A Criança Pesadelo escrita por Lirah Avicus


Capítulo 2
O Desaparecimento de Rosie Watson




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/721016/chapter/2

West End, Londres, Inglaterra. 15 de novembro de 1899.

—Algo está vindo... Algo com sede de sangue...

O olhar de John Watson era sinistro, e ameaçador. Ele encarava a garotinha à sua frente, que já estava apertando-se contra a cabeceira da cama, olhar aterrorizado, cabelo dourado preso em duas maria-chiquinhas, joelhos encolhidos, mãos puxando a colcha para cima de si. Seu rosto pintava-se de antecipação, e ela parecia não respirar.

—Seria o Pé Grande? — ela murmura, cuidadosa.

John cerra os olhos, esboçando um sorriso.

—Não é possível ver nada, está escuro demais, mas você pode ouvir se quiser... — ele leva a mão ao ouvido. — Ouça os ruídos que se espalham pela floresta... Bum... Bum... Bum...

—É o Pé Grande. — ela diz com mais confiança, ainda encolhida debaixo da coberta.

—Bum! — ele exclama, fazendo a garotinha ter um sobressalto, rindo por causa do susto. John aponta para o nada. — Lá está ele! Ele é grande, alto, e tem pés tão imensos que destroem quatro árvores de uma vez!

—É o Pé Grande! — ela batia palmas.

—Ele olha para baixo, vendo uma garotinha de chiquinha e de pijama, e pensa: "Hmm, ela vai servir como um lanchinho!"

—Oh não!

—Ele vai te pegar, o que você faz?

—Eu me escondo na escuridão! — ela fica de joelhos sobre a cama, pulando e fazendo as molas do colchão rangerem. — Enfio-me entre as árvores! Ele nunca vai me achar!

—Tem certeza disso?

—Tenho! É isso o que fiz!

—Ele olha ao redor... Mas para onde a garotinha foi? Ele tenta encontrá-la, sai arrancando árvores em busca da garotinha! — John faz mímica de arrancar algo. Faz sua voz mais gutural.  — "Onde está o meu lanchinho?" Ele logo percebe que não achará a garotinha, e solta um rugido frustrado, indo embora e derrubando mais árvores.

A garotinha comemora, erguendo os bracinhos e rindo.

—Estou à salvo!

John sorria enquanto a observava comemorar, mas de repente seu sorriso se desfaz. Ele parece assustado, e olha detrás de si.

—Ouviu isso?

A garotinha fica estática, olhando o pai e esperando o que ele diria em seguida.

—O que é?

—Algo... Estranho... Algo... Obscuro.

Ela se encolhe de novo. Pega a coberta, abraçando-a com todas as forças. John ergue os olhos para ela.

—Ele está vindo. Está se arrastando pelas paredes, apagando as luzes, escondendo-se debaixo da cama...

—O Bicho Papão... — ela sussurra.

—Ele está aqui! — a garotinha solta um gritinho. — Ouviu os barulhos do Pé Grande, e resolveu fazer parte da festa! Está bem atrás de você, o que você faz?

A garotinha ficou parada. Abraçava a colcha, a confusão visível em sua face.

—Eu não sei!

—John... — os dois olham para a porta, e vêem uma mulher de porte médio, loira, vestindo um longo roupão azul. — O que está fazendo?

—Eu... Bem... — John olha ora a filha, ora a esposa. A filha solta uma risadinha. — História de ninar.

—História de ninar? — a esposa, Mary Watson, estava chocada. — Ela parece mesmo com sono.

John abre um sorriso sem graça. Coça o bigode de modo constrangido, virando-se para a filha, que tinha os olhos arregalados voltados para ele.

—Hora de dormir. — ele diz num sorriso amarelo.

—Não! — ela prostesta. — O senhor tem que terminar a história!

—Rosamund Mary Watson... — diz Mary. — Acho que já chega das estórias do seu pai por hoje.

—Não são estórias. — diz a garotinha. — São "histórias". Papai viveu todas elas.

Mary coloca as mãos na cintura.

—Alguém não andou contando suas aventuras com um certo detetive para nossa filha, não é mesmo, John?

John sacode a cabeça, sem olhar a esposa.

—Claro que não.

Rosamund sorri.

