A Criança Pesadelo escrita por Lirah Avicus


Capítulo 3
O Esquisitão da Rua Baker




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John Watson estava sentado em silêncio. Olhava para o nada. Tinha olhos distantes.

Gregory Lestrade estava sentado em espera. Olhava para a porta de onde a qualquer hora poderia irromper seu superior, pronto para arrancar-lhe a cabeça. Ele não devia estar ali.

E Thomas Gregson estava sentado em agonia. Olhava para a mesa vazia na cozinha logo à sua frente. Estava morrendo de fome.

—Pare com isso. — Lestrade cutucou-o.

—Não estou fazendo nada.

—Está tremendo o joelho. Pare.

—O joelho é meu.

—E por isso será bem menos doloroso arrancá-lo.

—Calem a boca. — ordenou John, que retesou-se em antecipação quando um vulto passou diante dele.

Sherlock vestia agora seu costumeiro roupão. Perfeitamente alinhado e ereto, caminhou graciosamente até o sofá ao lado da porta, e subiu nele. Estudava agora a parede, que tinha papéis, fotos escuras e anotações que, sem explicações prévias, eram incompreensíveis. Anotou algo a mais, despegando um alfinete de seu roupão e fincando nova foto, que parecia um retrato do Serpentine.

—Você... — murmurou Lestrade. — Já montou um quadro sobre o desaparecimento?

—Você não? — disse Holmes sem se virar. Gregson cutucou o amigo com o cotovelo, repreensivo. Lestrade devolveu o cutucão, e começariam uma briga ali mesmo, não fosse o olhar repreensivo de John. Sherlock suspirou profundamente. — Abberline teria feito um quadro...

Ele desceu do sofá, indo até sua mesinha, procurando algo entre seus papéis. Gregson se levantou, agitado, vendo algo que interessou-o e caminhando até o guarda-pó, e Holmes acompanhou-o com os olhos.

—O que é essa coisa? — Gregson perguntou, estendendo a mão.

—Toque e você morre.

Gregson enfiou a mão no bolso, olhando os colegas de modo assustado.

—Vai gostar de saber que Abberline foi encarregado do caso de Rosie. — diz Watson.

Sherlock aperta uma folha entre os dedos ossudos.

—Maldição...

—Não gostou de ouvir isso?

—Claro que não. Ele é um problema, uma fábrica de problemas.

John deu de ombros.

—Parece você.

—Mas você falou bem dele... — começou Lestrade.

—Compartilhamos uma admiração muda e distante, mas somos como gatos de bairros diferentes... — Holmes olha para o teto, imaginando se aquela era uma boa comparação. Dá de ombros, deixando assim mesmo. — Não é bom nos cruzarmos...

—Acredito que ele será útil. — afirma John. — Ele foi ao Hyde Park antes de todos nós.

—É lógico, ele possuía informações antecipadas, eu tive de me inteirar de tudo hoje à tarde.

—Como soube?

—Eu estava... — Sherlock pensa rapidamente. — Passando pela Scotland e calhei de vê-lo, Watson. Fiquei imediatamente alarmado, e procurei informar-me a respeito.

—Em outras palavras... — começa Lestrade, gesticulando na direção de Holmes. — Você estava disfarçado xeretando pela delegacia, procurando e coletando informações que de outra forma não iríamos lhe dar, daí você viu Watson e, temendo que ele o reconhecesse, foi descobrir do que tudo se tratava por outros meios menos chamativos.

Holmes sorriu desdenhosamente.

—Precisamente.

Lestrade aquiesceu, sacudindo a cabeça.

—Abberline sabe que você está investigando?

Sherlock baixou a cabeça, murmurando qualquer coisa. Gregson ainda estava intrigado com o estranho objeto sobre o guarda-pó. Parecia uma caixa, mas tinha pequenos furos em sua fronte.

—O que é essa coisa?

Holmes encarou-o, ficando visivelmente impaciente.

—Poderia retornar ao seu lugar no sofá? Está molhando meu tapete... — Holmes olhou para os outros. — Aliás, todos estão...

—Ora... Você não nos deu nada para nos secarmos! - protesta Lestrade.

—Por que meu desejo é que vocês vão embora.

—Mais uma invenção sua? — diz Gregson, distraído, ainda apontando para a caixinha preta.

—Tudo bem. — John se levanta. — O que já sabe?

—O que você sabe? — Holmes rebateu. John começou a gaguejar. Sua garganta se secara.

—Eu não sei nada...

—Não seja estúpido, você estava lá. O que você viu?

—Nada.

—Quando viu sua filha pela última vez?

—Eu... Contei uma história a ela. Ela adora histórias de monstros. Eu contei a ela e...

