Todas as Flores escrita por Mahucp


Capítulo 2
Capítulo 1 - O nascimento da garuda


Notas iniciais do capítulo

Aqui estamos no primeiro capítulo oficial da história! o/



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A província de Inaba se localizava no extremo oeste do império de Takei Yama, fazendo fronteira com a terra de Sêng. O Criador, porém, fora sábio ao colocar uma cadeia de montanhas entre as duas nações filhas de Zhihui. A região montanhosa evitou que grandes conflitos armados se estabelecessem na região, contudo a suspeita reinava entre os povos. Ameaças veladas e desconfiança mútua faziam parte da vida de todos que nasciam nos dois impérios.

Apesar disso, Tsuke ia com frequência à terra vizinha. Nos últimos tempos, essa frequência aumentou à beira do insuportável. Antes dividia a tarefa com a irmã mais velha, mas depois que Someko se casara Tsuke passou a fazer a maior parte das viagens. E agora que a irmã estava grávida, fazia todas.

No fim, ela não podia culpar ninguém. Afinal, ir até Sêng roubar itens do mercado de lá e revendê-los no mercado de Inaba era um bom negócio. Tsuke suspirou e trocou a cesta de palha, que carregava no braço direito, para o braço esquerdo. Na verdade, não era um bom negócio. Simplesmente, era a única opção que tinha para sobreviver, tendo um mínimo de dignidade. Viajar para Sêng significava ter sustento para viver longe da fome extrema, mas também significava trabalhar duro para ganhar o suficiente apenas para sustentar a família, nada além.

Definitivamente, não era um bom negócio. Ainda assim, não podia jogar a culpa nos outros.

Naganari, marido de Someko, trabalhava na floresta, que cobria a cadeia de montanha. Ele e os outros homens de Inaba trabalhavam extraindo uma madeira especial, que só crescia na região, capaz de proteger os humanos da ameaça dos fantasmas famintos. Entretanto o rendimento do trabalho era uma miséria, tão pequeno que nem mesmo uma criança conseguiria sobreviver.

O irmão mais novo, Tadaatsu, ainda não atingira a idade adulta, por isso Tsuke e Someko não deixavam que ele fizesse a viagem para Sêng ou trabalhasse com Naganari.

Por que ela não nascera rica e poderosa? Se fosse rica, a vida seria mais fácil, mais divertida. Tsuke até conseguia imaginar como seria a vida na riqueza. Ela seria carregada em uma liteira e atiraria moedas de cobre para a população na rua; inclusive usaria um pouco de força no ato, pois seria engraçado. Colocar uma ou outra moeda falsa no meio também poderia ser engraçado.

Tsuke sentiu a grama alta bater na altura dos joelhos. Sorriu, estava chegando. Mais alguns metros e estaria em casa. Olhou para cima, vendo dois paredões rochosos crescerem até atingirem a altura dos céus. A ravina era um caminho estreito e tortuoso, formado em meio a uma montanha. Quem caminhava ali sempre tinha a impressão de que as paredes iriam se fechar a qualquer momento, esmagando quem estivesse de passagem.

A camponesa passara tantas vezes por aquele local, que já não sentia nenhum desconforto. Ao contrário, gostava do lugar. Não tinha medo de ataques da natureza ou de emboscadas vindas dos ninjas a serviço do senhor de Inaba. A ladra sabia que os ninjas não a consideravam uma ameaça, por isso a deixavam em paz. Afinal, ela só estava roubando coisas. Não tinha nada de errado nisso.

Isso fazia com que Tsuke nutrisse certa simpatia pelos guerreiros ninja. Eles podiam matar e andar armados por aí, mas tinham a decência de esconder isso. Ao contrário dos samurais que viviam ostentando suas malditas espadas e glorificando seus feitos, que se resumiam a matar gente.

Como alguém podia se orgulhar de matar gente? E se orgulhar de carregar armas mortais? Só mesmo esses estúpidos samurais. Ninjas eram bem melhores.

Tsuke fez uma careta e sentiu o estômago roncar. Aquela viagem sempre dava fome. Olhou para a cesta e pousou os dedos sobre o pano branco, que cobria o conteúdo.

— Não se preocupe — Tsuke disse para a cesta, enquanto acariciava o pano. — Eu não vou vender tudo. Vou deixar um pouquinho pra mim. E logo estaremos reunidas em uma bela refeição.