—Só os decapitados.

—Quê?

—Hora de dormir, todo mundo. — John se levanta da cadeira, inclinando-se sobre a filha, cobrindo-a com a colcha amassada e dando-lhe um beijo na testa. — Terminamos essa história amanhã, tudo bem?

—História. — ela diz.

—História. — ele repete, sorrindo.

—Por que é real.

—Claro que é. — ele a beija novamente. — Durma bem, meu anjo.

Ele caminha até a porta, e observa Mary ir até a filha, abraçá-la e dar-lhe um beijo carinhoso na bochecha. Não conteve o sorriso.

—Boa noite, meu amor.

—Boa noite, mamãe.

Mary vai para o corredor, dirigindo-se para o quarto do casal. John começa a fechar a porta.

—Papai?

—Sim, querida?

—Ele me pegou?

John encara a filha, confuso.

—O quê?

—O Bicho Papão. — o olhar dela era preocupado. — Ele me pegou?

—Claro que não.

—Eu não soube o que fazer. — ela baixou o olhar. — E se ele vier me pegar?

—Você sempre terá uma arma secreta.

—Qual?

—Eu. — ele pisca para ela. — Amo você, docinho.

—Também te amo, papai.

John apaga a luz e fecha a porta. Quedou-se parado algum tempo no corredor, pensando em alguma coisa, daí dirigiu-se para seu quarto. No meio do caminho, deparou-se com Susan Murdoch, a governanta.

—Ah, Sr. Watson... — ela tinha sardas escuras sobre as maçãs do rosto. Seu vestido negro com babados brancos, típico das governantas de respeito, estava perfeitamente limpo e passado. Susan inclinou levemente a cabeça. — Estava indo ver Rosamund antes de ir dormir.

—Não se preocupe, já coloquei ela na cama. — ele disse.

—Ah...

—Pode ir dormir sem problemas. — A governanta franziu o nariz, parecia querer dizer mais alguma coisa. John coloca uma mão na cintura. — Quer dizer mais alguma coisa, Susan?

—Andou contando alguma de suas estórias a ela?

—São histórias... Quero dizer... Ela gosta que eu as conte... E por que está perguntando?

—Por nada. — Susan curva-se educadamente. — Boa noite, Sr. Watson.

—Boa noite. — ele disse entredentes, entrando em seu quarto e fechando a porta. Colocou seu pijama entre resmungos para si mesmo. Imaginava se todas as governantas eram impertinentes daquela forma, ou se aquela era uma qualidade única de Susan.

—Incomodado novamente com a governanta?

—Não.

Mary encarou-o. Tinha o rosto incrédulo. Abaixara o livro que lia, e esboçou um sorriso.

—Temos... De melhorar suas habilidades em mentir.

—Não preciso melhorar nada. — John enfia-se debaixo do cobertor felpudo. — Preciso de empregados que não necessitem de vigiar tudo o que faço. Preciso de pessoas ao meu redor que só... Me deixem.

—Me deixem? — Mary solta uma risota, arrumando o par de óculos sobre seu nariz. — Isso é uma expressão idiomática estadunidense?

—Provavelmente. — ele disse, afofando seu travesseiro. — São ótimos clientes.

Mary ergue uma sobrancelha.

—E falam de modo menos atraente que os catadores de lixo. Odeio o sotaque deles.

—Eu acho um pouco... Sensual.

Mary fita o marido, espantadíssima.

—Você precisa dormir, Sr. Watson. Boa noite.

John virou-se para o lado, com um meio sorriso. Adormeceu antes mesmo da esposa assoprar a última vela ainda flamejando. Tivera um dia cheio. Dormiu um sono sem sonhos.

No dia seguinte, levantou-se, e, como de costume, arrumou-se antes de descer para o desjejum. Penteou o cabelo, assim como o bigode, e riu-se lembrando da reação de seu melhor amigo ao vê-lo pela primeira vez com aquele pelo facial.

“O que é essa coisa debaixo do seu nariz?”

Ele desceu as escadas, apenas para encontrar Mary a trocar confidências com a empregada. Ao notar a presença do marido, virou-se para ele, sorridente.

—Vamos na minha mãe hoje.