—Histórias de monstros? — Gregson pergunta. — Isso é apropriado para uma menina?

—E a coloquei para dormir. — John ignora o policial. — Eu a cobri, a beijei, dei-lhe boa noite, fechei a porta e... Foi isso.

—Quem estava na casa com você?

—Mary e as duas empregadas. Elas foram dormir no mesmo horário que eu e Rosie...

—Sei, sei, já falei com elas.

—Mas Mary está na mãe, eu a mandei para lá.

—Eu falei com as empregadas.

Watson assentiu. Lestrade ergueu uma das mãos.

—Precisamos de um suspeito inicial. Algum lugar por onde começar. Sem isso ficaremos andando em círculos.

Holmes dá de ombros.

—As empregadas falaram de um mendigo.

Lestrade cerrou os olhos.

—Um mendigo?

—Sim. — Sherlock coloca as mãos no bolso do roupão. — Um homem maltrapilho que estava rondando a rua mais vezes que um mendigo comum o faz habitualmente. Elas se incomodaram, mas não o suficiente para chamar a polícia ou alarmar os vizinhos. Eu ia começar a investigá-lo amanhã... De manhã.

—Tem uma descrição dele?

—Sim. — ele tira um papel do quadro na parede. Estende-o para Lestrade. —  Tome.

Lestrade se levanta. Olhava a foto de modo desconfiado.

—Vai me dar a foto?

—É um retrato falado. Pude produzi-lo após conversas com... Meus contatos nas ruas. Sabe que tenho muitos.

—Sei... — Lestrade olhava ora Holmes, ora o retrato. Sabia que havia algo errado. Queria pescar algo no ar, mas infelizmente não era bom nisso. — Mas e você?

—Memória eidética. — Sherlock sorriu. — Tenho-o desenhado na mente.

Os dois se entreolharam algum tempo. O silêncio era palpável.

—Que maravilha! — exclama Gregson, pegando o papel das mãos de Holmes. — Saímos para investigar e ainda ganhamos um doce! Vamos começar a procurar este meliante imediatamente! — Gregson encara Holmes, orgulhoso. — Também temos muitos contatos.

—Não duvido.

—Venha, Gregory! — Gregson parou na porta. — Temos de comer, dormir e depois caçar um sequestrador.

—Claro. — Lestrade disse sem convicção. — Espero que entenda que também queremos ajudar, Det. Holmes.

—Ah... — Holmes pareceu ofendido. — É óbvio que entendo. Adoro vocês.

—Cuide-se, Watson. — diz Lestrade, começando a seguir Gregson.

Os dois detetives se retiram descendo as escadas. Holmes os observa descer. Seu sorriso desaparece.

—Vocês deveriam saber o tipo de pessoa que dá doces sem pedir nada em troca...

Ele fecha a porta, encostando-se nela, meditando. John solta um suspiro.

—"Adoro vocês"? — repetiu, incrédulo. — Impressionante ter convencido Lestrade com algo tão ridículo.

—O intelecto dos dois é ridículo.

—Seu hipócrita.

—Não posso avançar com duas pedras gigantes bloqueando o caminho.

—E o retrato falado?

—É verdadeiro. — Holmes caminha pela sala, mãos nas costas. — Eu mesmo o desenhei... Baseado no czar da Rússia.

—A Rússia não tem mais czares.

—De qualquer forma, andarão em círculos, e melhor, longe de mim.

—Então o que você realmente descobriu?

Sherlock respirou fundo.

—Você sabe que sou uma pessoa puramente lógica.

—Sei.

—Eu procuro explicações, não me atenho a medos supersticiosos ou a qualquer outra tolice desta natureza.

—Eu sei disso.

—Não há nada que não possa ser explicado pelas leis naturais, ou pela simples razão.

—Holmes, seja direto.

—Eu vistoriei sua casa, Watson. Eu a estudei, piso por piso. Passei horas de joelhos, debaixo de camas e mesas... E posso afirmar, contra toda a lógica, que Rosie não saiu de sua casa até agora.

John sentiu algo como um balde de água fria caindo sobre sua cabeça, e escorrendo por suas costas. Sua voz mal saiu à seguir.

—Ela está em casa?

—Não.

—Mas... Você acabou de dizer que ela não saiu.

—As duas afirmações estão corretas.

—E você pretende associar as duas de forma compreensível em algum momento?

—Em algum momento, certamente.

—Quando?

—Estou trabalhando nisso.

—Como?

—Não sei ainda. Mas sei por onde começar.

—Por onde? — John abre os braços, exasperado.

Holmes caminhou até seu quarto. John o seguiu, confuso. O grande detetive foi até a porta do pequeno banheiro que ali havia, e abriu a porta.