Tsuke podia sentir a boca encher-se de saliva ao imaginar a cena. Arroz, carne de porco grelhada, cogumelos, sementes de gergelim e um pouco de molho agridoce. Seria um jantar delicioso.

Como estava na ravina, Tsuke aproveitou a oportunidade e se abaixou para colher algumas flores. Naquela região cresciam as flores mais bonitas que a ladra já vira. Eram das mais variadas cores e vinham com um grande conjunto de pétalas, que se juntavam formando uma esfera perfeita. Tsuke recolheu três: uma laranja, uma lilás e uma azul. A flor azul tinha o mesmo tom do kimono da garota, contudo a vestimenta – graças à viagem – ganhou algumas cores extras, como o marrom e o cinza. Tsuke sabia que precisava lavar a roupa, assim como precisava de um banho, mas antes precisava comer e antes disso, chegar em casa.

Graças a Zhihui estava chegando. Naquela região, a grama era mais alta que Tsuke, que não tinha muito em altura. Ela escorregou a cesta para a dobra do cotovelo e atravessou o matagal, saindo da ravina.

Tsuke olhou para os lados e não viu ninguém. Aproveitou a chance e remexeu a grama alta, fazendo-a ocultar a passagem para a ravina. Por mais que os ninjas deixassem-na passar, aquele ainda era um caminho secreto e pouca gente sabia da existência dele. A camponesa não tinha interesse de que ele fosse descoberto. Até porque se isso acontecesse, sua fonte de renda iria acabar.

A entrada para a ravina ficava a poucos metros do castelo do senhor de Inaba, localizado ao pé de uma montanha. A construção era um complexo de quatro casas, duas com três andares, uma com quatro e a última com um. Todas as casas tinham o formato octogonal, as paredes vermelhas e os telhados brancos e pontiagudos. O castelo era cercado por três muros e mantinha-se distante da vila. Em meio à montanha, havia um castelo-fortaleza, mas até onde Tsuke sabia ele estava desabitado. A garota ignorou a construção e passou a caminhar para a vila de Inaba.

A aldeia crescera em torno de um grande lago, que a banhava. As casas de madeira foram construídas formando um semicírculo em torno do lago e mantinham-se sempre a uma boa distância do grande corpo da água. Da parte sudeste do lago, saía um braço de rio que seguia o curso para fora da aldeia. Um segundo braço de rio vinha do noroeste, saindo dos muros do castelo e desaguando no lago. O rio do sudeste dividia a aldeia em dois setores, um grande e um pequeno.  

Como era mais prático atravessar o lago do que contorná-lo, foi construída uma grande ponte avermelhada, a qual tinha duas curvas voltadas para cima, como se fossem dois cascos de tartaruga unidos. Tsuke dirigiu-se para lá, já passando pelas primeiras casas da vila. O sol estava se pondo e havia pouca gente fora de casa. Os poucos que caminhavam ali estavam voltando para as residências. 

Uma criança parou de correr e começou a conversar com um samurai. Tsuke estreitou os olhos e fez uma careta. Por que crianças tinham que gostar tanto de samurais? Eles eram guerreiros que matavam e se orgulhavam disso. Não havia motivos para gostar deles. Na verdade, só havia motivos para odiá-los. Especialmente no dia em que vinham recolher os impostos.

A camponesa deixou a cena de lado e avançou para ponte. Por azar, havia outra samurai ali. Ela estava bem no começo da primeira metade da ponte. A guerreira mantinha os olhos fechados enquanto tocava flauta. Era um som doce e suave; muito bonito, porém Tsuke não iria elogiar. Não tinha tempo nem vontade para isso.

A ladra passou pela samurai, atravessou a ponte e parou na outra extremidade, deixando a cesta no chão. Ela pegou a flor azulada do cesto e a jogou no lago. Tsuke levantou os braços acima da cabeça e juntou as mãos.

— Para Mahasagara — disse Tsuke, fazendo um movimento curvo com as mãos unidas. Ela baixou os braços, levando-os na altura do peito e repetiu o movimento e a fala, curvando o corpo também. Por fim, Tsuke se ajoelhou e separou as mãos, apoiando-as no chão. Curvou todo o corpo, tocou a testa no chão e sussurrou a oferenda para a deusa das águas, Mahasagara. — Para Mahasagara. Por favor, ofereça o presente aos meus pais. Eu não vou abandonar vocês. Eu não vou esquecer vocês.

