Todas as Flores escrita por Mahucp


Capítulo 4
Capítulo 3 - O castelo de Inaba


Notas iniciais do capítulo

Oi, amorzinhos ♥

Sinto muito pela demora. Não queria ter atrasado tanto, mas a vida tá difícil. Minha família está com sérios problemas financeiros e, para ajudar em casa, eu comecei a trabalhar fim de semana. Acabou que meu tempo livre diminuiu bastante, e eu fico bem esgotada mentalmente. But, meu amor pela escrita e pela história meio que supera isso tudo. Assim, como meu amor por vídeo game ahsuahushaushua

Bem, esse capítulo é focado na nossa querida Hana e conhecemos um pouco do dia a dia dela.



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 O dia do Fogo começou em uma manhã agitada. Os criados do clã Inaba foram encarregados de instalar um sistema de alarme ao redor do lago que banhava a aldeia. Estacas de madeira foram colocadas à margem do lago, e foram ligadas por uma corda preta, na qual foram colocados diversos sinos, que soariam assim que alguém tocasse o fio. Apesar do trabalho intenso, aquela fora a única medida tomada em relação ao surgimento do filhote de garuda. A possibilidade de uma nova criatura lendária surgir do lago era pequena, contudo não podia ser descartada.

Por outro lado, a restrição da circulação de pessoas e a vigia aos camponeses fora proibida. A insatisfação dos aldeões era conhecida de todos e, uma ordem que lhes afetasse diretamente, podia gerar uma revolta popular; o que era bastante comum naqueles tempos de guerra e caos. Apesar disso, fora enviado um falcão a Yuudai, o guardião da fronteira, para que ele prestasse atenção dobrada aos viajantes que partiam de Inaba.

Com relação às notícias de Okuda, trazidas por Akame, ficou decidido que Inaba não quebraria a aliança que possuía com a província vizinha; mesmo se Okuda perdesse a batalha para a qual se caminhava.

Todas as medidas foram tomadas sob a ordem de Takano Sadakore, o samurai mais poderoso da região e principal auxiliar do atual líder do clã, Inaba Nobu. O senhor da guerra, entretanto, preferiu buscar uma resposta em suas constantes meditações, a tomar uma decisão que fosse rápida e prática. A esposa e o filho mais velho seguiram o líder do clã na meditação. O segundo filho, por outro lado, gastava o tempo em casas de prostituição e não se preocupava com a situação política da província. Inaba Nobu também tinha uma filha, contudo ela não estava presente, pois se casara com o herdeiro de Okuda em uma forma de demonstrar a boa vontade de manter a paz com a província vizinha. Por fim, os dois últimos filhos — um menino e uma menina — ainda eram muito novos, e não haviam atingido quinze anos para poder exercer as atividades da vida adulta.

Hana não via a posição do senhor de Inaba de forma negativa. Ao contrário, acreditava que a meditação podia trazer a solução certa. Os estados meditativos permitiam a sintonia com o universo e a comunicação com os deuses e os ancestrais. E ninguém melhor do que os deuses para orientar os vivos em sua busca por respostas. Esse era o legado do primeiro imperador de Takei Yama, o Iluminado. Até as crianças conheciam a história do homem que, durante uma época de terrível seca, subiu ao topo da montanha gelada para meditar. Meditou durante doze dias e doze noites; sem interrupções, nem mesmo para comer ou dormir. E assim a chuva chegou, salvando a terra da fome e da miséria.

Todo ser vivo podia repetir o feito do Iluminado, pois todos tinham dentro de si a capacidade atingir o mundo divino. Hana sempre gostou dessa história, pois mostrava que qualquer um tinha o poder para salvar o mundo, bastava dedicação e disciplina. Além disso, o conto demonstrava a importância do sacrifício. Hana admirava a coragem do Iluminado em renegar tudo, passando por tantos sofrimentos e tantas dores, para poder salvar a todos. Ele sofreu tudo sozinho para que todos pudessem ter uma vida boa e feliz. Era uma atitude venerável e, enquanto empunhasse uma espada, Hana tentava segui-la a todo custo.

A samurai se levantou. Ela estava em frente ao rio, que ficava dentro dos três muros que cercavam o castelo de Inaba. A casa principal, de quatro andares, destacava-se por seu tamanho monumental e por sua localização quase ao pé da montanha. A construção era a morada dos membros do clã Inaba e dos monges do santuário local. Ficava em frente aos grandes portões vermelhos dos muros, tendo uma trilha de mil e duzentos metros — feita de pequenas pedras brancas — ligando o castelo com o primeiro portão. Ladeando a trilha, havia duas filas paralelas de lanternas de pedra, colocadas de maneira harmônica entre si. Atrás da casa havia uma pequena horta e áreas próprias para animais, como chiqueiro, galinheiro, estábulo e canil.

