Crônicas do Amor Caótico escrita por Lune Kuruta


Capítulo 1
Dia 1 (Aquagêmeos): Mainstream


Notas iniciais do capítulo

"Dia 1 - Desenhe/Escreva sobre seu otp numa situação romântica ou clichê. Pode exagerar. Faces coradinhas, jantar à luz de velas, tainha, vinho e muito s...Não, pera..."

IMAGEM DO CAPÍTULO: Commission Aquagêmeos feita pelo próprio Jonnhy Jota, todos os direitos reservados.



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Se Aquário e Gêmeos eram um casal por definição excêntrico, então o último lugar em que se esperaria que estivessem na noite de um Dia dos Namorados era naquele restaurante finíssimo onde, por um acaso do Universo, eles de fato estavam.

Não que aquilo tivesse sido planejado. Na verdade, Aquário havia preenchido aquele maldito cupom na loja de eletrônicos do shopping pensando no prêmio de dez mil “golpinhos” que ele poderia investir, talvez, em um telescópio melhor ou em material de Ufologia mais atualizado… mas, infelizmente, seu cupom havia sido sorteado para um jantar romântico. Ok, né? Comida de graça, pelo menos. Havia tentado ser o mais displicente possível na hora de chamar Gêmeos pro jantar — podiam até estar, mesmo que não oficialmente, namorando, mas convidá-lo pra um jantar a luz de velas no Dia dos Namorados era garantia de ser zoado pelo resto da vida.

“Comida de graça”. Ok, ele poderia investir naquele consenso pra não pagar mico.

E lá estavam eles, frente a frente, numa mesa diante da vidraça com uma visão panorâmica da cidade lá embaixo e do céu estrelado lá em cima. Apenas velas iluminavam o recinto, o que lhe parecia até meio mórbido, mas era o que pessoas mainstream achavam “romântico”.

— Eu não tô entendendo porra nenhuma deste cardápio… — Resmungou Gêmeos — Ele tá em português?

— Deveria estar, mas com o imperialismo eurocêntrico fica mais “chique” encher os cardápios de nomes em francês, italiano, inglês, alemão… porque o cliente fica disposto a pagar mais por um prato besta, então a máquina capitalista consegue girar mais rápido com a gourmetização do prato feito… — Aquário também analisava os pratos, crítico — Acho que este aqui parece menos mainstream… sei lá, gostei do jeito como eu acho que ele soa…

O atendente logo se aproximou da mesa para perguntar as bebidas. Apesar de sempre preferir uma boa cerveja, Aquário não teve dúvidas:

        — Este vinho tinto aqui!

O olhar de espanto de Gêmeos perdurou até quando o garçom foi embora.

— Vinho? Quando foi que você passou a beber essas coisas?

— Não podemos perder a oportunidade, Gê… — Murmurou o aquariano, olhando discretamente ao redor — Isto aqui é uma espécie de pesquisa antropológica, saca? Precisamos observar e agir igual a esses casais comuns pra entender melhor como o sistema funciona!

— Preciso mesmo dizer o quão bizarro é ver logo você tentando imitar o comportamento de outras pessoas?

— Não é imitar, é uma pesquisa de campo, ok? Sem contar que podemos nos misturar melhor. Se eles notam que não somos como eles, talvez até coloquem alguma coisa na nossa comida pra gente sofrer lavagem cerebral, já imaginou? Se eles pensarem que somos rendidos ao sistema como os outros casais aqui, eles vão levar numa boa...

— Ah, saquei… — Gêmeos sorriu ligeiramente. Bizarro? Sim, como muita coisa que o parceiro fazia. Mas com certeza divertido!

O atendente chegou com o vinho e prontamente serviu o casal. No período em que aguardavam a comida chegar, bebiam e conversavam sobre o ambiente enquanto observavam a dinâmica dos outros casais — alguns homossexuais em meio à maioria de casais heterossexuais por ali. Era o típico ambiente “aceitamos vocês, mas sejam discretos” cuja hipocrisia fazia Aquário se enojar. Mas ok, foco.

— Eles costumam ter uma espécie de hábito físico. Praticamente todos os casais que não estão comendo estão segurando a mão um do outro…

— Como eles conseguem ficar com a mão presa e falar ao mesmo tempo? — O geminiano estava quase chocado. Fazendo jus ao signo, era do tipo de pessoa que gesticula ininterruptamente quando está contando alguma história.

— Aff, é só usar a outra, se é tão difícil pra você… — Aquário rolou os olhos mas sorria divertido, conhecedor da mania do outro. A seguir, estendeu a mão sobre a mesa com a palma para cima em um convite — Bora…

Eles já haviam feito de tudo e mais um pouco e conheciam o corpo do outro de olhos vendados, mas aquele toque de mãos singelo era… estranho. Talvez fosse o ambiente, mas um ligeiro arrepio percorreu os pelos de seus braços quando as palmas se tocaram e um ligeiro calor tomou suas faces. Estranho, sim… aquele calafrio que não tinha nada a ver com tesão, ainda mais em um lugar broxante como aquele.