Watson quase caiu para trás. Era como se tivesse sido atingido por uma parede em movimento. Encarou o amigo, sem saber como reagir.

Holmes não mudou sua expressão calma.

—Por ela.

***

Spitalfields, Londres. 6 horas antes.

Frederick Abberline não estava de bom humor. Aliás, seu humor estava entre péssimo e esbofetear o primeiro bêbado sem motivo aparente. Caminhando por aquelas ruas imundas e cheias de párias da sociedade, como mendigos, trombadinhas e prostitutas, ele com certeza desejava estar em outro lugar. E estaria, não fosse Hiram Judge. O homem insistiu que Abberline resolvesse o caso dos três homens mortos no cabaré, apesar de o caso de Rosie Watson ter muito mais urgência.

—Quero saber quem os matou! — afirmou com sua voz de trovão. — Devemos isso às famílias, devemos isso aos repórteres, devemos isso ao povo de Londres!

—Desde quando o povo de Londres se importa? — Abberline riu. — Morrem pessoas o tempo todo, homens, mulheres, crianças, ninguém fala a respeito, ninguém se importa. É a beleza de se matar no East End, se fosse do lado de cá teríamos aqui na entrada duas dúzias de repórteres sedentos por respostas. Mas não temos. Por que é o East End. Por que são os bairros pobres, os bairros esquecidos.

—Se você desaprova tanto essa atitude por que você...

—Eram três homens feitos. Tomaram suas decisões, erraram, e pagaram com a vida. Por outro lado, uma criança sumiu. Ela não fez escolhas erradas, não pediu pelo que aconteceu de nenhuma forma, mas está desaparecida, e onde quer que esteja está com medo. É com ela e com sua família que tenho responsabilidade. E você sabe que não faço isso por causa de posição social ou fama, trabalho com o mesmo afinco em qualquer lugar.

—Eu sei disso. — Judge encontrava-se sentado em sua cadeira estofada de couro legítimo, e fumava, enchendo o teto de uma fumaça asfixiante e malcheirosa. — Resolva os casos. Resolva os dois.

—Como é?

—Não precisa se preocupar tanto com os assassinatos. Mas quero algo. Gaste o quanto quiser com a criança, mas me traga relatórios sobre os dois casos.

—Por que quer tanto saber quem os matou?

—Tenho meus motivos, mas estão acima do seu posto.

—Alguém importante andou aprontando?

—Não me irrite, homem, só faça seu trabalho e me obedeça.

—Você não entende? Não é urgente, eles já estão mortos!

—Acho que é você que não está entendendo quem está no comando, detetive! — Judge bate a mão na mesa, irritado. — Não pense que sua ficha o protegerá caso faça algo contra minhas ordens, ou caso não siga minhas ordens, ainda posso te colocar no olho da rua, destruir sua carreira e te contratar novamente para limpar privadas!

Abberline respirou fundo. Daí bateu as duas mãos sobre a mesa, dando um sobressalto involuntário em Judge, que segurou um gritinho. Ele se inclinou na direção do Chefe de Polícia, olhando-o fixamente.

—A única forma de eu sair de seu escritório para o olho da rua será quando eu mesmo pedir demissão e for pegar um coche rumo a Belfast para me juntar a guarnição da Pinkerton. Você não tem controle nenhum sobre mim, e só vou concordar em investigar os dois casos por que a criança merece que alguém que se importa cuide do caso. — ele aponta o dedo ameaçadoramente. — Mas se eu suspeitar que alguém está tentando sabotar minha investigação, como naquela outra vez onze anos atrás, eu largo tudo, entro para a Pinkerton e gastarei o resto de minhas energias para destruir você. Não me teste, Judge. Você não é tão estúpido.

Judge mordeu o interior da boca. Sem dizer nada, assentiu. E Abberline retirou-se de sua sala.

—Olá, cavalheiro... — disse a mulher de meia idade, de decote generoso e maquiagem forte, surgindo detrás do balcão e tirando Abberline de suas lembranças. Ela sorria maliciosamente, e brincava com um dos cachos de seu cabelo castanho. — Vai querer alguma coisa?

—Uma dose, por favor. — ele disse, olhando para a multidão que aumentava cada vez mais, num dos maiores bordéis daquele bairro. Sujo, mal iluminado, vil e proibido, mas como era o preferido de muitos membros do Parlamento e, diga-se de passagem, da Família Real, permanecia em funcionamento. Mesas espalhadas a esmo, bebidas por todos os lados, luminárias gigantes, mulheres escassamente vestidas servindo como garçonetes e damas de companhia, homens que bebiam, gargalhavam e assediavam as mulheres, e uma banda animada que tocava sem parar. O ar era sufocante e enfumaçado por conta dos charutos e cachimbos. Abberline pegou seu copo, que a mulher lhe entregou com uma piscadela, e entornou-o com naturalidade. O líquido desceu quente e ácido, mas o costume o fez menos incômodo. O detetive olhou novamente ao seu redor.