Do lado direito da trilha, estava o rio — que nascia na montanha, chegava ao lago de Inaba e corria para o interior de Takei Yama — de margens largas, embora não o suficiente para permitir a navegação. No meio do rio, havia uma ilha com uma estátua dourada da deusa Zhihui. Do outro lado do rio estava uma casa de três andares. Na porta de entrada da casa, havia uma pintura dourada de uma meia lua. Aquele era o símbolo do clã ninja Iinuma, que devia lealdade ao clã Inaba. Sobre o rio, havia uma estreita ponte de pedra, que ligava a casa dos ninjas ao complexo principal. Ladeando o castelo ninja havia cerca de seis carvalhos vermelhos.

Era do conhecimento de todos que os ninjas estavam fora de casa, deixando somente uns poucos membros da família secundária para trás. Ninguém sabia o motivo de tamanha mobilização, mas tinham ordens para não questionar as razões do clã Iinuma. Afinal, mesmo tendo jurado lealdade ao clã Inaba, os ninjas tinham certa liberdade e mantinham-se afastados de grande parte das questões políticas da província.

Hana fitou a pequena tocha — que agora estava apagada — que havia jogado no rio em oferenda à deusa Mahasagara. A samurai sempre gostou fazer as oferendas no grande lago, porém dessa vez preferiu fazer dentro dos muros do castelo, pois não queria perturbar os trabalhos ao redor do lago.

A guerreira deu as costas para o rio. Um akita, que estava deitado à beira da margem, ergueu a cabeça e mexeu as orelhas. O cachorro se levantou e passou a seguir Hana. O animal tinha quatro anos de idade e já havia atingido a altura máxima para a sua raça. Tinha uma bela pelagem amarela, com pelos grossos e brilhantes. Atendia pelo nome de Daigoro, e estava ao lado de Hana desde filhote.

Em uma caminhada lenta, humana e cachorro iam em direção ao templo, onde se cultuava os imperadores sagrados e os ancestrais do clã Inaba. O santuário ficava em posição oposta à casa dos ninjas. Era uma construção baixa, de apenas um andar, contudo tinha um tamanho considerável em largura. A caminhada da margem do rio ao templo era curta, tendo uma distância de oitocentos metros. Ali também havia uma trilha de pedras brancas, ladeada por lanternas de pedra.

Ao lado do santuário, em um canto isolado e escuro, havia um segundo castelo de três andares, onde os samurais que serviam ao senhor de Inaba moravam.

Hana havia percorrido metade da distância quando avistou Shigekuni, um colega samurai. Ele vinha correndo, enquanto carregava equipamentos para pintura. Shigekuni tinha a expressão sempre alegre, com cílios longos e as sobrancelhas finas. A cabeça era toda raspada. As feições eram bem delicadas e criavam um contraste forte com o corpo alto e musculoso. Assim que viu Hana, Shigekuni sorriu e acelerou a corrida para encontrar a amiga.

Os dois se cumprimentaram com uma breve inclinação. Após isso, trocaram palavras de bom dia. Daigoro mexeu as orelhas e deitou no chão, colocando a cabeça entre as patas.

— Que acha de me acompanhar, Hana? — Shigekuni perguntou. Tintas, pergaminhos e pincéis iam escorregando dos braços, mas o samurai mantinha-se atento ao material e não permitiria que algo caísse no chão. — Vou aproveitar a agitação de hoje, pra pintar os trabalhadores no lago. Podemos fazer isso, juntos.

— Agradeço o convite, mas terei de recusar — disse Hana. — Tenho outros planos para hoje.

— De qualquer forma, não se esqueça de passar lá depois. — Shigekuni não ficou abalado com a recusa. Era comum que as rotinas fossem diferentes. Apesar disso, o samurai tinha bons motivos para acreditar que não havia algo como “tempo livre” na rotina de Hana. Na dele, por outro lado, havia muito tempo livre. — Eu vou transformar a pintura na minha oferenda de fogo para Mahasagara.

— Ficarei contente em apreciar sua pintura — Hana respondeu e abriu um pequeno sorriso.