Desejando dissipar aquela eletricidade esquisita, Aquário sorriu e passou a brincar com os dedos esguios do outro, vendo Gêmeos sorrir de volta e retribuir o gracejo. A luz das velas bruxuleava e o rosto pálido diante de si tomava tons de vermelho e alaranjado. Talvez um róseo? E talvez, ponderou o uraniano, estivesse com uma aparência similar. Talvez ambos estivessem corados? De qualquer forma, ambos estavam agradecidos pela iluminação disfarçar o que provavelmente estava estampado em suas caras.

… Ainda que aquela mesma iluminação que evitava embaraços o estivesse deixando um tanto fascinado pela luz que trazia um brilho avermelhado ao olho negro do geminiano, mas refletia límpida no olho prateado logo ao lado. Duas impressões tão distintas… aquela ambiguidade de Gêmeos que por vezes o desnorteava, o confundia e o encantava, e aquele turbilhão o arrastava sempre. Por um momento se perdeu reparando naquele olhar bicolor que tinha um quê de malícia, de astúcia… de Gêmeos.

Engrenaram uma conversa baixa e científica sobre as observações daquela noite, mas Gêmeos admitia estar um pouco perdido. Os olhos de Aquário sempre faiscavam daquele jeito? A chama da vela refletia nos olhos castanhos e traziam um brilho quase avermelhado àquele marrom “comum”. Bem… não, não era como se os olhos ou qualquer outra coisa do aquariano pudesse ser chamada assim. Aquele castanho estava sempre luzindo com as ideias inovadoras e a empolgação de uma mente que estava sempre à frente de seu tempo. E as velas apenas evidenciavam ainda mais aquele efeito hipnótico que nunca o entediava… que o mantinha sempre curioso, por mais que vivesse aprendendo sobre aquele rapaz.

Para o alívio dos dois, a comida havia chegado. Entrada, depois prato principal — e ainda bem, porque com aquelas porções mínimas eles sairiam dali passando fome se comessem um prato só. De qualquer forma, comer os distraía um pouco de suas respectivas epifanias. Aquela atmosfera melosa de Dia dos Namorados parecia estar começando a afetá-los.

— As porções são mínimas. Ees limitam o acesso das pessoas a alimentos pra que seus cérebros sejam menos nutridos e elas questionem menos o sistema que as domina… — Aquário resmungava enquanto comia lagosta — Hm, claro, e pra que as pessoas possam repetir e gastar mais...

— Sabe que acho a comida do Can mais gostosa? — Gêmeos bebericava mais vinho entre uma garfada e outra em sua massa — Esses pratos cheios de nhenhenhém… pelo menos saíram de graça…

O atendente levou os pratos já vazios e, enquanto aguardavam a sobremesa, continuavam observando o comportamento dos outros casais, curiosos. A maioria mantinha as mãos dadas, e em dado momento casais heterossexuais haviam aproximado suas cadeiras de forma a trocarem beijos. Entre os poucos homossexuais, porém, nada — no máximo as mãos entrelaçadas discretamente sobre a mesa. Aquilo aborrecia os dois.

Aquário decidiu seguir o protocolo dos casais heterossexuais e arrastou sua cadeira para mais perto do geminiano, que arqueou a sobrancelha.

— “Em Roma como os romanos”...

— Na verdade, espero que em Roma você coma o Gêmeos… — Gêmeos piscou para o namorado não oficial, que riu.

Não era importante saber quem avançou primeiro, até porque os lábios se encontraram no meio do caminho, afinal. Um beijo calmo, sem muita pressa. Havia um quê de provocação, de fato — “Fodam-se vocês, nós também podemos!” — mas não era como se aquele contato fosse lascivo ou inadequado. Pelo contrário, havia… carinho ali. Era como se estivessem degustando os lábios um do outro com ainda mais cuidado e interesse do que haviam provado dos pratos refinados pouco antes; de qualquer forma, também parecia o ápice daquela vontadezinha que vinha crescendo no decorrer da noite com os olhares e as mãos unidas. Era um beijo diferente do que já haviam provado antes…

Com o canto do olho, Aquário notou a aproximação do garçom e arqueou a sobrancelha.

— Que foi? — Resmungou, apartando brevemente o beijo — Algum problema?

— Acho que não, do jeito que aqueles ali também estavam se beijando e ninguém encheu o saco… — Gêmeos completou. Um casal de meia-idade que havia sido apontado e que olhava chocado para a cena acabou se encolhendo em suas respectivas cadeiras — Dia dos Namorados, né, acho que posso curtir a presença do meu namorado em um jantar romântico.

— Porque vocês são finos e esclarecidos e sabem que se rolar homofobia aqui em pleno século XXI a gente não vai deixar barato e vocês vão se foder lindamente no TripAdvisor — Aquário sorriu de canto — Não subestimem o poder do meu namorado com redes sociais…

O garçom pestanejou por um momento, sem graça.