—Oh, não... — ele murmurou, deixando os ombros caírem. A empregada se retirou, rindo discretamente. Mary não achou graça.

—Sua reação de desânimo exagerado não me demoverá de minha decisão.

—Não esperava que a demovesse. — ele se senta num gemido, levantando o pano de sobre a cesta de pães. — Afinal, aparentemente nunca a demovo de nada.

—Aparentemente? — ela ri desdenhosamente. — Coma logo, estou com pressa. Vou chamar um coche e espero que quando ele chegar você esteja no primeiro degrau da entrada. — Mary vai até o pé da escada, olhando para cima. — Rosie! Rosie, venha comer!

John prepara seu desjejum, enchendo sua xícara de café e passando manteiga num pãozinho.

—Deseja mais alguma coisa, Sr. Watson? — pergunta a empregada, que havia retornado.

—Não, Wendy, obrigado. — ele olha ao redor. — Onde está Susan?

—Provavelmente lá em cima, auxiliando Rosie a se arrumar.

John assente, começando a comer. Mary passa por ele, colocando seus pertences dentro de uma bolsa.

—Que planos tem para hoje? — pergunta sem olhá-lo.

—O que, além de ir para Tyburn? — Mary o olha repreensiva. — Tenho alguns assuntos a resolver na City, nada demais. Depois pretendo... Fazer mais coisas.

—Obviamente essas “mais coisas” envolvem um apartamento em Baker Street.

—Creio que você não se sentiria bem se envolvessem algum outro apartamento.

—Não tenho certeza. — ela responde, seca. — Aquele lugar e seu morador são quase que o equivalente a uma amante no seu caso. Rosie! Rosie, desça logo!

—Acho que ela já sabe para onde vai... — diz Watson para si mesmo.

—Não seja injusto, ela adora a avó! — Mary vai até a entrada, saindo para chamar um coche. John ainda come, quando Susan aparece, também se sentando.

John a olha rapidamente, daí a olha de novo, confuso.

—Susan, você já foi ajudar Rosie a se vestir?

—Ainda não, Sr. Watson. Por quê?

—Mary visitará a mãe hoje. — a governanta ia se levantar, mas John a impede num gesto. — Come primeiro. Logo Rosie descerá.

—Estes cocheiros só querem um emprego, por que trabalho mesmo... — Mary resmungava, indo novamente até o pé da escada. — Rosie! Mas por que ela não desce?

—Eu vou vê-la. — Susan se levanta, subindo as escadas.

—Susan, coma primeiro! — exclama Mary. Daí volta-se para o marido. — Por isso ela é tão magra.

John sorri, ao mesmo tempo mastigando os últimos resquícios de seu café da manhã, quando ouve Susan a chamar Rosie no andar de cima.

—Por que ela está chamando Rosie em voz tão alta? — pergunta.

—Susan? — Mary sobe um degrau. — O que foi?

—Não acho Rosie, senhora!

—John. — Mary o encara. — Ela deve estar se escondendo de novo.

—Pode deixar. — John se levanta, batendo os restos de pão de seu queixo e mãos. Sobe as escadas, ajeitando seu paletó. — Rosie! — exclama. — Rosie, apareça! — ele chega ao corredor, passando por Susan e indo até o quarto da filha. — Querida? Onde você está? — ele observa a cama desfeita, os brinquedos no chão, a penteadeira cheia de livros infantis. Olha debaixo da cama, detrás do cabide. Testa o guarda-roupa, que está trancado. — Rosie? Querida, eu sei que você não quer ir na sua avó, eu também não quero, mas é importante para sua mãe... Vamos lá, estou pressa, por favor... Rosie!

Ele olha ao redor. Não havia mais onde procurar. Foi quando notou algo na parede.

—Encontrou ela? — diz Mary, surgindo na porta. — O que foi?

John olha a parede, onde uma pequena depressão se apresentava. Ele pega a porta, colocando-a perto da parede. A depressão se localizava exatamente onde encostar-se-ia a maçaneta.

—Isso já estava aqui?

—O quê?

—Essa marca de batida. Como se alguém tivesse aberto a porta com força.

—Não sei. — o olhar de Mary era preocupado. — Por quê? John...

John se vira para o quarto, controlando a respiração.