— Só espero conseguir terminar a pintura a tempo — comentou Shigekuni. — Senão me sentirei muito injustiçado.

— Terá de esperar até o próximo dia do Fogo para fazer a oferenda.

— Essa é a injustiça! — explicou o rapaz, imaginando que a amiga não tinha entendido a questão. — Eu vou pintar o lago de hoje, não o do próximo dia do Fogo. Até lá, tudo vai mudar.

— Tem razão a respeito da mudança, contudo creio que Mahasagara não irá se incomodar com isto.

Shigekuni se controlou para não revirar os olhos na frente da amiga. Mahasagara podia não se incomodar, mas ele incomodava. Claro, que queria agradar a deusa, mas também queria fazer a pintura para satisfação pessoal. E não havia nenhum problema em pensar em si mesmo.

— Acho que a deusa Mahasagara não vai se incomodar se eu fizer a oferenda amanhã — disse Shigekuni e encarou o céu, calculando as horas que teria para pintar.  

— Seus ancestrais e Mahasagara ficarão insatisfeitos, se fizer o ritual de forma errada, Shigekuni — replicou Hana, sem entender o fundamento daquela fala. Daigoro ergueu a cabeça, como se concordasse com a opinião da dona.

— Sabe, eu não entendo isso — comentou Shigekuni e deu de ombros. — O mundo tá sempre mudando, por que os rituais têm que continuar da mesma forma de séculos atrás?

— Devemos respeitar os ensinamentos de nossos ancestrais — falou Hana. — Se fizermos os rituais de outra forma, perderíamos o vínculo que temos com os antigos.

— Mas por que tem que ser assim? — Shigekuni questionou. — Você nunca pensou em algo parecido? O importante é mantermos a ligação com os ancestrais, não a forma como isso é feito.

Shigekuni tinha muita curiosidade e gostava de estudar sobre tudo, porém tinha preferência em pesquisar sobre a cultura de outros povos. Ele chegou a ler sobre as tradições de culto aos ancestrais de outras regiões do continente como Damaar e Hamanshathur. Todos tinham cultos específicos e todos mantinham uma ligação com os ancestrais. E, bem, se havia outras formas de entrar em contado com os ancestrais, por que não tentar? Ou melhor, por que não criar uma nova forma de ritual?

— A forma do ritual faz parte daquilo que nossos ancestrais nos deixaram — retrucou Hana. — Se mudarmos isso, estaríamos negando o legado que construíram. Não podemos deixar nossa tradição de lado, do contrário perderíamos nossa identidade e nos tornaríamos indignos do nome de nossos ancestrais e de Takei Yama.

A samurai sabia que não podia negar os ensinamentos dos ancestrais. Takei Yama só se tornou o que era por causa deles. Hana faria de tudo para honrar o sacrifício deles. A luta dos ancestrais não fora em vão para ser descartada com tanta facilidade. Foram eles que construíram Takei Yama e Hana pretendia continuar com o legado deles. Iria se mostrar digna do sacrifício que fizeram.

Shigekuni abriu a boca para falar, quando um grito alto e agudo tomou conta do espaço. O samurai fez uma careta, incomodado com o barulho. Hana permaneceu com o semblante inalterado. Daigoro se levantou e correu até a origem do som, deixando os guerreiros sozinhos.

— Au. Essa doeu — Shigekuni comentou. Olhou para a direção em que Daigoro correra.

— Deve ter sido a jovem mestra — disse Hana também olhando para o local de origem do som. — O treinamento dela costuma ser pela manhã.

— É, deve ter sido ela — concordou Shigekuni. O samurai sorriu. — Olha, depois dessa, eu acho que deveríamos aproveitar e usá-la como arma de guerra. Esse grito vai derrubar qualquer adversário.

— Crianças não podem ir para a guerra — disse Hana sem entender o motivo daquele comentário.

— Eu sei, eu sei! — Shigekuni ficou um pouco na defensiva. O samurai deu um passo para trás. — Foi só uma piada.

— Não teve graça — criticou Hana. Sorriu ao ver Daigoro retornar. A samurai estralou os dedos para chamar o cachorro, que acelerou o passo até ficar ao lado da dona. Hana fez um breve afago entre as orelhas do akita, que fechou os olhos, satisfeito com o carinho. — Esse é um assunto sério. Há muitos relatos de crianças em meio à guerra.  