Tsuke ergueu o corpo e tomou um pequeno susto. A samurai estava parada, bem ao lado. O sangue de Tsuke gelou. Não era possível que ela tenha sido descoberta. Tinha tomado o máximo de cuidado para ser discreta. Não tinha como ter sido descoberta. Os ninjas poderiam tê-la deixado passar em paz, mas isso não significava que os samurais deixariam. Mais um motivo para odiar tais guerreiros.

A samurai ficou parada e estendeu a mão para ajudar Tsuke a se levantar, mas a ladra recusou a oferta e ficou de pé sem ajuda. Fez uma careta. Não queria que a vida acabasse assim. Não podia morrer pobre e com fome.

Tsuke fitou a samurai por alguns segundos. A guerreira tinha os olhos castanhos, mas – à primeira vista – davam a impressão de serem vermelho sangue. Usava um kimono vermelho escuro com a gola branca. A faixa amarrada na cintura também era branca e prendia as duas espadas que carregava; a katana e a wakizashi. Tinha os cabelos negros presos em um elegante coque, deixando alguns fios rebeldes de fora; duas mechas escorriam suavemente pelas bochechas. Em uma das mãos, ela segurava a flauta que tocava.  

— A senhora samurai toca muito bem — elogiou Tsuke e sorriu. Ela não havia feito nada de errado e não iria se entregar tão facilmente. Ao menos não enquanto não houvesse provas contra ela.

— Eu sei.

O sorriso de Tsuke morreu e ela sentiu uma pequena vontade de cuspir na cara da samurai.

— Ah, sim sim! — disse Tsuke e curvou a cabeça em sinal de respeito, mesmo odiando ter que fazer isso. — Os senhores samurais são guerreiros veneráveis. Possuem muitos talentos.

— Não é questão de talento — corrigiu a samurai. — Adquirimos habilidades invejáveis só depois de muito treinamento.

Se antes Tsuke queria cuspir na cara da guerreira, agora queria puxar a samurai pelos cabelos e bater a testa dela contra o corrimão da ponte; bater até sair sangue.

— Essas flores... — comentou a guerreira, antes que Tsuke dissesse algo. — A senhorita poderia me vender uma?

— Sim! — Tsuke respondeu como se tivesse nascido para vender flores. Na verdade, ela poderia vender todas, mas não iria abusar da boa vontade da guerreira. — A senhora samurai tem alguma preferência?

Hana fitou as duas flores que a garota carregava. Uma laranja e outra lilás. Eram muito bonitas. Jamais havia visto espécies como aquelas. Talvez a produção de belas flores fizesse parte do trabalho daquela desconhecida. Por isso, ela andava tão suja. 

Hana observou a vendedora de flores por alguns instantes. A garota tinha cabelos pretos, que escorriam lisos até a cintura; a franja tinha um corte bagunçado com várias mechas de comprimento diferente, algumas chegando na altura dos olhos. Tinha olhos cinzentos, que possuíam o brilho dócil dos equinos. A guerreira julgava que tinham idades próximas. Talvez a garota fosse um pouco mais nova.

— Eu gosto da lilás — respondeu Hana e guardou a flauta, colocando-a na faixa da cintura. A samurai levou uma mão ao outro braço e enfiou-a na manga do kimono, onde havia um pequeno bolso costurado, que usava para guardar algumas moedas. — Aqui está, senhorita.

— Agradeço sua bondade, venerável guerreira. — Tsuke curvou o corpo, lentamente. — Faz minha felicidade ao apreciar minhas flores.

— Todos nós gostamos de flores — falou Hana. Levou a flor ao nariz, apreciando com calma o aroma doce e agradável. — Até mesmo os mortos.

Hana esticou o braço e deixou a flor escorregar pelos dedos, fazendo com que ela caísse na água em um suave balançar.

Tsuke deu as costas e começou a caminhar para sair da ponte. No fim, não foi tão ruim quanto ela pensou que seria. Estava morrendo de fome, mas conseguiu ganhar dinheiro fácil e enganar uma samurai. Eram dois pontos positivos para um negativo. Realmente, ela se deu muito bem.