Pelo menos a banda tocava bem...

Sherlock Holmes entrou no bordel. Caminhava tranquilamente, pois aquele tipo de lugar já era seu velho conhecido. Não por que gostasse do entretenimento oferecido ali, mas por que as informações e pessoas mais valiosas para seu trabalho se encontravam exatamente em lugares como aquele, apesar de sua péssima notoriedade. Pegou um copo que estava numa bandeja carregada por uma das garçonetes, que soltou uma risadinha provocante na direção dele. Ele prosseguiu caminhando, procurando não chamar a atenção para si, observando a todos e evitando os que poderiam lhe causar problemas. Vestia-se como um cavalheiro de classe média, sobretudo e belos sapatos, e retirara a cartola ao entrar, demonstrando respeito em um lugar onde não havia respeito algum. Sentou-se numa cadeira mais afastada, próxima aos jogadores viciados em pôquer, que jogavam e brigavam, mais brigando que jogando, e quedou-se a observar todo o lugar. Pensava profundamente, e talvez fosse nos acontecimentos que antecederam sua decisão de visitar aquele lugar no início da noite.

Ele vira John Watson na Scotland Yard. Isso o preocupou. Especialmente por que, ao estudar o rosto do amigo a uma distância segura, deduziu rapidamente que o problema era Rosie. Ela sumira. Ele tinha certeza disso. Portanto retirou-se rapidamente, iniciando imediatamente sua investigação, com o intento de unir John a si quando o momento fosse mais propício.

Passara a tarde na casa dos Watson. Aproveitando-se da ausência do casal Watson e do aval das empregadas, que sabiam pouco ou nada sobre o que realmente acontecera, ele vistoriou toda a casa, estudando cada pequeno canto, incluindo sótão e porão. O que terminou deduzindo não o satisfez, assim chegou à conclusão de que teria de investigar mais. Estava no quarto de Rosie, estudando a poeira ao redor da janela, quando empurrou a cortina e notou um homem em frente a casa, do outro lado da rua. Este observava a casa do Watson, fumando seu cigarro feito à mão. Holmes cerrou os olhos, vendo cinzas acumuladas aos pés do homem. Ele passara muito tempo ali. Seu casaco era puído, com manchas de bebidas fortes, mas estava lavado, o que indicava vida devassa e uma esposa fiel. Seu chapéu era antigo, o que indicava poucas posses. As cinzas acumuladas e o cenho descontente do homem apontavam que estava ali à mando de outrem, e uma pequena marca num dos lados de seu casaco indicava que estava armado. Estava apoiado num dos postes de iluminação, demonstrando cansaço pelo longo tempo na posição ereta. Holmes não teve dúvidas. Era um capanga enviado para vigiar aquela casa.

Sherlock fechou a cortina. Seu rosto denotava confusão. Olhou o quarto mais uma vez. As peças estavam lá, mas não pareciam fazer parte do mesmo jogo. Só havia uma maneira de descobrir se aquele homem tinha algo com o desaparecimento de Rosie ou se era algum criminoso vingativo querendo que Watson prestasse contas por alguma investigação que fizera com Holmes.

Holmes seguira o homem o resto da tarde. Fizera isso saindo da casa dos Watson pelos fundos, virando seu casaco do avesso, colocando um dos chapéus de Watson e pegando uma de suas bengalas. Daí em diante era um pobre homem manco, talvez um veterano ferido de guerra, que andava encurvado e pedia esmolas. Acabou por ver o homem entrar num dos muitos bordéis de Spitalfields, e decidiu voltar lá melhor vestido, com o fim de que se confundisse com a multidão de homens devassos e abastados que encheriam aquele lugar quando o sol se pusesse.

E lá estava ele agora. Sentado, ainda sem beber o copo de gim que pegara.

Diante de seus olhos o homem surgiu. Estava com outros três, era um grupo com certeza. Eles assediaram algumas das mulheres, beberam um pouco, até que o homem em questão, visivelmente o líder do grupo, fez sinal com a cabeça e eles saíram caminhando, atravessando o salão e indo para detrás de uma cortina.

Sherlock virou seu copo garganta abaixo, levantou-se e foi na mesma direção que os homens.

Abberline observava a garçonete à sua frente. Ela tinha o cenho assustado, e parecia tremer por detrás do balcão. Ele não queria ter chegado a esse ponto. Mas quando perguntara pelos três homens mortos num cabaré próximo, ela sorriu, inclinou-se na direção dele com o fim de mostrar-lhe seus dotes, e disse que não sabia de nada.