—Rosamund Mary Watson, eu não estou brincando mais! — silêncio. John sente seu coração apertar. Ele pensa alguns instantes...

—John! — Mary sai correndo atrás do marido. — John... John, fale comigo!

—Alguém acordou ontem no meio da noite? — ele já estava na cozinha, onde a empregada e Susan se encontravam. As duas acenaram negativamente com a cabeça. Ele assente, e vai até a entrada, colocando seu casaco e chapéu, e pegando sua bengala. Mary posta-se ao lado dele.

—Querido, por favor, fale comigo.

—Vá para sua mãe e fique lá.

—O quê?! Não!

—Obedeça-me, Mary! Eu vou à Polícia.

***

Spitalfields, Londres, Inglaterra.

—Dêem passagem! Dêem passagem! — ecoava pelo corredor. — Deixem o chefe Judge passar!

Os policiais iam se afastando, permitindo que um senhor gordo, porém alto e robusto, passasse sem problemas, com seu semblante severo e sua bengala com ponta de osso. Ele adentrou por uma porta envelhecida, cruzando com mais policiais, encontrando-se num amplo espaço, sujo e cheio de cadeiras e mesas, e um grande balcão. Havia garrafas de bebida vazias sobre as mesas, cacos de vidro no chão, teias de aranha no teto, poeira sobre todas as superfícies e um cheiro pungente que era uma mistura de suor, gim e urina.

Hiram Judge coçou o nariz, imaginando como viveria sem seu bigode. Olhou ao redor de modo enojado. Como detestava cabarés...

—Abberline, está aí? — chamou.

—Aqui! — foi a resposta. Judge seguiu o som da voz, passando para detrás do balcão, indo para um cômodo menor, bem menos malcheiroso, mas bem mais empoeirado. Um tanto mórbido também, pois sobre o chão jaziam os corpos de três homens. Mortos. Com buracos de bala em suas testas. Ajoelhado ao lado deles, estava um homem, que observava a cena em silêncio. Judge aproximou-se dele, abrindo um meio sorriso. — Divertindo-se, Frederick?

O homem se ergueu, revelando ser bem mais altivo que o já alto Judge. Era alto e forte, e usava um longo sobretudo preto, alem de uma camisa branca e uma discreta gravata também preta. Seu rosto era sereno, sustentando traços agradáveis e aquilinos, queixo quadrado e anguloso, sobrancelhas grossas, bigode e barba bem aparados, e inteligentes e apertados olhos azuis. Frederick Abberline encarou o superior, o olhar curioso. Sorriu docemente.

—Pergunta idiota.

—O que já sabe?

—Estes homens são criminosos de baixo escalão. Empregados, comparsas, paus mandados, chame como quiser. Foram mortos por apenas uma pessoa, alguém que acredito que trouxeram para cá com algum objetivo obscuro. A pessoa reagiu, e visivelmente sobrepujou seus captores.

—Então foi um sequestro mal sucedido?

—Precisamente.

Judge coloca as mãos no bolso.

—Alguém desaparecido que devamos parabenizar a família?

—Não sei ainda. — Abberline leva a mão ao queixo. — Mas percebi algo curioso.

—O quê?

—Olhe os corpos. — ele aponta para cada um. — Vê as armas nas mãos dos homens? Cada um tem a sua.

—Sim, e daí?

—Acho que estas foram as responsáveis pelos disparos.

—Mas... Você não disse que foi um sequestro que deu errado? O que você está me dizendo parece-me mais um suicídio em conjunto.

Abberline lança um olhar desconfiado no chefe.

—Estou trabalhando nisso.

—Ei, moleque, não pode entrar aí!

—Det. Abberline? — gritou uma voz fina e infantil.

Abberline apressa-se para fora daquela sala, indo até o corredor e empurrando o policial para longe do garoto maltrapilho que ali se encontrava.

—Deixe-o, homem! — ordena o detetive. — Não sabe que este é o melhor meio de comunicação que existe?

—Desculpe, senhor.

Ele dá as costas para o policial e fita o pequeno rapaz de rua, de rosto imundo e roupas furadas.

—O que quer, garoto?

O menino tira do bolso um papel dobrado e puído, entregando-o ao detetive.

—Mensagem da Scotland.

