escondeu a garuda, cobrindo a cesta com um pano.  Mesmo assim, a garuda recomeçou a piar. Não chegava a ser um canto, provavelmente o filhote ainda não devia saber cantar. — Mas o que eu posso fazer? Não vou machucar a ave do senhor imperador.

— Ninguém vai — garantiu Naganari. — Só vamos esperar que ela se acalme. Temos tempo. Provavelmente chegaremos à fronteira com Okuda ao cair da noite.

— Ouvi dizer que tem um templo na região — comentou Tsuke. — Podemos pedir abrigo por uma noite. Os monges não vão recusar.

— Isso só chamaria atenção desnecessária — falou Naganari. — Vamos dormir na estrada e revessar os turnos de vigia.

— Ai, que legal — Tsuke resmungou.

— O que disse?

— Nada! — respondeu Tsuke, levantando-se. — Vamos indo. Não sei se ela vai parar de piar, mas se algo der errado, podemos falar que é um canário.

Naganari não respondeu, levantou-se e começou a andar. Tsuke suspirou, revirando os olhos e seguiu o cunhado. Os dois continuaram a caminhada em silêncio. E em silêncio ficaram por muito tempo. Caminharam e caminharam e sequer perceberam quando a garuda parou de piar. Naganari comeu um onigiri e bebeu um pouco de água, mas continuou andando junto de Tsuke. O sol havia se movido para o oeste, tornando a viagem mais agradável.

No fim do dia chegaram a um torii. A construção vermelha tinha dois pilares, os quais sustentavam duas traves compridas e largas; a trava superior era curva, tendo as extremidades apontadas para o céu. O portão, tão largo quanto a estrada, fora posto ali para indicar a fronteira entre Inaba e Okuda, todavia também era usado para espantar espíritos famintos e monstros, e agradar espíritos benevolentes e pequenos deuses.

Conforme o previsto, a estrada estava deserta, no entanto para desagrado de Tsuke e Naganari, havia um samurai vigiando a fronteira. Pelo kimono vermelho que usava, devia servir ao senhor de Inaba. O guerreiro era calvo, com o cabelo lateral de um tom impecavelmente negro. Tinha uma expressão severa, com rugas profundas sobre o rosto. Era alto, de corpo rígido, parecendo uma estátua de tão quieto que estava. Carregava uma katana e uma wakizashi.

Tsuke e Naganari trocaram um olhar e, em um acordo silêncio, decidiram continuar, ignorando a presença do guerreiro. Os dois estavam passando pelo portal, quando a garuda soltou um pio alto. Tsuke e Naganari pararam e olharam para o samurai, que não demonstrou qualquer reação.

— Não faz parte de minha conduta ser grosseiro — disse o guerreiro, enquanto se aproximava da dupla. Tinha uma voz forte, porém calma. — No entanto, dada à situação atual, terei de revistá-los.

— Situação atual? Que situação atual? — Tsuke perguntou, fingindo-se de ignorante. Colocou a mão dentro da cesta, procurando uma bomba de fumaça. Sentiu a garuda passar pelos dedos e, em seguida, o bico afundar na carne da mão. Tsuke gritou de dor e deixou a cesta cair no chão. O conteúdo de espalhou pelo chão, revelando a garuda, três bombas de fumaça, restos de comida e a cabaça com água.  A garuda tentou voar, bateu as asas, levitou por alguns centímetros e voltou ao solo. — É um canário! — disse Tsuke e, rapidamente, começou a recolher as coisas do chão.

— A garuda sagrada do senhor imperador — afirmou o samurai.

— É um canário! — Tsuke repetiu, desesperada.

As mãos tremiam tanto, que ela não conseguia recolher os objetos do chão. A camponesa pegava as coisas, mas elas escorriam de seus dedos, como se tivessem vida própria. A garuda piava sem parar e andava em círculos, em uma tentativa de alçar voo.

Tsuke não sabia o que deveria fazer. Aquele samurai viu as bombas de fumaça, ele não seria pego em um ataque surpresa. Além disso, o guerreiro parecia ser bem mais experiente do que a samurai do dia anterior. As únicas esperanças que tinham eram que o samurai acreditasse que a garuda era um canário; ou contar com a sorte e retornar à Inaba, torcendo para que o líder do clã não os execute.

Tsuke mordeu os lábios e se joelhou, curvando-se.

— Senhor samurai, nós percebemos nosso erro e...

— Não tem outro jeito — Naganari interrompeu e sacou a espada. Ele sabia que não valia a pena implorar por misericórdia. O senhor de Inaba era conhecido por ser um líder fraco. Se ele poupasse aqueles que lhe roubaram a chance de cair nas graças do imperador, estaria reforçando esse rótulo. O senhor de Inaba precisava de força e executar os “ladrões” da garuda lhe daria um pouco dessa força. — Eu vou distraí-lo. Aproveite e fuja.

Naganari sabia que não tinha a menor chance contra um samurai, contudo havia prometido a Someko que cuidaria de Tsuke. Seria vergonhoso se quebrasse tal palavra. Não podia sujar o nome de seus ancestrais, tornando-se um covarde quebrador de promessa. Não podia sujar o nome de um filho que nem nasceu com covardia e vergonha. O filho de Someko merecia um pai honrado, alguém que cumpria com as promessas feitas.

Pelo filho e pela promessa que fizera, Naganari enfrentaria o samurai, mesmo que acabasse morrendo no confronto.