Hana prostrou-se no chão da ponte e fechou os olhos.

— Para Mahasagara — sussurrou Hana. — Mahasagara, deusa moralmente perfeita, continue a dar refúgio para os mortos deste mundo. Mahasagara, deusa moralmente perfeita, continue a ser o exemplo para os vivos deste mundo. Por favor, ofe...

Hana abriu os olhos e ergueu o corpo, ouvindo um barulho estranho, como se alguém tivesse atirado um pedregulho na água. A samurai olhou para os lados. Não havia ninguém na ponte. Nem uma pessoa próxima à margem do lago.

Hana segurou o cabo da katana, mas não a puxou. Atravessou a ponte, passando pela garota das flores e correu pela beira do lago até chegar ao rio. Desceu o declive que havia na margem direita e pôs-se a procurar a origem do barulho. Não fora uma barulho comum. Não podia ser uma ave que mergulhou na água procurando um peixe; os instintos de Hana gritavam que era uma situação inacreditável. Era como se algo tivesse se libertado de uma prisão, que era representada pelo lago.

Tsuke percebeu a movimentação da samurai e ficou curiosa. Dificilmente um guerreiro samurai deixava seu posto. Só o faziam quando recebiam uma ordem, ou quando algo de extraordinário acontecia. O sol estava quase se pondo e não havia ninguém fora de casa. Significava que só podia ser perigo. Tsuke sorriu. Aquela podia ser uma boa oportunidade para ficar rica. Se ela capturasse o invasor, podia cair nas graças do senhor de Inaba. Sem pensar duas vezes e ignorando a fome, Tsuke correu atrás da samurai.

Hana chegou à margem do rio, andou por ali até encontrar uma pedra multicolorida, de formato oval e um pouco maior do que a cabeça humana. Parecia que o objeto não fora atirado no lago, mas saíra da água. A guerreira piscou e se baixou, tentando analisar o estranho objeto. Uma pedra como aquela devia ser muito valiosa e não deveria estar ali. Seria melhor entregá-la ao senhor de Inaba. Ele saberia o que fazer.

Tsuke desceu o declive e parou ao lado de Hana.

— Minha chance de ficar rica! — exclamou Tsuke, fitando o incomum objeto. — Esse ovo vai me dar um castelo na capital!

— Ovo? — Hana perguntou confusa e olhou para a vendedora de flores. A pedra brilhava de maneira estranha e parecia emitir calor, como se estivesse viva. Talvez a garota estivesse certa.

— Já disse que é meu! — Tsuke falou rápido e se baixou para recolher o ovo.

— Não toque nisso! — exclamou Hana e puxou a garota pela gola do kimono, jogando-a no chão. — Pode ser perigoso.

Tsuke abriu a boca para argumentar, quando um barulho alto partiu do ovo; de dentro do ovo. Imediatamente, a ladra engatinhou e se escondeu atrás da guerreira, buscando proteção. A samurai puxou a katana e ficou em uma posição ofensiva.

Várias rachaduras surgiram na casca colorida do ovo e iam aumentando a cada segundo até estourar o ovo em milhares de pedaços. A garuda havia nascido.

— Pelos braços de Zhihui! — surpreendeu-se Tsuke e saiu de trás de Hana. — É a ave do senhor nosso imperador!

— Garuda? — Hana piscou um pouco incrédula e guardou a katana.

A ave era minúscula, menor que um canário. A garuda tinha um corpo humano, a cabeça de um falcão. As asas, que cresciam das costas, tinham penas multicoloridas. Tinha os olhos grandes e esbugalhados, em posição frontal. O bico era curvo, afiado e pequeno; dentes podiam ser vistos quando o bico era aberto. O corpo era branco. Tinha braços humanos e garras de aves de rapina.

Tsuke se aproximou e retirou algumas sementes de gergelim da cesta, oferecendo-as ao pássaro. A garuda bicou algumas e as devorou. Parecia ter gostado da comida. A ladra sorriu. Sabia que as garudas faziam ninhos nas árvores gigantes que cresciam em cima do oceano. Nunca pensou que um ovo dessas aves poderia chegar ali; um lugar longe do oceano e longe da capital imperial.