Abberline abre o bilhete, lendo-o rapidamente.

—Cuide deste local, não quero ninguém que não seja da Scotland intrometendo-se por aqui. Tenho de voltar à Scotland.

***

Scotland Yard, Sede Central da Polícia de Londres.

John Watson estava sentado num dos muitos escritórios da sede da Polícia Metropolitana de Londres. Tinha as mãos juntas, o olhar duro, e seus pés batiam nervosamente sobre o piso de tacos. Estava num grau insuportável de ansiedade, e a demora em ser atendido apenas piorava sua situação. Arrependia-se agora de ter ido primeiro à polícia.

—Sr. Watson? — John se levanta, e é cumprimentado com firmeza. — Como vai?

—Olá... Pode me chamar de Dr. Watson.

—Sim, claro. — o homem se senta detrás de um mesa de tamanho médio. — Sou o Det. Frederick Abberline. Perdoe-me a demora, estava do outra lado da ponte quando me chamaram.

—Achei que enviariam o Det. Lestrade para falar comigo.

—Lestrade está ocupado em Marylebone. Assim como Gregson, se pretende perguntar dele.

—Não, eu...

—Fale-me do que aconteceu.

—Minha filha desapareceu, entre as 9 da noite e as 7 da manhã.

—Estava na sua casa?

—Sim.

—O senhor também estava?

—Sim, todos estávamos, eu, minha esposa, e as duas empregadas. Eu mesmo a coloquei para dormir, nós dormimos, e quando acordamos ela não estava mais lá.

—Procurou-a por toda a casa?

—Está de brincadeira?

—Já vi muitos pais desesperados dizendo que seus filhos tinham sido roubados, enquanto os pilantrinhas se escondiam numa porta debaixo da escada.

—Rosie não faz isso, ela gosta de brincar de esconder, é ótima nisto, mas ela sabe quando parar.

—Como ela sabe disso?

—Temos um trato, se eu disser seu nome completo, a brincadeira acabou. A coisa é séria.

—9 anos... — murmurou Abberline, lendo a ficha. — O senhor tem parentes na cidade?

—Não, apenas amigos e conhecidos.

—Alguém cuja casa Rosie se sentiria bem correndo para lá?

—Não... Ela não faz esse tipo de coisa.

Abberline o encara.

—Talvez faça se não tiver escolha.

—O que está dizendo? — John sente vontade de rir. — Está sugerindo que Rosie viu algum perigo dentro de casa, saiu de casa, no meio da noite, correu por Londres e foi para a casa de outra pessoa?

—Eu não disse isso. — Abberline para os olhos numa linha da ficha, cerrando-os. — O senhor sonhou esta noite, Dr. Watson?

—Como? Eu... Não.

—Procurou por toda a sua casa?

—Sim, ela não está lá.

—Se importaria se eu desse uma olhada?

—Claro que não.

Abberline se levanta, guardando a ficha no bolso interno de seu casaco.

—Peço que me acompanhe.

—Vamos agora?

—Sim, mora no West End?

—Precisamente.

—Quanto tempo à pé?

—Uns 20 minutos.

—De tílburi são 10, siga-me.

John seguiu aquele detetive com uma leve boa impressão. Sentiu algo bom nele. Algo familiar. Um instinto farejador, algo raro em qualquer pessoa, uma natureza caçadora, que ficou ainda mais clara quando entraram na casa dos Watson, e Abberline começou a olhar tudo, estudando todos os cômodos. Não tocou em nada, apenas empurrava um objeto ou outro com uma caneta, fazia perguntas aleatórias, e seguia para a próxima fonte de interesse. Ao chegarem no quarto de Rosie, ele também notou a marca na parede.

—O senhor fez isso?

—Não, notei esta marca apenas hoje de manhã.

Abberline encarou John de modo ilegível, mas pareceu preocupado. Foi quando seus olhos pousaram sobre o guarda-roupa. Caminhou até ele, forçando-o levemente.

—Trancado... — comenta.

—Sim, por isso nem me dei ao trabalho de checar. Tranco sempre o guarda-roupa, Rosie tem medo de dormir com a porta do guarda-roupa aberta.

—E como é que o senhor consegue trancá-lo por dentro?

John arregala os olhos, espantado.