—Mas se você for bem malvado, — ela disse. — pode arrancar algo de mim.

Abberline sorrira. Daí meteu uma das mãos no bolso interno de seu casaco, tirando uma foto e mostrando a ela. Era uma foto da cena do crime, com os três corpos em evidência.

—Isso é malvado o suficiente para você?

A mulher gaguejou. Encarou-o algum tempo, sem saber o que dizer.

—O senhor é... É policial?

—Isso importa?

—Eu não sei... Não sei!

—Conhecia estes homens?

—Eram clientes assíduos. Mas nunca perguntamos nada, sabe disso.

—O que você sabe?

A mulher olha ao redor, daí faz sinal com a cabeça para detrás de Abberline.

—Vê aquele homem? O de bigode cor de ferrugem?

Abberline vira-se discretamente.

—O que tem ele?

—Trabalhavam juntos, todos eles. Não sei para quem trabalhavam. Mas estão sempre juntos, conversando e uma vez todos se juntaram para bater num outro sujeito. É tudo o que sei.

Abberline assentiu com a cabeça, colocando duas notas sobre o balcão. A mulher sorriu brilhantemente.

—Qual é seu nome?

—Georgie.

—Obrigado, Georgie. Posso precisar novamente de sua ajuda.

—Quando quiser, bonitão.

Sherlock caminhou até a cortina, passando por ela sem ser percebido e vendo-se num longo corredor de madeira velha, que levava a uma porta fechada. Ele caminhou até ela, encostando o ouvido e esforçando-se para isolar o som que vinha de detrás da porta de todo o resto que vinha de fora.

—Escreva aí que já estamos com ela, — dizia uma voz gutural. — e que vamos querer pagamento adiantado, ou a entregamos fatiada dentro de uma bolsa.

—Mais alguma coisa? — disse uma voz mais fina e anasalada.

—Não, isso é tudo... Mas que escrita porca é essa? Escreva direito, sua anta!

—Quer escrever no meu lugar?

—Sabe que minha letra é horrível!

—Calem a boca! — ordenou uma voz mais grave e autoritária. — Está ótima do jeito que está, desde que sirva a seu objetivo. Quero me livrar logo dessa maldição. Não quero mais nenhuma baixa por causa dela... O que estão esperando, minha benção?

Som de passos. Holmes tira sua arma do casaco, postando-se ao lado da porta. A porta se abre, ele derruba o primeiro que era pequeno e magro com um soco certeiro e aponta o revólver contra o queixo do maior e mais parrudo. O homem encara-o espantado, recuando de volta para a sala, um lugar pequeno e iluminado por velas em cantos estratégicos. Lá dentro havia o homem que vigiara a casa dos Watson, dois homens grandes e barbudos, e um pequeno rapaz de cabeça raspada, amarrado numa cadeira e com a cabeça caída para frente. Holmes apontou a arma para o líder.

—Boa noite, cavalheiros. — disse com um leve curvar. — Estou aqui para descobrir o que estão tramando com respeito a John Watson e para enviá-los para a cadeia. O que querem que eu faça primeiro?

—Não queremos nada com John Watson. — disse o líder, denotando desprezo.

—Então o que fazia em frente à casa dele?

—Eu queria fumar.

—Mentira.

—Eu sei quem ele é. — disse um dos homens grandes. — É aquele detetive que sabe o que você está pensando.

—Sherlock Holmes. — disse o líder entredentes. — Como nos achou aqui?

—Sorte. — Holmes respondeu.

O líder sorriu.

—Mentira.

Holmes se aproximou do rapaz amarrado, que tinha um longo lençol sobre seu corpo, e começou a desamarrá-lo, sem nunca deixar de apontar o revólver para os homens.

—Sim, é mentira. Na verdade é por que vocês são idiotas mesmo. — ele soltou as mãos do rapaz, que tremia. — Vou tirá-lo daqui, jovem, não se preocupe.

O rapaz encarou-o, e Holmes teve um sobressalto. Aquilo não era...

Abberline caminhou na direção da cortina grande e vermelha, para onde o homem que a garçonete havia indicado fora. Esperava fazer uma abordagem sem muito alarde.

—Ei! — exclamou um homem para Abberline do outro lado do salão. — Eu te conheço!

Abberline virou-se para olhá-lo, quando, de repente uma nuvem de poeira e lascas de madeira irrompeu cortina afora, derrubando vários homens e mesas. Algumas mulheres gritaram. No meio dessa poeira estava Sherlock Holmes lutando contra pelo menos três homens. Ele se levantou, pegando uma cadeira e espatifando-a nas costas de um homem grande e parrudo, que desabou no chão.