Shigekuni não pode evitar revirar os olhos diante da falta de humor da companheira. Às vezes, achava que Hana havia atingido o estado espiritual de uma pedra, pois começara acreditar que a amiga era incapaz de rir de alguma piada. Ele não se lembrava de ter visto Hana rindo alguma vez. O que era muito estranho, afinal as piadas dele costumavam ser bem engraçadas.

Por outro lado, Shigekuni sabia que era difícil de criticar Hana. A amiga era uma samurai exemplar. Fazia boa poesia, boa pintura e boa música. Dominava a espada, a lança e o arco. Servia ao senhor de Inaba com lealdade, humildade e coragem. Travava todos com gentileza e educação. Hana era tudo o que um samurai deveria ser. Shigekuni não duvidava que ela fosse a guerreira mais forte da nova geração. Hana era alguém que poderia superar Takano Sadakore.

Bem... talvez Takano Akame fosse mais forte, todavia Shigekuni não gostava de Akame, que era pura rebeldia e brutalidade. Sem falar que Akame era culpada por ele ser conhecido como cometerra. Tudo isso por que quando criança, Shigekuni ficara doente e acabou comendo um pouco de terra. E agora estava marcado para todo o sempre.

Infelizmente, ele nunca conseguiu pensar em uma forma de se livrar do apelido. Batalhar contra Akame estava fora de cogitação, não teria a menor chance. Realizar o ritual suicida do seppuku era uma possibilidade, porém não poderia descartar a ideia de que, mesmo depois de morto, seria alvo de chacota. Fugir para o exterior acabava na mesma situação; na verdade era até pior, já que além de cometerra ele seria também um covarde. A única chance de mudar isso era a aparição de um novo alvo de deboche. Uma piada velha perde a graça quando a nova aparece. Essa era a lógica que ele costumava usar no dia a dia. E sempre funcionou. O problema desse plano era onde se arranjar um novo alvo de deboches...       

— Eu sei que é um assunto sério, mas a piada não precisa ser séria, mesmo sendo uma piada sobre um assunto sério. — A explicação ficou melhor na cabeça do que na fala, e Shigekuni ficou em dúvida se Hana havia entendido. — Mas sabe... o pessoal do leste pode nos considerar um bando de fracassados, mas eu acho que temos sorte de não termos de presenciar crianças lutando na guerra.

— Ficaremos atentos para que essa possibilidade jamais aconteça — disse Hana.

— Bem, agora eu vou pintar — falou Shigekuni. — Depois continuamos nossa conversa sobre os rituais. Só tome cuidado com os teus argumentos, porque se eles forem melhores que os meus, eu vou te xingar. Muito.

Nesse instante, Daigoro se levantou e rosnou, mostrando os dentes para o samurai. Os pelos do animal estavam eriçados e as narinas dilatadas. Shigekuni arregalou os olhos e deu vários passos para trás.

— Poxa! Seu cachorro é igualzinho a você; não entende as piadas — reclamou Shigekuni, contudo em um tom brincalhão.

— Daigoro é leal — Hana defendeu o animal. — E você me ameaçou.

— Mas ele não iria me atacar, correto? — Shigekuni perguntou, pensando se realmente queria saber da resposta. Um cachorro assassino era uma das coisas que poderia acabar com o dia de qualquer um.

— Não — Hana respondeu e pousou a mão na cabeça do akita. — A intenção era que você fugisse.

— Isso ele conseguiu — falou Shigekuni sorrindo. Curvou-se. — Eu vou indo. Te vejo mais tarde, Hana.

— Até mais tarde, Shigekuni — Hana se despediu, inclinando-se para frente.

Hana voltou a se dirigir ao templo. A construção mantinha-se em uma plataforma elevada, sendo separada do solo por uma escadaria de doze degraus, que eram feitos de madeira clara. Na beira do telhado do santuário, havia uma corda dourada com pingentes de papel amarrados ao longo do comprimento.

O templo não possuía portas, porém havia duas estátuas de jade, vigiando cada extremidade da entrada. As estátuas tinham o formato de carpa. Os peixes foram esculpidos de modo que ficassem em pé, apoiados sobre as barbatanas traseiras e com as costas curvadas, tal qual uma pessoa de muita idade. As carpas tinham a boca aberta, os lábios grossos e presas tão grandes quanto as de um javali. Os olhos eram frontais e saltados, passando a impressão de fúria constante. As estátuas de carpa eram conhecidas como deus severo e deus bondoso. Eram eles quem mantinham a vigilância na entrada de todos os templos de Takei Yama. Eram deuses iguais em aparência e nem mesmo o Criador poderia diferenciá-los.