—Eu não consigo... Quero dizer...

Abberline segura a porta do guarda-roupa, e num ímpeto arromba a porta, abrindo-a. Os dois homens olham seu interior.

—Doutor, eu tenho más notícias.

—Eu sei, ela não está aí.

Abberline se abaixa, esticando o braço.

—Não, não está. — ele se endireita, e John sente seu estômago revirar. Nas mãos de Abberline, ainda sem ser afiado, estava um machado. — Mas ela esteve.

***

—Você realmente chamou a atenção do Abberline. — comenta Gregory Lestrade, sentando-se ao lado de John. — Há muito tempo não o vejo tão absorvido quanto agora... Watson... Watson!

John Watson estava estático. Seus olhos parados fitavam o nada. Estava já há horas assim, nem mesmo almoçara. E Lestrade o sacudiu, temendo algo pior.

—O guarda-roupa estava trancado por dentro. — John disse, finalmente.

—O quê?

—Trancado por dentro. Ela se fechou nele. Mas como ela saiu?

—Pode haver uma saída secreta.

—Olhamos isso. Viramos aquela porcaria de cabeça para baixo, e não havia nada. Como... Ela se trancou nele, Lestrade? — John encara o bom detetive. — Ela se trancou nele. Por quê?

—Eu queria poder ajudar...

—Sei que não pode.

—Abberline é o melhor detetive que temos. É um mastim bem treinado. Para você ter uma ideia, quase o perdemos para a Pinkerton, isso só não aconteceu por que ele disse que queria resolver um último caso antes de se aposentar da Scotland. Você está em boas mãos.

—Eu preciso de mais que isso.

Lestrade aquiesceu, compreendendo.

—Vai chama-lo agora?

—Onde ele está?

—No necrotério, é claro. Nunca tive tanta pena de um cadáver.

John desceu as escadas, que à medida que se estendiam ficavam cada vez menos lapidadas e mais escuras. John sabia o por quê. Ele estava saindo da Scotland propriamente dita. Estava descendo ao mundo dos mortos.

O necrotério. Uma imensidão do que pareciam catacumbas, de teto baixo e ar pesado, onde a Scotland guardava temporariamente os corpos que encontrava pela cidade. Esperava até os parentes do morto virem buscarem para enterrá-lo, e se isso não ocorresse, enterrava-o assim mesmo, pois todo defunto merece seu lugar no campo santo. Claro que alguns corpos saíam do necrotério mais machucados do que quando haviam entrado, e isso acontecia por um motivo muito especial.

Lestrade foi até uma porta, abrindo-a. Soltou um ruído de decepção. Voltou-se para John.

—Que estranho... Ele estava aqui, tenho certeza.

John olhou dentro da sala, mas imediatamente se arrependeu.

Dentro da sala, pendurado por um dos tornozelos, estava o cadáver de um homem. Com certeza o morto não se incomodava, afinal sua condição eterna o impedia de se incomodar com alguma coisa, mas isso não vinha ao caso. Estava vestido, por sorte, mas a visão daquele corpo pendurado no teto fez John querer sair correndo para encontrar ar fresco. E pela expressão de Lestrade, ele queria fazer o mesmo.

—O que fazem aqui?

A voz era firme e imperiosa. John a conhecia bem. Thomas Gregson. Estava diante deles, vestido como um perfeito pintalegrete, e fumava seu costumeiro charuto. Lestrade foi o primeiro a falar.

—Não devia fumar aqui. Sabe que o formol é inflamável.

—Sou cuidadoso.

—Não, você não é.

—Procuram a aberração?

—Para onde Holmes foi? — pergunta John.

—Não sei. Não o vi sair. Quando percebi que ele estava pendurando aquele pobre diabo de ponta cabeça retirei-me rapidamente. Não tenho estômago para isso. Voltei só agora, e só encontrei vocês dois idiotas. Aliás, Watson, sinto por sua filha.

—Obrigado... Mas vamos encontrá-la.

—Claro que vão. — Gregson disse, balançando a cabeça. Puxa nova baforada de seu charuto. — Melhor vocês irem, por que quando Hooper vir o que Holmes fez aqui vai descontar no primeiro que encontrar. Vocês por acaso já almoçaram?