—Holmes?! — Abberline exclamou, estático. Holmes encarou-o, coberto de pó, daí foi agarrado por trás, um dos homens tentando estrangulá-lo.

Frederick ia fazer algo quando de dentro da cortina saiu um rapaz baixo e muito franzino, de vestido, e disparou por entre as mesas, tendo o homem que Abberline queria a persegui-lo com uma arma na mão junto com outro capanga. Abberline tirou um revólver do casaco, apontou com cuidado e acertou o capanga, que caiu imediatamente morto. Rapidamente atirou também na mão do homem, ferindo-lhe a mão e derrubando-lhe a arma. O rapaz se abaixou entre as mesas, escondendo-se, enquanto que o homem virou-se, espantado, vendo Abberline ao longe, mas, quando Abberline ia atirar novamente, foi agarrado por um homem grande que tinha um pedaço de pau numa das mãos. Este acertou-o nas costas, derrubando-o no chão. Abberline foi se arrastando, fugindo dos golpes seguintes, até que teve tempo de se levantar.

Sherlock livrou-se do homem que o estrangulava, virando-se e acertando-lhe um chute na boca do estômago, e um soco forte no rosto. Vários homens se aglomeraram ao seu redor, e ele jogou-se debaixo de uma mesa, pegando um acendedor de lareira antes que um dos homens o agarrasse pelos pés e o puxasse de volta. Ele acertou o primeiro homem no rosto, o segundo agarrou o acendedor, puxando-o. Holmes usou isso para se levantar, usando o ímpeto para acertar o rosto do homem, que cambaleou para trás. Holmes deu um passo atrás, chocando-se contra alguém e brandindo o acendedor.

—Em mim não! — berrou Abberline, abaixando-se. Os dois se entreolharam, daí lançaram-se contra os homens que os cercaram. Holmes atingiu um homem na cabeça enquanto Abberline fechava uma tesoura no pescoço de outro, sufocando-o e deixando-o inconsciente. Ele agarrou outro por trás, empurrando-o na direção de Holmes, que acertou-o com um soco inglês. Sherlock saltou por cima de outro homem, fechando os braços ao redor de seu pescoço, forçando-o a se curvar e Abberline acertou-lhe um chute na testa.

O líder caminhava entre as mesas, sem se aproximar da luta que fervilhava perto do balcão. Olhava debaixo de todas as mesas, procurando seu prêmio. Finalmente o viu, disparando a correr em sua direção.

Holmes derrubou outro homem, tendo tempo de ver a perseguição que se estendia entre as mesas. Viu o rapaz franzino atravessar o salão, correndo escadas acima, tendo o líder a persegui-lo. Holmes trincou os dentes. O que o rapaz vestia não era um lençol. E aquilo não era um rapaz...

Um homem pegou uma das mesas, lançando-se contra Abberline, que foi jogado contra o balcão. Holmes puxou o homem pelo colarinho, batendo-o contra a parede e deixando-o inconsciente, daí correu escadas acima, perseguindo o líder que perseguia a moça de cabeça raspada. Passou por vários homens e mulheres que se encolhiam contra as paredes, logo avistando o líder.

A moça entrou em um dos amplos quartos do andar de cima, fechando a porta atrás de si e tentando trancá-la. Antes que pudesse fazer isso, o líder abriu-a num chute, jogando-a no chão. Ele pegou-a pelo pescoço, atirando-a contra a parede com força. Sherlock entrou no quarto nesta mesma hora, pegando a barra do paletó do homem e puxando-a para cima e para frente, envolvendo a cabeça do homem e dando-lhe um murro por sobre o paletó. O homem caiu no chão, forcejando para se livrar do paletó que enredara sua cabeça. Holmes levantou a moça pela mão, ainda sem acreditar que era realmente uma frágil dama.

—Venha comigo, senhorita.

A moça encarou-o, os olhos grandes e verdes, e aquiesceu imediatamente. Os dois saíram correndo para fora do quarto, pegando um corredor menos utilizado com o objetivo de sair pelos fundos. Estavam no meio do corredor quando um projétil passou ao lado de suas cabeças e veio a fincar-se na porta logo à frente. A moça gritou, e Holmes puxou-a com mais força, abrindo a porta e empurrando-a por ela, passando também e batendo-a contra o homem, o que fez seu nariz começar a sangrar. Eles desceram as escadas até a rua. O líder se recuperou rapidamente, correndo e saltando sobre Holmes, os dois desabando sobre o chão de pedras quadradas. O homem começou a tentar estrangulá-lo. A moça pegou uma garrafa de vidro que estava na rua e quebrou-a na cabeça dele, fazendo-o perder a consciência. Ela ajudou Holmes a se levantar, quando ouviram ruídos de briga vindos da outra.