Hana subiu as escadas do templo, com Daigoro seguindo de perto. O akita logo ultrapassou a dona e dirigiu-se para uma das estátuas de jade. Daigoro abaixou a cabeça e passou a cheirar o peixe esculpido, procurando um bom lugar para urinar.

— Daigoro! — Hana chamou a atenção do animal, que olhou para a dona e jogou a cabeça para o lado. — Não!

O akita obedeceu e desceu as escadas, abaixou a cabeça e passou a farejar o chão; até encontrar uma lanterna de pedra em que pudesse urinar. Um novo grito foi ouvido e Daigoro logo correu na direção do som.

Hana olhou o companheiro canino por alguns segundos e entrou no templo. A samurai deixou as sandálias de palha na entrada e dirigiu-se para o fundo do santuário, onde havia as estátuas dos três imperadores lendários.

O interior do templo era escuro, tendo como única fonte de luz a entrada. Tal fato dava uma atmosfera sombria e claustrofóbica ao lugar, mesmo sendo grande o suficiente para comportar cerca de noventa pessoas. Nas paredes do fundo, estavam localizadas as estátuas dos três imperadores lendários. As demais paredes eram ocupadas por grandes pedregulhos retangulares; todos carregavam o nome de algum ancestral Inaba, inscrito com tinta preta. Ao lado de cada pedregulho, havia um suporte para acender incenso. As estátuas imperiais tinham — na lateral — um balde de madeira, cheio água fresca, e uma concha metálica.

As estátuas não somente representavam os imperadores sagrados, mas também tinham sua própria divindade. Eram entidades vivas, que se alimentavam de pedidos e agradecimentos, e que faziam a ligação entre o mundano e o sagrado.  

A escultura do primeiro imperador encontrava-se no centro, em posição de destaque em relação às outras duas; representando o lendário governante em uma posição meditativa, com as pernas cruzadas e as mãos sobre o colo. Os outros imperadores eram carregados pela garuda sagrada. O segundo imperador estava sentado sobre os ombros do pássaro e trazia uma expressão pacífica; as palmas das mãos estavam unidas como em uma prece. O terceiro imperador estava com os pés nos ombros da garuda e trazia nas mãos um arco e flecha prestes a disparar.

Hana foi até o fundo do santuário e prostrou-se em frente à estátua do segundo imperador, conhecido como o Venerável Guerreio. Por conta da história de coragem, luta e superação, ele era cultuado por samurais, ninjas, monges guerreiros e por todos que tinham o combate como forma de vida. Filho do primeiro imperador com a deusa Mahasagara, o Venerável Guerreiro fora o primeiro a montar na garuda sagrada e, juntos, foram os responsáveis por impedir que os monstros de Shenxun dominassem Takei Yama. Fora o segundo imperador que criara as artes marciais, a arte de fabricar espadas e todas as técnicas de combate individual.

— Há muito venho aqui pedir orientações e fazer agradecimentos — Hana falou, sem erguer a cabeça. — E, recentemente, percebi que eu estive errada, Venerável Guerreiro. Errei ao ignorar que o senhor nunca esteve sozinho, mas... de hoje em diante, também me dirigirei a ti garuda sagrada. Fui tola em ignorar tua existência, garuda sagrada. Tu que és tão importante quanto o Venerável Guerreiro, não merece cair no esquecimento. Ei de consertar esse erro, garuda sagrada. Serei a mais leal serva desta terra de Takei Yama. Seguirei com vigor os ensinamentos que tu e o Venerável Guerreiro trouxestes a este mundo, e que me foram passados por meus ancestrais. Esse é o meu juramento.

Hana se levantou, pegou a concha de metal e, em seguida, mergulhou-a no balde de água. A samurai ergueu a concha e derramou a água sobre a escultura. O líquido transformou-se em vapor assim que tocou a estátua e a fumaça tomou conta do ambiente. Hana fez uma inclinação respeitosa; a estátua havia aceitado sua prece.

A guerreira se arrependia por ter negligenciado o conhecimento sobre a garuda, porém não sentia culpa pela conduta que teve em relação ao filhote do pássaro sagrado. Hana sabia que o comportamento daquela garota ladra — seja lá qual for a identidade dela — poderia condená-la a morte. Afinal, samurais tinham o direito de decapitar aqueles que não se curvavam em demonstração de respeito. Hana compreendia a existência de tal direito, mas não gostava da ideia de impor medo aos que não tinham força para lutar. Hana não podia aceitar que os mais fracos, aqueles que ela jurou proteger, fossem os mais prejudicados. Se fosse para se curvar, que todos o fizessem, não somente aqueles que não tinham uma espada para defender-se.