—Não. — diz Lestrade. Olha rapidamente a cena dentro do cômodo apertado, e volta-se para Gregson. — E não sei se algum dia almoçarei de novo.

Os homens concordam entre si, subindo as escadas e retornando à luz e ar fresco. Notam certa movimentação, e Lestrade barra um policial que colocava o casaco de seu uniforme.

—O que foi, homem?

—Um assassinato em Whitechapel... Como se isso fosse novidade.

John observa os homens saindo, um tanto decepcionado, e percebe que Abberline também se arrumava, mas sem tanta pressa. Dirige-se até ele.

—Aonde vai?

—Prosseguir com a investigação do desaparecimento de sua filha, doutor.

—O que descobriu? — diz Lestrade, surgindo ao lado de Watson.

—Detetive... — Abberline murmura, colocando suas luvas. — Achei que estava em Marylebone.

—Não há mais nada a ser feito por lá.

—Sei... Por que pergunta?

—Bem, eu me preocupo. Watson e sua família são amigos meus.

—Mais um motivo para eu não lhe dar informações. — Abberline levanta os olhos, esquivo. — Não estão pensando em investigar também, estão?

—Eu quero ajudar a procurar minha filha.

—Ajudará muito se ficar de fora.

Lestrade ergue uma das mãos, apaziguador.

—Abberline, Watson tem prática em trabalhar em casos policiais, ele trabalhou com...

—E eu tenho prática em trabalhar sem esse agravante. Sinto muito, doutor, mas com todo o respeito, prefiro que não se envolva nisso.

—Acha que não aguento?

Abberline abre um sorriso triste.

—Nenhum pai aguenta.

—Aonde vamos? — pergunta Gregson, surgindo entre eles.

—Vocês eu não sei, espero que para algum lugar que seja oposto ao meu.

—O quê? Mas podemos ajudar.

—Não.

—Podemos lhe dar informações. — os três homens pareciam crianças, e Abberline, o pai paciente.

—Não.

—É minha filha!

—Não! Fiquem de fora! — o detetive respira fundo. — Eu não quero saber de vocês investigando por aí, especialmente o senhor, doutor. E vocês dois, — Abberline aponta ameaçadoramente para os dois detetives. — é melhor eu não saber que estão incentivando o Dr. Watson a me desacatar.

Abberline sai andando, desaparecendo escada abaixo. John solta um suspiro frustrado.

— O que ele vai fazer?

—Ele farejou algo, ou relacionou àquele outro caso, lembra-se, Gregson?

—Sim, daquelas outras crianças.

—Houve outras crianças? — John se surpreende.

—Duas, mas faz muito tempo. Não deve ter nada a ver.

—Alguns anos, acho.

—Foi pouco depois que Abberline ficou famoso com aquele “outro caso”.

—Uma criança desapareceu no quintal de casa e outra no Hyde Park. Pais desesperados, grande cobertura midiática, o que mais atrapalhou do que ajudou, obviamente. Nunca foram encontradas.

—Que reconfortante...

—Desculpe.

—Acha que ele encontrou ligação?

Lestrade aponta para Gregson.

—Ele estava usando luvas.

Gregson bate as mãos de contentamento.

—Ele vai para o Hyde Park.

—Não podemos segui-lo, ele perceberia.

—E Judge cortaria nossas cabeças, entre outros membros.

—Vamos à noite. — diz John.

—Você quer ir ao Hyde Park à noite? — Gregson parecia horrorizado.

—Pelo amor de Deus, vocês são policiais!

—Mas não temos retardamento mental.

—Eu vou. — John sai andando. — Se quiserem me acompanhar, isso é com vocês.

—Você não sabe o que deve procurar, nem onde.

—Mas você sabe, Lestrade. Conhece o caso. Pode me ajudar?

Lestrade encara o amigo, pensativo. Daí assente.

—A que horas vamos?

Gregson solta uma gargalhada.

—E o Frederick preocupado em nós convencermos o Watson... Vou também. Não tenho nada melhor para fazer mesmo.

***

—Eu não devia ter vindo.