— Eu vou ficar rica! — disse Tsuke decidindo ignorar as dúvidas que possuía. Pouco importava da onde veio aquele ovo, finalmente teria a chance de ter o próprio castelo. Pegou a ave do chão e a colocou no cesto. A garuda não pareceu se importar com aquilo. — Eu vou levá-la ao senhor imperador.

— A senhorita irá entregar a garuda ao meu senhor de Inaba — explicou Hana. — Meu senhor é bom e venerável. Saberá recompensá-la devidamente.

Tsuke forçou um sorriso. Havia esquecido, mas tinha que lidar com aquele pequeno problema antes de sair em viagem. A imagem do senhor de Inaba passou pela cabeça. Ele perdera duas guerras e perdera terras. Mesmo que o senhor da guerra fosse “bom” não seria válido confiar nas palavras dele. O máximo que Tsuke ganharia seria aposentos confortáveis no castelo e um casamento arranjado. E pior, o irmãozinho iria ser treinado no caminho do guerreiro para se tornar um detestável samurai. Tsuke jamais deixaria Tadaatsu pegar em espadas.

— Será uma honra receber a benção do seu senhor, venerável samurai — disse Tsuke no tom mais humilde que conseguia. — Mas não há recompensa maior do que prestar um favor ao nosso augusto imperador.

Hana estreitou os olhos, analisando a garota. O senhor de Inaba não esqueceria um favor feito ao clã. Certamente, falaria ao imperador da bondade da garota que salvara o filhote de garuda. A samurai não conseguia entender. Afinal, por que uma camponesa se negaria a prestar um serviço ao líder do clã Inaba? Talvez ela não fosse uma simples vendedora de flores. Podia ser uma ninja espiã a mando de outro senhor da guerra. Ou podia ser uma traidora.

— A senhorita planeja levar a garuda à capital sozinha, correto? — Hana perguntou e segurou o cabo da katana.

— Sim. — A resposta escapou da boca de Tsuke antes que ela tivesse tempo de controlar a língua. Um riso nervoso saiu da boca da ladra. — Ooops...

— Todos os tesouros perdidos e encontrados nesta terra, pertencem ao meu senhor, líder do clã Inaba — sentenciou Hana. Os olhos da samurai continham uma ameaça velada. — Qual teu objetivo em cometer tal crime?

Tsuke teve que se controlar para não responder “ficar rica” para a pergunta feita pela guerreira. A ladra abraçou a cesta de palha e deu as costas para a samurai, ficando de frente para o rio. Ficou observando a correnteza fluir do lago para a floresta. A garuda permanecia calma dentro da cesta. Pelo menos isso ela tinha sobre controle. Agora precisava pensar em um jeito de sair dali com vida.

— Sabe que se fizer isso só trará morte à sua família e desgraça aos seus ancestrais — Hana continuou. — É um bom conselho que lhe dou.

Bom conselho... bom conselho?!  Tsuke sentiu o sangue ferver ao ouvir aquelas palavras. Como aquela samurai podia dizer tamanho absurdo?! A guerreira sequer conhecia Tsuke e a família e se achava no direito de julgá-los, baseando-se em um estúpido código de honra. A honra não ajudaria ninguém, não encheria estômagos e não salvaria vidas. Tsuke não precisava de honra para salvar a vida da família e trazer orgulho aos ancestrais. Tudo o que precisava era terras e riquezas. E ela iria conseguir conquistar as duas coisas graças à garuda.

— A senhora samurai não atacaria um adversário pelas costas, não é? — Tsuke disse, enquanto mexia na cesta de palha. A garuda piou, parecendo incomodada, mas logo se acalmou ao achar mais sementes de gergelim na cesta.

— Não pretendo lhe causar mal — Hana respondeu. — Tampouco iria atacar alguém em posição tão vulnerável.

— Que bom — disse Tsuke e se virou, atirando uma bomba de fumaça contra o rosto da guerreira.

A ladra não perdeu tempo de saiu correndo, sumindo dali.

Hana não teve tempo de reagir. Viu uma pequena bola vir em sua direção e chocar-se contra seu rosto, explodindo em fumaça e derrubando-a. A samurai fechou os olhos e levou o braço ao rosto, procurando proteger a boca e o nariz. Os olhos ardiam e estavam cheios de lágrimas; tossia de forma violenta, deixando a garganta dolorida.