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Hana estava parada em frente a uma porta de correr, que se localizava no terceiro andar do castelo de Inaba. A samurai estava ali para vigiar e impedir que bisbilhoteiros ouvissem o que se discutia na sala. Hana sabia que era uma reunião sobre o sistema de alarme recém-instalado e, agora, Inaba Nobu, junto de Takano Sadakore e outras pessoas importantes discutiam o que deveria ser feito a seguir.

A sala de reuniões ficava no centro do andar e era contornada por um estreio corredor, que a separava dos demais cômodos. Portas de correr, com uma rica pintura de plantas e animais, dominavam as paredes do corredor. No teto, uma lanterna de bambu iluminava o ambiente com uma chama fraca.

Hana permanecia em pé, tão imóvel quanto uma estátua. Já Akame, que também foi designada para aquela tarefa, estava sentada com uma perna dobrada e a outra esticada. Ela havia retirado a armadura do dia anterior e, agora, vestia um simples kimono vermelho; sendo a vestimenta bem mais larga que o tamanho de Takano. A postura desleixada de Akame era o oposto da comportada de Hana.

— Sabe que eu falei com a Shizuka lá em Okuda? — comentou Akame, que começava a ficar entediada com a demora da reunião. — Ela me perguntou de você.

Hana sentiu as bochechas esquentarem e virou o rosto, escondendo a face do olhar atento de Akame.

— Imagino que a senhorita Inaba... digo, a senhora Okuda tenha perguntado a respeito de todos — falou Hana, ainda um pouco constrangida.

— Sim, mas eu não disse nada. Ela é uma inimiga agora. — Hana virou o rosto e encarou a companheira, contudo logo recuperou a postura séria. Takano tinha razão. Por mais que houvesse um acordo de paz entre as províncias, ainda não era motivo para revelar informações para o clã Okuda. Akame deu de ombros, perdendo o interesse no assunto. — Como tá a tua mão?

— A senhora minha avó cuidou da ferida — Hana respondeu e fitou a palma da mão.

— E você pode lutar?

— Nunca perdi a capacidade para a batalha.

— Nah, nem deve ter sido uma ferida feia. Mas sabe? Ainda podemos aproveitar essas cascas sagradas e fazer umas armas — disse Akame. — Uma flecha seria uma ideia, não? — Takano sorriu e deu um pequeno soco na própria testa. — Atiramos e a cabeça do perdedor explode. Aposto que todo mundo vai de borrar de medo.

— Não devemos usar de vantagens injustas para combater.

— Ora, e por que não? — Akame questionou. — Melhor isso do que precisar de números e convocar um bando de covardes, que só vão à guerra por causa de saque, pilhagem e estupro.

— Não precisamos de nenhum desses recursos para batalhar — retrucou Hana e olhou para Akame.

— E como você pretende vencer uma guerra? Acha que só a pureza da causa basta?  

Hana virou o rosto para frente e ficou em silêncio. Vendo que Hana não responderia, Akame — sem se levantar — deslizou a porta de correr e abriu uma pequena fresta para a sala de reunião. Espirou o lugar por alguns segundos e fechou a porta.   

— Quanto tempo você acha que isso vai durar? — perguntou Akame. — Nem sei por que esses patetas perdem tempo com essas coisas inúteis. No fim, é o senhor meu pai quem decide tudo.

— O senhor Takano precisa do consentimento de nosso senhor de Inaba, para realizar qualquer ato — disse Hana, mesmo imaginando que Akame soubesse daquilo.

— Você não é do tipo que costuma ter uma opinião própria — Akame encarou a outra samurai e abriu um sorriso de deboche. — Isso é irritante, Hana. Parece o senhor meu pai. Mas diferente dele, você é bonitinha e isso me diverte.

Hana preferiu não continuar a conversa. Ser comparada com Takano Sadakore era um elogio que ela considerava exagerado, contudo sabia que Akame não tinha uma intensão positiva ao fazer a comparação.

A família Takano era conhecida, desde muito tempo, por ter um estilo de combate baseado em bloqueios e esquivas; priorizando a defesa em relação ao ataque. Nem por isso, deixava de ser um estilo mortal. Corria o boato que Takano Sadakore nunca matou. Todos os adversários do poderoso samurai de Inaba cometeram suicídio, ao passar por horas de combate interrupto contra Sadakore. Hana acreditava que fosse verdade, pois Sadakore nunca desmentiu tais boatos. E um samurai como ele jamais deixaria que uma mentira sujasse o nome da família.