— N-não, senhor, de jeito nenhum, só vim trazer as sobremesas…

Os dois riram e assentiram ao serem servidos. Aquário ainda deu uma última olhada nos casais que assistiam à cena no salão, identificando alguns surpresos, outros admirados e ainda uns poucos ligeiramente indignados.

— E se vierem cagar regra em amor justo no Dia dos Namorados vou mandar se foder da forma menos elegante que eu conheço, sacou? Agora voltem a se beijar e deixem o povo se curtir em paz! Eu não tô dando pitaco nos namoros de vocês, então não venham encher o saco da gente, não! Não sou obrigado a aguentar gente atrasada e hipócrita!

Gêmeos notou os poucos casais homossexuais, entre eles um casal de senhoras em seus trinta e tantos e um casal de garotos ainda nos vinte e poucos, sorrirem, e sentiu um arroubo de admiração pelo namorado ao ver aqueles casais enfim criarem coragem de se beijar e tocar com o mesmo carinho e a mesma proximidade dos outros. Não resistiu e puxou Aquário pra mais um beijo, a espontaneidade de um cara explodindo de orgulho.

Aquário até poderia mimetizar o sistema, mas quando é que ele perderia a chance de se manifestar contra ele? Nunca!

De volta aos estudos…

— Olha, eles ficam dando sobremesa na boca do outro… — Pontuava o aquariano — Eu acho engenhoso porque dá pra provar dois tipos de uma vez…

— Só não me peça pra fazer o aviãozinho… olha o disco voadooooor! — Gêmeos ofereceu um pouco de seu crème brûlée. Aquário revirou os olhos e riu, oferecendo seu sorvete artesanal com calda em troca.

Quente e frio. Contraste gostoso. Cumplicidade gostosa. Era até meio difícil abocanhar o doce na colher quando os lábios insistiam em sorrir e as vozes se esmeravam em gracejos. Era uma cena tão boba…! E, no entanto, aquela coisa tão pequena lhes trazia um conforto que não poderiam imaginar. Sempre se riram de casais apaixonados na sorveteria ou que davam pipoca um ao outro no cinema… mas não é que ser bobo com a pessoa certa era divertido?

No fim das contas, as sobremesas ficavam em segundo plano… os outros casais, em terceiro. O que mais interessava era fazer o outro rir, era se defender da zoação, era fazer brilhar mais os olhos diante de si. Era desfrutar da companhia de forma genuína, sem medo do ridículo, sem medo do afeto.

Ao término do jantar, Aquário se aproximou de Gêmeos e lhe mostrou um comprovante de reserva de outro estabelecimento, cochichando em seguida:

— O Dia dos Namorados mainstream normalmente termina num motel…

— Pelo visto nossos estudos vão continuar a sós… — Gêmeos lhe deu um sorrisinho.

Beijaram-se mais uma vez, desta vez em um tom de promessa. Aquário entregou o voucher da promoção ao garçom e deixou o recinto de mãos dadas com Gêmeos — se um último gesto de “estudo antropológico de casais mainstream” ou uma afronta aos casais que os observavem, Gêmeos não saberia dizer ao certo.

Afronta, provavelmente, mas com certeza também um apoio. Na mesa do canto, o casal de mulheres sorria com os dedos também entrelaçados.

 

000

 

O “Dia dos Namorados mainstream” havia terminado de uma forma bastante prazerosa para Gêmeos e Aquário. Clichês não eram ruins quando bem aproveitados. Pétalas de rosa, hidromassagem, champanhe, morangos, a famosa cama redonda com espelho no teto.

Uma selfie pós-sexo pra encerrar a noite (e despreocupar Câncer e Virgem quanto ao paradeiro dos dois) e finalmente se permitiram repousar, aproveitando o silêncio sonolento para processar o que haviam aprendido naquele dia. Era um tipo de comemoração tão corriqueiro que chegava a ser inusitado o ineditismo para aquele casal. Para um casal imprevisível, o comum é sempre inusitado. E, talvez por isso mesmo, acabasse sendo especial à sua maneira.

“A gente podia usar velas mais vezes…”, um sorrisinho bobo se desenhava nos lábios do geminiano. Aquele olhar castanho tornado áureo e rubro pelas chamas — no restaurante e também na cama — estava gravado em sua mente como se projetado insistentemente dentro de suas pálpebras cerradas.

“Da próxima vez rola de viajar como alguns casais fazem…”, Aquário se pegava pensando no futuro. Quem sabe um chalé com lareira, fondue? Imaginava se uma lareira acesa tornaria a lhe proporcionar a visão daquele corpo pálido enrubescido pelo fogo que ardia fora e dentro, as chamas vacilantes se refletindo nos olhos desiguais.

Clichês não eram necessariamente tão ruins de vez em quando… tendo a companhia certa, claro. E, pensando bem, imaginar o mesmo parceiro dali a um ano não era tão assustador assim.

Adormecidos corpos e mentes, os dedos permaneciam entrelaçados.



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