— Bomba de fumaça... — Hana resmungou, tentando imaginar como uma camponesa conseguira um artefato utilizado pelos ninjas. A nuvem de fumaça se dissipou, permitindo que Hana se levantasse.

A ideia de que a garota fosse uma ninja a serviço de outro senhor da guerra ganhou força. Fora uma falha tola. Não deveria ter baixado a guarda, só por causa de olhos dóceis e uma cesta de flores. Apesar disso, algo não fazia sentido. Era fácil de notar que a garota ficara surpresa com o nascimento da garuda. Se ela não tinha ciência da existência da ave, então o que fazia em Inaba? Seria uma mudança de planos? Teria a garota outra missão?

Ficar rica... Seria esse o objetivo dela? Hana não conseguia entender. Por que alguém seguiria o caminho da desonra e traria vergonha aos ancestrais, por causa de terra e riquezas?  Não havia motivo legítimo para tal comportamento. Mesmo que a garota trouxesse alegria ao imperador, jamais conseguiria dissipar a mancha vergonhosa de sua linhagem.

Hana olhou para a casca quebrada do ovo da garuda. A garota não iria longe. As estradas estavam cheias de ladrões e fantasmas famintos. Seria necessário um grupo de busca para ir atrás dela. A samurai se abaixou para recolher um pedaço da casca, contudo o ovo explodiu ao entrar em contado com sua mão.

— Quê?!

Hana recuou, sem entender o que aconteceu. Havia um corte fundo na palma de sua mão, como se alguém tivesse passado uma faca ali. A samurai arrancou um pedaço da manga do kimono e amarrou na mão, numa tentativa de estancar o sangramento. Hana fechou o punho ferido e gemeu de dor. Por um momento teve dúvida se seria possível curar aquele ferimento, mas não caberia a ela responder. Kumako saberia.

A samurai deixou os restos do ovo da garuda para trás e retornou a ponte. Faltava pouco para o sol se por, mais alguns segundos e a noite ganharia o domínio na terra. Uma meia lua brilhava fraca no céu. A guerreira apoiou a mão boa no corrimão da ponte e fitou o lago. A flor lilás que havia jogado não estava lá, havia sido puxada pela correnteza. O dia da Flor estava terminando. Amanhã seria o dia do Fogo. A garota que roubara a garuda teria de ir até o rio fazer sua oferenda. Seria um bom lugar para procurá-la.

Hana girou o corpo ao ouvir passos conhecidos. Logo a reconheceu. Usava uma armadura completa, toda em vermelho. O capacete portava chifres negros e curvos; uma máscara com a face de um tigre cobria o rosto; usava uma capa branca com uma planta de bambu – símbolo do clã Inaba – pintada de preto.

Hana fechou os olhos e se curvou.

— Takano Akame — Hana cumprimentou. — Foi bem sucedida na missão.

A outra samurai retirou o capacete e desamarrou a máscara, deixando ambos objetos caírem no chão, como se fossem simples lixo. A recém-chegada saltou e sentou-se sobre o corrimão da ponte. Akame tinha um sorriso arrogante no rosto, como se estivesse pronta para zombar alguém. Os olhos – negros e profundos – possuíam a violência dos tigres. Os longos cabelos negros estavam amarrados de forma mal feita e preguiçosa; usava uma bandana vermelha na testa para manter os fios da franja longe dos olhos. Possuía uma pequena cicatriz na bochecha direita.

— Foi um puta tédio, se você quer saber — disse Akame e virou o rosto para cuspir no lago. — O senhor Inaba podia ter mandado algum burocrata inútil no meu lugar.

— Realizou o desejo do nosso senhor de Inaba — recordou Hana — Essa devia ser sua única satisfação, Takano.

Akame riu. Hana permaneceu em silêncio.

— Merda, você é bem bonitinha, mas tem uma cabeça tão chata — reclamou Akame. — Aposto que nem sake vai te deixar mais divertida.

— Estou voltando ao castelo — Hana decidiu ignorar o comentário da companheira. — Podemos ir juntas.

Akame saltou do corrimão e juntou as partes da armadura que havia jogado no chão, colocando-as de baixo do braço.

— Hey, hey, o que aconteceu com sua mão? — Akame perguntou, notando a faixa manchada de sangue que envolvia a mão de Hana. — Alguma batalha interessante?

