três de bastões escrita por themuggleriddle


Capítulo 12
Taceant colloquia


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigado, Vika, Seren e gansey pelos reviews/comentários por fora hehe.
Postando hoje por motivos de 1) estou de férias e 2) hoje é Dia da Patologia, um dia estabelecido em 2014 pelo Royal College of Pathologist e todo ano ele vai mudando, descobri ontem que o dia em 2017 seria 15/11. É um dia pra divulgar a especialidade e celebrar a contribuição dela para a medicina, etc. Como minha influência em qualquer coisa é zero, o único jeito que eu tenho de talvez divulgar mais a patologia é escrevendo e não é conveniente que eu tenha uma história com um patologista precisando ser atualizada? kkkk



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De madrugada, Londres se transformava em uma cidade completamente diferente. As ruas eram um breu, com todas as luzes apagadas e as janelas tampadas por blackouts escuros. De vez em quando, um homem cambaleante ou uma mulher apressada aparecia nas calçadas, esgueirando-se por entre as sombras e parecendo apenas silhuetas sem um corpo sólido de verdade. O céu acima da cidade tinha uma cor escura que poderia ser chamada de preto, mas que, na verdade, tinha um discreto tom acinzentado. Feliks Ravenwood sabia muito bem que, por detrás do silêncio da noite, havia violência: facadas de um assalto, pescoços estrangulados depois de uma briga acalorada, automutilações nas horas mais silenciosas da madrugada, atropelamentos em meio a escuridão... Ele sabia que não era seguro andar pela cidade depois de um certo horário, mas aquilo não parecia importar no momento.

Eram três da manhã e a rua estava quieta e vazia quando Feliks Ravenwood chegou em casa. Ele estava exausto, seus olhos ardiam e sua cabeça doía de ficar tempo demais olhando para a luz do microscópio. Ele queria dormir e era exatamente por isso que, depois de deixar o necrotério, foi direto para o Hospital Westminster: ele queria se sentir cansado ao ponto de adormecer antes de se lembrar do que havia acontecido naquele dia e era isso que horas e horas vendo lâminas e limpando o laboratório do hospital lhe proporcionara.

O apartamento estava silencioso também. Na escuridão, ele podia ver a porta do quarto de Frank fechada e o resto do lugar parecendo em ordem. Pelo menos nada estava quebrado, ele pensou enquanto atravessava o cômodo para chegar no banheiro.

A água não pareceu lhe trazer nenhum tipo de conforto, mas Feliks ainda tinha a esperança de que o banho o ajudasse a ficar mais cansado e, consequentemente, acelerasse o sono. A perspectiva de estar em sua cama, quente e confortável, quase fez com que um sorriso aparecesse em seu rosto, até ele sair do banheiro e encontrar Frank Bryce parado no hall, olhando-o com uma expressão que o médico não tinha cognição suficiente para decodificar no momento.

“Aproveitou?” perguntou Frank, sua voz soando tão dura quanto naquela manhã e tudo o que Feliks pôde fazer foi piscar divagar, tentando entender o que o outro queria saber.

“O que?”

“Aproveitou o pub mágico?” Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas do jardineiro. “Você devia pedir à Srta. Fletcher pra alugar algum quartinho lá, para quando não quisesse encarar o jardineiro rabugento que mora com você.”

“Do que você está falando?” O médico estreitou os olhos, não acreditando que o homem continuava de mal humor.

“Não precisa se preocupar. Vou começar a procurar um lugar pra mim amanhã, aí não vai precisar mais ser incomodado por um trouxa.”

“Eu também sou trouxa,” disse Feliks. “Do que você está falando, Frank? Eu nunca disse que queria que você fosse-“

“Mas você se mistura melhor com eles, não é? Feliks Darius Ravenwood, bonito, alegre, com um nome e uma visão peculiar.” Bryce riu sem humor, sacudindo a cabeça e mancando até o armário da cozinha. O homem batucava com os dedos sobre o balcão enquanto abria uma porta para pegar um copo. “Yelena estava lá?”

“Onde?” Ravenwood insistiu. Sua cabeça estava trabalhando em uma velocidade incrivelmente lenta, fazendo com que tudo o que Frank falava não fizesse o mínimo sentido.

“No Black Siren, é claro.” O outro homem deu de ombros enquanto enchia o copo com água da torneira. Ele bebeu em dois goles e colocou o copo sobre o balcão outra vez. “Oh, por favor, não me diga que você não estava lá.”

“Eu não estava...”

“E eu sou um bruxo!” Frank riu e Ravenwood sentiu um nó teimoso se formar em sua garganta. Ele estava lutando contra essa sensação o dia inteiro, mas o tom de voz de Bryce e aquelas palavras estavam conseguindo empurrá-lo para aquilo cada vez mais. “Então, Yelena estava lá? Sobre o que vocês conversaram? Os efeitos da maldição da morte no corpo humano? Você pagou uma bebida para ela? Quer dizer, você é um médico, deve ter dinheiro para pagar bebidas para moças.”

“Frank, por favor,” Feliks falou, esfregando os olhos com as pontas dos dedos e entortando os óculos no rosto sem querer. “Eu não estava no Black Siren e não estava com Yelena ou qualquer outro bruxo.”

“Estava com o seu Inspetor Chefe, então? Ou com o seu Legista-Chefe? Eu nunca entendi, sabe, você é o Legista-Chefe?” ele perguntou. “Eu estava pensando, você às vezes acha que eu fiz aquilo? Eu posso ser aleijado, mas ninguém precisa andar direito para usar venen-“

“Pare de falar merda, Frank,” Ravenwood murmurou, fechando os olhos quando o outro acendeu a luz do cômodo.