Mas Akame... Akame rejeitara o estilo da família e lutava na base da força bruta e do improviso. Hana não sabia o motivo disso, porém Akame sempre deixou clara a antipatia que sentia em relação ao pai.

— É um bom desafio esse, não?  Tentar arrancar uma opinião dessa tua cabeça — Akame continuou — Lembra do nosso joguinho? Tem uma resposta, ou ainda precisa de tempo para pensar?

Hana pensou na conversa que teve com Shigekuni sobre as crianças lutando na guerra. Acreditava que ninguém faria aquilo por vontade própria, todavia também tinha fé que, não importava a situação, as pessoas eram capazes de fazer as escolhas corretas. O jogo de Akame não tinha uma resposta certa, contudo — ainda que não tivesse feito uma promessa — Hana não podia faltar com a palavra ou quebrar as regras do jogo. Afinal, Akame esperava por uma resposta.

— Os senhores da guerra sempre precisam agir de forma violenta — falou Hana em voz baixa. — Essa é a minha resposta.

Por mais que estivesse na obrigação de responder o jogo de Akame, Hana sentia-se desconfortável com aquelas palavras. Simplesmente não acreditava naquilo que dissera. O peso da mentira deixava uma sensação ruim, como uma falha terrível que não poderia ser reparada depois. Aquela era uma situação sem saída. Ou faltaria com a palavra ou mentiria. De uma forma ou de outra sairia perdendo. Era patético; passara anos treinando a mente e o corpo e não conseguira lidar com um simples jogo.

— Então, você tem uma resposta. — Akame esticou a outra perna e deu um longo bocejo. — Se é assim, eu vou ter que ficar com a outra posição; senhores da guerra são naturalmente violentos.

Hana não entendeu o propósito daquilo. Afinal, o que Akame queria com aquele suposto jogo?   

— Agora eu preciso pensar em como vamos tornar isso divertido — Akame se levantou, em um pulo, e ficou de frente para Hana. — Uma luta seria bom. — Akame colocou o dedo indicador no ouvindo, em uma tentativa de limpar a cera acumulada. — Essa é uma boa maneira de provar o nosso joguinho, não? Vamos ver se o nosso senhor de Inaba gosta de ver um pouco de sangue — Akame sorriu zombeteira e limpou o dedo na própria roupa.

— Não lutamos por divertimento — Hana disse após um longo silêncio. — Podemos debater sem usar violência e sem envolver o nosso senhor de Inaba nesse... jogo.

— Ora, isso foi uma opinião própria ou só um monte de besteiras sobre honra? — Akame provocou, aproximando-se mais de Hana. — E se eu lhe obrigar a lutar, Hana, o que você vai fazer?

E Akame atacou. Em um movimentou rápido, sacou a wakizashi e desferiu um golpe contra o estômago de Hana. Akame riu. A espada curta estava pressionada contra a barriga da companheira, mas a arma não fez um único arranhão.

— Ora, mesmo nessa situação você não vai reagir? — Akame perguntou em um misto de curiosidade e irritação.

— Não tenho motivo para desconfiar de você, Takano — respondeu Hana, que não havia reagido diante da ameaça do ataque de Akame. Havia permanecido parada e imóvel — Nós fizemos o mesmo juramento e lutamos pelo mesmo objetivo. Somos companheiras de batalha e eu confio em você.

— Essa tua lógica não tem sentido, Hana — zombou Akame e guardou a wakizashi na bainha. — Você larga esse companheirismo besta se eu ameaçar o senhor de Inaba, mas não move um dedo quando ergo minha espada contra ti. — Akame se afastou e colocou os dedos na porta de correr da sala de reuniões. — Bem, se é isso que preciso fazer para lutar contra você; eu vou matar o senhor de Inaba.

Hana arregalou os olhos e esticou o braço, segurando o pulso de Takano. Ao mesmo tempo, Akame empurrou a porta, deixando a cena à mostra de todos que estavam presentes. O silêncio tomou conta do ambiente. Todos os olhares caíram sobre as duas samurais. Sem ter coragem de encarar os mais velhos, Hana soltou o braço de Akame e ajoelhou-se diante do homem a quem jurara lealdade; colocou a testa no chão e aguardou.