Abberline caiu para fora do bordel, junto com mais dois homens, os únicos ainda conscientes. Os três se levantaram, e Abberline limpou o sangue do canto de sua boca. Os homens investiram contra ele, e ele quebrou uma garrafa na cabeça do primeiro, usando o que restara em sua mão para cortar com precisão cirúrgica o braço do segundo. Jogou o caco para o lado, dando um soco tão forte no homem que este caiu de cara contra as pedras. Ele endireitou-se, ofegante, vendo-se cercado de transeuntes curiosos. Ajeitou seu casaco, fazendo uma mesura exagerada.

—O show acabou! — disse, saindo andando entre pragas e intempéries. Estava com ainda mais raiva. Agora Sherlock Holmes também estava investigando seu caso. A dúvida era: qual deles?

***

—Então Abberline sabe que você está no caso... — Watson murmurou. — Mas quem é ela, afinal?

A moça estava sentada no sofá. Sentara-se no canto, encolhida, e olhava ora para Holmes, ora para Watson. Tinha um ar esquivo e assustado. Era muito magra. Tinha a pele extremamente branca. Usava um vestido com alguns rasgos na barra. E tinha a cabeça raspada.

—Deixe-me mostrar-lhe algo. — Holmes se levanta, indo até sua mesa e abrindo uma gaveta, tirando alguns papéis e colocando-os sobre a mesinha de centro, em frente a Watson.

John olhou os papéis. Eram desenhos nem um pouco primitivos. Pareciam terem sido feitos por um profissional. A moça encolhera as pernas para cima do sofá, e abraçara o próprio corpo.

Os desenhos eram simples, monocromáticos e realistas. E perfeitamente reconhecíveis.

—Isso é o Serpentine?

—Olhe o outro.

—Um jardim?

—Certo.

—O que tem isso?

—Ouviu falar de duas crianças que desapareceram a alguns anos, sob as mesmas circunstâncias que Rosie?

—Não. — John sentiu seu coração apertar.

—Um menino e uma menina. William Byers e Barbara Holland. Ele foi visto por último em frente ao Serpentine, e ela desapareceu após ir ao jardim de casa... — Holmes encarou o desenho. — Ela acertou até mesmo as flores do jardim dos Holland.

—Ainda assim...

—Por que não olha o terceiro desenho?

John pega a terceira folha, e os cabelos de sua nuca se arrepiam.

—Essa é... Minha casa.

—Foi o que percebi também.

—Como... Como ela fez isso? Como ela sabe? — ele volta-se para a moça, que se encolhe mais. — Você sabe onde ela está? Sabe onde minha Rosie está?

A moça tinha os olhos arregalados. Olhou para Holmes, como que pedindo ajuda. Não disse nada.

Holmes suspirou.

—Ela não fala.

—Mas ela tem que falar! — John se levanta, ainda tendo o desenho nas mãos. — Ela pode saber onde minha filha... — ele caminha até ela, desesperado. — Por favor, me ajude a achá-la!

—Ela já está fazendo isso. — Holmes se interpõe entre os dois. — Mas você está assustando ela.

—Ela que está me assustando! — John protesta. — Como ela desenha a minha casa sem saber de nada? E os outros lugares? Onde estão essas crianças?

—Vamos resolver isso. — Holmes se vira para a moça, abaixando-se em frente a ela. — Quando perguntei mais cedo se queria me ajudar você fez estes desenhos. E eles ajudaram muito. Mas você poderia... Ser mais específica? Onde estão as crianças? Onde está Rosie?

A moça encara-o fixamente algum tempo. Daí ela se levanta, indo até a mesa e pegando uma folha de papel em branco e um lápis. Ela ajoelha-se em frente à mesinha de centro. Começa a desenhar.

Os dois homens permanecem esperando que ela termine. John não suporta de ansiedade.

—O que está desenhando? — pergunta.

—Watson, pelo amor de Deus, deixe-a em paz para desenhar.

John volta a se sentar. Roçava os dedos uns nos outros nervosamente, controlando a respiração para não aparentar a tempestade que se desenrolava em seu íntimo. Quando ela terminou, ele soltou um suspiro de alívio. Os dois olharam o desenho.

—Isso parece alguma rua de Londres... — comenta Holmes. — Com alguns minutos posso atinar qual é.

John encara a moça, seus olhos implorativos.

—Ela está aqui? O que ela está fazendo?

A moça ergue os olhos para ele. Daí estende a mão, pegando a mão de John e escrevendo algo em sua palma. John olha o escrito.

Se escondendo.