Gregson resmungara isso algumas vezes, enquanto os três homens, ele, Lestrade e Watson, caminhavam sobre a grama bem aparada próxima a Esquina do Orador. Estavam no Hyde Park, parque natural inglês que servia como fonte de sossego e lazer para os londrinos, além de um excelente lugar para se praticar esportes, caminhar, respirar ar puro e esconder corpos. Os homens tinham lanternas e estavam armados, para o caso de uma eventualidade, e caminhavam lado a lado, olhando ao redor todo o tempo. Era noite, e raios cortavam o céu, anunciando chuva vindoura.

John Watson caminhava em silêncio. Não pensava na noite. Nem na chuva. Nem na criminalidade, cujo percentual aumentava vertiginosamente durante a noite. Só pensava em sua filha. Tinha a arma no bolso e um mau pressentimento na mente, e isso de alguma forma apertava seu coração.

Gregory Lestrade caminhava de modo desconfiado. Sabia que era noite, percebera a vindoura chuva, e como bom policial, sabia que a criminalidade aumentava muito durante a noite. Seria bom mesmo se chovesse. Bandidos normalmente não trabalhavam debaixo de chuva. Olhara para o lado e viu a Esquina do Orador, lugar tradicionalmente reservado para, como o nome diz, pessoas darem discursos. Qualquer cidadão podia fazer discursos criticando qualquer um, com exceção da Família Real e do governo inglês. Para discursar, o orador tinha de estar sobre um caixote ou tablado pois, segundo a tradição britânica, o orador não pode estar sobre solo inglês, se o orador não estiver pisando em solo inglês ele estará isento das leis e tradições britânicas. Ele imaginava-se dando discurso, e enumerava todos que queria criticar.

Thomas Gregson não dava a mínima para a Esquina do Orador, para a chuva ou para os raios. Se preocupava com a criminalidade e não queria que seu corpo fosse jogado no Serpentine.

—Veja... — aponta Lestrade. — O Serpentine. É onde acreditamos que o corpo da primeira criança foi jogado.

Eles voltaram a caminhar, indo em direção ao lago artificial do Hyde Park, regado pelo rio Tâmisa, e assustadoramente profundo.

—Estamos fazendo papel de idiotas. — resmunga Gregson. — E se o Abberline veio aqui, e daí? Não sabemos o que ele procurava, nem o que achou, nem se ele achou mesmo algo.

—Gregson, se quiser ir embora, você tem minha benção!

—Só estou dizendo que a ficha do caso diz que a criança, um menino de 7 anos, foi visto aqui por mendigos, à noite, e sumiu. Desde então todos acham que aqui é mal assombrado. Não acham perigoso, e meio estúpido, nós virmos aqui exatamente no mesmo lugar e mesma hora que o menino sumiu?

—Era importante virmos na mesma hora que o crime ocorreu. — afirma John. — Pois podemos ver a cena da mesma forma como estava no momento do crime.

—Quem te ensinou isso, a aberração?

—Gregson, vai comer alguma coisa, você fica muito chato de barriga vazia.

Eles param na beirada do lago, quedando-se algum tempo a observá-lo. Gotas grossas começam a cair, e logo uma densa chuva abatesse sobre o parque, aliás, sobre toda a cidade.

—Isso foi um erro. — diz John. — Não devíamos ter vindo.

—Você diz isso agora? — exclama Gregson.

—Ouviram isso? — diz Lestrade.

—Eu estou desequilibrado, agi por impulso, mas não sou um líder nato.

—Obrigado, fala isso só depois de eu estar encharcado no meio do Hyde Park!

—Calem a boca! — Lestrade apontam a lanterna para além da grama. A luz reflete-se nas gotas de chuva, e fica difícil ver muita coisa. — Estão ouvindo?

—O quê?

Eles apontam suas lanternas, inconscientemente aproximando-se mais uns dos outros. Suas mãos tremem, e não é em virtude do frio.

—Eu quero ir embora. — murmura Gregson.

Neste momento um estalo vem detrás deles, eles se viram como um e soltam um berro em uníssono. Daí dão um passo atrás, abismados.

Diante deles estava um homem alto, magro, nariz adunco e maçãs do rosto bem desenhadas. Também segurava uma lanterna, vestia um sobretudo escuro e um deerstalker, e estava tão molhado quanto eles. John não conteve o espanto.

—Holmes?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!