Tsuke estava boquiaberta. Não podia acreditar que Naganari queria mesmo enfrentar aquele samurai. Ele estava caminhando para a morte, enquanto tinha todas as chances de viver. Tinha que impedir aquele absurdo. O filho de Someko não cresceria sem pai. Eles iriam sair dessa confusão. Ela só precisava de uma distração. Tsuke pegou uma bomba de fumaça e se levantou, ergueu o braço, mas antes que ela conseguisse atirar a bomba no chão, Naganari a segurou pelo pulso.

— Não — Foi única palavra que Naganari disse.

— É venerável saber que não recuou diante de um combate — falou o samurai e sacou a katana. — Sou Yuudai, filho de Rikuto e Aimi. Jurei minha espada ao senhor de Inaba. Lutei pelo meu senhor na primeira e na segunda guerra contra Okuda, onde derrotei dezessete veneráveis guerreiros. Sou o guardião desta fronteira e já impedi quatro forasteiros de levarem o caos à Inaba.

— Tanto faz — resmungou Naganari.

Tsuke mordeu o lábio e recuou. Ela só queria que um raio caísse na cabeça dos dois, pois parecia ser o único jeito de acabar com aquele absurdo. Tsuke não conseguia entender... qual era o problema em querer viver? Qual era o problema em querer ficar junto da família e dos amigos? Não havia nada de errado nesses desejos. Querer viver e ser feliz não tinha nada a ver com covardia ou desonra. Nenhum ancestral ficaria desapontado se alguém fugisse de uma batalha, porque queria viver. Tsuke tinha certeza disso. Porém os estúpidos samurais achavam que a honra valia mais do que a vida, e esse pensamento acabou afetando todo mundo, inclusive Naganari.

Sem ter escolha, Tsuke se abaixou e recolheu as coisas. Colocou tudo na cesta, a comida suja, a cabaça de água, as bombas de fumaça e a garuda, que estava com os pelos arrepiados, provavelmente sentindo medo. De certa forma, o medo ajudou, pois a ave entrou na cesta de bom grado.

Naganari e Yuudai se encararam e avançaram para a luta. Naganari fez o primeiro movimento, ergueu a espada e desferiu um corte, vindo de cima para baixo, contra o rosto do samurai. Sem dificuldade, Yuudai desviou do ataque ao pular para o lado. O movimento fez a katana de Naganari cortar o ar com um silvo violento.

Aproveitando-se da situação e da velocidade superior, Yuudai desferiu uma estocada contra a cintura do adversário. Naganari viu o ataque chegar e girou o corpo, porém não conseguiu evitar o golpe. A espada atravessou o corpo de Naganari na região do estômago; com a ponta da arma indo aparecer no meio das costas dele. Naganari arregalou os olhos e cuspiu muito sangue em cima do samurai.

Em uma tentativa de revidar, Naganari ergueu a mão desarmada e tentou agarrar a garganta do guerreiro, todavia ele estava muito fraco. Os dedos, ensopados de sangue, sequer fizeram cócegas no pescoço de Yuudai.

O samurai suspirou, empurrou o corpo do adversário e recolheu a katana. O corpo sem vida de Naganari caiu no meio do torii, formando uma grande poça de sangue. Yuudai desferiu um corte no ar, fazendo o sangue de Naganari sair voando da lâmina.

Foi tudo muito rápido. Tsuke não teve tempo para fugir, sequer saiu do lugar onde estava. Ela assistiu toda a luta, viu todo aquele sangue e violência. Era uma cena horrenda, nojenta. Tsuke se sentia tonta, olhou para chão e a sensação de enjoo cresceu. Parecia que tudo estava girando e girando.

Tsuke deu dois, três, passos para trás e caiu de joelhos. O chão estava todo coberto de sangue, criando uma mistura lamacenta e quebradiça. Tsuke tinha a estranha sensação de que se afogaria no meio daquela lama vermelha. A sensação não durou muito e logo se transformou em uma onda de vômito. A camponesa sentiu que botara as últimas refeições para fora. Tsuke piscou perdida, sem entender exatamente o que estava acontecendo. Tudo estava distante e escuro, a única coisa que percebia era o sangue. Apenas o sangue. Muito, muito sangue.

O samurai pegou a katana de Naganari e a atirou para Tsuke. O gesto fez com que a garota recuperasse um pouco de sua percepção de mundo. Ela olhou para o samurai e depois para a katana e sentiu raiva.

— Eu não atacaria alguém desarmado — explicou Yuudai. — Darei a ti oportunidade de defender os teus princípios e lutar por teu companheiro.

Tsuke tremeu; a raiva aumentava a cada instante. Aquele comportamento era um absurdo. Nunca iria aceitar algo assim.  

— Eu... — Tsuke esticou o braço e pegou a katana. Com a outra mão, recolheu a cesta de palha. — Não... — Levantou-se e ergueu a espada. — Mato!

Tsuke atirou a katana em direção ao bambuzal e correu na direção oposta, adentrando na floresta.

Yuudai piscou e decidiu não perseguir a garota. Seria melhor se os ninjas fizessem esse trabalho. Afinal, não gostava de enfrentar adversários vulneráveis e que se recusavam a lutar. Não havia problema em esperar. A garota não iria longe. A garuda ficaria segura.

Não havia nada a ser feito, só aguardar. Esperar algum viajante para recolher o corpo do jovem camponês e esperar pelo falcão mensageiro lhe trazer notícias de Inaba. Yuudai também teria novidades para relatar. Com a informação que possuía, seria fácil para os ninjas localizarem a garota e recuperarem a garuda para o senhor de Inaba. No fim, tudo acabaria bem.  


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo será focado na Hana e nas pessoas que façam parte do convívio dela. o/
E vocês finalmente conhecerão o senhor de Inaba. Veremos se ele é mesmo um líder fraco, ou se são só boatos maldosos.



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