—Se escondendo? — a confusão de John apenas aumenta. — Mas se escondendo do quê?

A moça volta-se para o desenho. Sem aviso, vira-o de cabeça para baixo.

Holmes observou o desenho, até que para, congelando. John permanecia sem entender nada.

—John...

—Eu não entendo... Isso é tão...

—John...

—O quê?

A moça coloca o indicador sobre uma parte escura do desenho. Antes de virá-lo, parecia uma árvore. Agora não parecia mais.

Era um monstro.

***

Sherlock olhava pela janela de sua sala em silêncio. Estava apenas ele e a moça. John fora ter com a Sra. Hudson, que ficou feliz em ceder-lhe um quarto para passar o pouco de noite que restava. Ele não queria dormir em sua casa.

—Este monstro é figurativo ou literal? — ele murmurou para si. Virou-se para a moça, inquiridor. — O que você realmente sabe? Por que aqueles homens a sequestraram? — a moça não falou nada. Apenas o observava e ouvia atentamente. Sherlock sorriu. — Você é uma ótima ouvinte. Pena que não é disso que preciso agora... — ele se senta, pensando profundamente. Olha-a, medindo suas palavras. — Você quer... Quer que eu a leve a polícia amanhã? — a moça tem um sobressalto. Começa a balançar a cabeça negativamente. — Eles podem levá-la de volta para sua casa. — a moça balança a cabeça com mais força. Ia se levantar do sofá, mas Sherlock a impede. — Então não a levarei. Pode ficar aqui, desde que seja discreta e não dê na vista. Pode fazer isso? — a moça faz que sim. — Excelente. — ele olha o desenho do monstro sobre a mesa. Levanta-se, pegando-o e pregando-o em seu mural. Queda-se a observá-lo, absorto em meditações. — O que isso tudo significa?

***

John fechara os olhos. Queria muito dormir. Estava exausto. Mas não conseguia. A visão daquele monstro, de olhos imensos e bocarra ainda maior, surgindo do nada onde antes havia uma árvore inocente, invadia sua mente sempre que fechava os olhos. Ele não conseguia relaxar. Só conseguia pensar em sua filha, e o que aquele desenho realmente significava. Olhou sua mão, onde ainda estava o que a moça escrevera.

Se escondendo.

John afundou a cabeça no travesseiro. Respirava entrecortado. Apertou os olhos.

Uma batida na janela trouxe-o de volta de seus pensamentos perturbadores. Ele se levantou, colocando os pés no chão e olhando em volta, para o negrume que era o quarto que a Sra. Hudson bondosamente lhe cedera. Estava no andar térreo, e sua janela dava para a rua. Ele caminhou até ela, abrindo-a. Um vento frio envolveu-o, e só agora ele percebeu que nevava.

Ruído de passos apressados. John saltou a janela, seguindo o som. Seu coração batia à galopes. A rua estava escura como nunca, pois todos os postes estavam apagados. Algo em si dizia que aquilo não era nada, que era só um gato vadio que viera pregar-lhe uma peça. Ele pensava nisso quando uma luz do poste se acendeu do nada. John deu um passo atrás. Estranhou aquilo. Caminhou mais um pouco, e o poste ao seu lado também se acendeu. À medida que ele caminhava, as luzes iam se acendendo, e isso era aterrorizante. Apenas por John ter coração de soldado ele prosseguiu caminhando. Era treinado para ignorar o medo. Era assim até viu uma sombra virando a esquina. Uma sombra pequena... E de maria-chiquinhas.

—Rosie! — John gritou, correndo como um raio até aquela esquina. — Rosie!

Ele virou a esquina, e seu coração praticamente parou de bater.

Uma silhueta ao longe. Preta. No meio da rua. Não havia luzes ligadas ao seu redor. Era grande e deformada. E imóvel.

—Onde está minha filha? — John gritou. A silhueta não se moveu. Watson sentiu seu rosto queimar de frustração e raiva. As luzes ao seu redor começaram a querer acender. — O que você fez com ela?

De repente a silhueta disparou na direção dele, ficando cada vez maior mas nunca mais nítida. John agiu sem pensar. Também disparou na direção dela.

—Devolva minha filha!!!

Todas os postes se acenderam de uma vez, cegando John com uma luz insuportável.

John se levantou, arfando e coberto de suor. Estava ainda em sua cama, no quarto da Sra. Hudson. E a janela estava fechada. E a luz dos postes estava acesa. E não nevava.

Watson afundou o rosto entre as mãos. Ninguém em Londres ouviu seus soluços e lágrimas...


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Notas finais do capítulo

Nota: Indico que confiram o trabalho de John Kenn Mortensen. Seus desenhos me inspiraram muito ao escrever este capítulo. Abraços apertados