A sala dava destaque a uma plataforma elevada por três degraus, onde o senhor de Inaba estava posicionado. Inaba Nobu estava no comando do clã fazia trinta anos. O rosto era marcado por rugas, que lhe denunciavam uma velhice antecipada, embora as grossas sobrancelhas negras e as bochechas rosadas lhe dessem vestígio de juventude. Tinha a cabeça calva, com os cabelos laterais ganhando tons de branco. O rosto era livre e barba e bigode. As vestes, vermelha e branca, eram ricamente decoradas com desenhos de bambus. Portava somente uma espada, presa junto à faixa da cintura.

Abaixo da plataforma, os outros estavam organizados em duas filas laterais, deixando o líder do clã em posição central. Em uma fila estavam a esposa de Inaba Nobu e os dois filhos mais velhos do casal; e na outra fila estavam Takano Sadakore e dois auxiliares, os quais estavam presentes na operação do sistema de alarme.

Esperar era tudo o que Hana podia fazer. Nunca se sentiu tão exposta antes e, nem mesmo fechar os olhos lhe traria um pouco de conforto. Um erro simples como aquele não era digno do treinamento que recebera. Jurara que seria a serva perfeita, que não cometeria mais erros ou negligenciaria ações, contudo agira como uma criança diante de uma brincadeira inofensiva. Um erro como esse não podia ser perdoado. Hana tinha que ser perfeita, tinha que manter a palavra do juramento que fizera.

O silêncio foi, finalmente, quebrado pelo riso de deboche de Akame. A samurai rebelde, que permanecia em pé, voltou os olhos para o pai. Takano Sadakore estava ajoelhado sobre uma almofada vermelha, posicionando-se próximo ao senhor de Inaba. Sadakore tinha um pouco mais de quarenta anos. O rosto estava queimado pelo sol, deixando visível o aspecto ressecado da pele grossa. A testa era larga e ele não usava franja. Os cabelos negros, que cobriam toda a cabeça, estavam amarrados em um pequeno coque. Tinha um bigode fino e um pouco de cavanhaque sobre o queixo pontudo. Possuía uma postura pacífica e elegante, que destoava do jeito negligente da filha. Sadakore usava um kimono preto e carregava duas espadas na faixa da cintura.

Vendo que o pai não teria qualquer reação, Akame deixou o riso morrer e cerrou a mandíbula.

— Fui rude em interromper a reunião dos senhores — disse Hana, após um novo momento de silêncio. — Eu estou pronta para receber a punição que considerarem adequada.

— Levante-se, jovem guerreira — pediu Inaba Nobu. Hana obedeceu, porém não ergueu o rosto. — Não há nada de condenável na sua conduta. Nossa reunião acabou há tempos. Estávamos apenas discutindo frivolidades.

— Agradeço a generosidade, meu senhor — falou Hana, curvando-se. — Prometo compensar essa falha com muitos atos veneráveis. — Hana voltou-se para Akame. — Takano Akame, eu aceito lutar contra você.

— Ah, finalmente uma boa notícia! — exclamou Akame. Um sorriso voltou a surgir no rosto. — Só não me decepcione, Hana. Quero uma luta bem divertida.

— Digo o mesmo, Takano.

Akame preparou-se para retirar-se da sala, ignorando a tradição que ditava que os membros do clã Inaba sempre sairiam primeiro. Por um momento, ela parou na porta e encarou o pai, porém Sadakore — novamente — não teve qualquer reação. Akame bufou e saiu pisando forte, deixando a sala de reunião para trás.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo! Se encontrarem algum erro, podem falar para que eu possa corrigir. =)

Curiosidades de Takei Yama: a tentativa de copiar o feito de primeiro imperador é bem comum, mas sempre gerou um grande número de mortos. Para evitar isso, séculos antes de Hana e Tsuke nascerem, o Primeiro Ministro promulgou um decreto proibindo essa prática. Isso acabou eclodindo em uma grande revolta religiosa, que foi liderada pelo Ministro dos Santuários. A revolta se estendeu por alguns anos, até ser violentamente reprimida pelo exército imperial. Nos dias atuais, o decreto ainda está em vigor, mas ninguém o obedece. E ninguém liga para os desobedientes.

Estreando o novo quadro sobre o passado de Takei Yama. o/
Eu pretendo colocar a maioria das informações de worldbuilding ao longo dos capítulos, mas algumas coisas vão acabar ficando de fora. Portando, vez ou outra irei mostrar umas curiosidades fofas para vocês.



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