— Não — respondeu Hana, ergueu a mão e fitou-a. Contou a história sobre o filhote de garuda e a garota que o roubou.

— Quem mata pessoas não pode tocar na sagrada garuda — explicou Akame. — Vai dizer que você se esqueceu dessa porra?

— Eu não sabia — confessou Hana.

A guerreira ferida sentiu o peso da culpa cair sobre si. De fato, pouco sabia sobre a garuda, apenas que o imperador usava o pássaro como montaria. Fora uma falha imperdoável. Dedicava os estudos ao sagrado, lendo sobre os deuses, as oferendas e os sacrifícios; tudo o que pudesse trazer alegria aos ancestrais. Fora egoísta. Chegava a ser nojento. Fizera um juramento para o senhor de Inaba. Todas as suas ações deveriam buscar a proteção do senhor da guerra, não a própria satisfação.

— É uma notícia interessante — Akame comentou. — Fico pensando em como o senhor Inaba vai reagir. Aquele pateta só dorme e medita.

— A meditação é uma prática que eleva o espírito — retrucou Hana, incomodada com o pouco respeito que Takano tratava o líder do clã Inaba.

— Eu também tenho uma notícia interessante — continuou Akame, ignorando o desconforto de Hana. — Okuda foi pra guerra. Eles não deixaram nenhuma guarnição lá, podemos aproveitar e atacar nossos queridos vizinhos.

— Temos uma aliança com Okuda — lembrou Hana. — Traí-la seria desonroso.

— Bem, aí é só fingir que não temos — Akame riu da própria frase. — Hey, não fique com essa cara. É uma questão de autodefesa, simples assim.

— Atacá-los antes que nos ataquem? — questionou Hana. — Esse é um pensamento violento.

Akame gargalhou alto. A risada se estendeu por longos segundos. Hana permaneceu em silêncio.

— Nah, mudei de ideia. Você é bem divertida, Hana — Akame disse. — Bonitinha e divertida. Esse é o meu tipo favorito de gente, sabia? — Hana decidiu fingir que aquela pergunta não existia. — E se o senhor Inaba fosse pra guerra agora, você iria criticá-lo? Iria falar que ele é violento? Que ele seria um traidor desonroso?

— Não cabe a mim questionar as decisões do meu senhor — respondeu Hana, pouco a vontade com o rumo que a conversa tomou.

Conhecia Takano Akame desde criança e sempre evitou conversar com ela. Hana sabia que a companheira adorava falar de assuntos que não diziam respeito a um samurai, apenas aos senhores da guerra. Fizeram um juramento para proteger e servir. Deviam honrar com a palavra feita e manter-se longe de temas que não lhe eram úteis.

— Ora, vamos lá, é só uma hipótese — incentivou Akame. — Não precisa levar tão a sério. Pensa só, se fomos à guerra, não teríamos mais problemas com a fome aqui em Inaba. Ainda seria violento, se fossemos para guerra pra combater a fome?

— Ainda estaríamos violando a paz estabelecida no acordo.

— Porra, você é bem inflexível, Hana. Confesso que vai ser bem divertido tentar mudar essa sua cabecinha — falou Akame enquanto cutucava a própria testa com o indicador. — Deixar o povo com fome ou levá-lo pra guerra. Qual delas é a mais violenta?

— Não estou aqui para tomar decisões — disse Hana. — Dou a minha vida para servir...

— Tudo bem, tudo bem — Akame interrompeu. — Então, vamos fazer um joguinho. Vai ficar só entre a gente, beleza? O que você acha, Hana: senhores da guerra são pessoas naturalmente violentas; ou eles sempre precisam agir de forma violenta? Não precisa responder agora, eu vou te dar um tempo pra pensar. — Akame ergueu dois dedos. — Mas você só pode me responder estas duas opções. Nada de “depende” ou “não sei”, senão você vai estragar nosso joguinho. E isso seria uma bosta, não é?

Hana não respondeu e olhou para o céu. Já não havia qualquer sinal do sol. A noite havia dominado o firmamento.


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Notas finais do capítulo

Assim como a Tsuke também queria nascer rica. Poderosa não, porque eu sou trouxa e não conseguiria me manter no poder. =p

Se encontrarem algum erro, avisem para que eu possa corrigir.

Espero que tenham gostado.



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