Frank parecia irritado. Não era apenas o jardineiro reservado e rabugento que conhecera em Little Hangleton, mas um homem com ódio, alguém que passara tempo demais remoendo as próprias frustrações. Ele queria gritar com alguma coisa ou alguém e Feliks era a única pessoa por perto para servir de alvo. Mas o médico, pela primeira vez, não queria ouvir isso. Pela primeira vez em muito tempo, ele queria ser a pessoa a ouvir palavras reconfortantes como ‘vai ficar tudo bem’ ou receber um tapinha no ombro, o que era completamente diferente do chegar em casa e encontrar alguém que queria estar irritado com ele.

“Não seria nenhuma droga de surpresa se você falasse para o seu Inspetor que o principal suspeito do assassinato doido de East Yorkshire tem um humor incontrolável, ahm? Um homem instável bate com o perfil de um assassino, não bate?” perguntou Bryce, esbarrando a porta do armário com força e fazendo o médico se sobressaltar. O jardineiro olhou Ravenwood por um momento, franzindo o cenho. “Que diabos você tem de errado? Está com medo de um possível assassino manco?”

“O que eu tenho de errado?” o médico perguntou, respirando fundo e finalmente conseguindo se focar em algo. “O que eu tenho de errado, você quer saber? Eu estou cansado, Frank. Estou exausto e quero ir pra cama, mas eu preciso ficara aqui ouvindo você gritar e bater portas, me acusando de... de... eu nem sei do que você está me acusando!”

“Ah, agora você está irritado-“

“Aye, estou irritado. Você não é o único nessa casa com permissão para ficar mal, sabia?”

“Pare com isso.” Bryce deu uma risada de deboche, sua voz agora soando mais alta. “Com o que você pode ficar mal? Com o seu corpo que funciona perfeitamente bem? Com essa sua mente brilhante que te colocou numa maldita escola de medicina? O respeito por ser médico? O jeito que você abre pessoas mortas pra ganhar dinheiro? O jeito como você vê coisinhas coloridas quando tem magia por perto? Seu nome cheio de frescura?”

“Frank, cale a boca!” Ravenwood gritou, sentindo o rosto esquentar e as mãos tremerem. “Eu estou me sentindo mal porque eu fiz besteira, certo? Estou me sentindo mal porque, em menos de vinte e quatro horas, eu já tive uma pessoa me chamando de louco e incapaz de fazer o meu trabalho e outra me dizendo que os dez anos que eu estudei não foram nada, porque nem mesmo um médico de verdade eu sou! E essa última, aliás, foi dita por alguém que eu pensei ser meu amigo! Estou mal porque a primeira pessoa na qual eu consegui confiar nos últimos anos está me acusando de pensar que ele é um assassino ou achar que ele é inútil e descartável!”

O médico encarou Frank por um momento, percebendo que parecia difícil respirar. O nó em sua garganta estava ainda maior, mas ele continuava tentando engoli-lo o máximo possível.

“Estou mal porque eu só queria ouvir um ‘obrigado, Dr. Ravenwood, pelo seu trabalho’ ou ‘obrigado, Feliks, pelo chá e pela companhia’ de vez em quando. Estou mal porque eu acabei de perder uma das coisas que eu mais gostava na minha carreira,” ele continuou, odiando o fato de sua voz estar soando trêmula e seu sotaque parecer ainda mais pesado. “Porque eu tentei arriscar algo pela primeira vez em muito tempo e tudo o que eu consegui foi estragar tudo!”

Ele respirou fundo enquanto olhava Bryce, que agora parecia borrado, apesar dos óculos estarem em seu rosto.

“Então, aye, Frank, eu tenho as minhas razões para me sentir mal. Elas estão longe de ser uma perna machucada, memórias da guerra ou a perda de amigos, mas, no momento, elas estão me incomodando e eu gostaria que você não as diminuísse.” Feliks pressionou os lábios um contra o outro por um momento, tentando esconder o tremor discreto no lábio inferior, antes de continuar: “Então, por favor, só me deixe ir dormir.”

Quando notou que Frank não iria falar ou se mover, Ravenwood lhe deu as costas e foi para o seu quarto. Foi a sua vez de esbarrar a porta, deliciando-se com o barulho alto que esta fez. E, então, parado no meio do quarto, não ouvindo nenhum barulho vindo de Bryce e notando o que havia acabado de falar, o médico sentiu o próprio corpo tremer com uma crise incômoda de choro que ele estava contendo desde que o Inspetor Chefe Webster havia lhe dado a notícia de sua demissão.

Feliks permitiu a si mesmo chorar e soluçar o quanto quisesse. Ele não se importava que Frank o ouvisse e pensasse que ele era fraco ou algo parecido. Ele queria chorar até que aquele sentimento ruim fosse embora com as lágrimas, queria soluçar o quanto fosse necessário para que todo aquele ar pesado saísse de seus pulmões e queria deixar o seu corpo tremer o quanto quisesse para que ficasse mais cansado a fim de dormir mais rápido. Ele queria se permitir pegar no sono com o gosto salgado das lágrimas em sua boca e o traço molhado destas escorrendo pelo seu rosto, da mesma forma que fez na noite antes da sua formatura. Naquele tempo, a crise de choro ocorreu por conta da percepção de que ele estava prestes a se tornar um médico e não tinha uma mãe ou um pai para vê-lo ali, para lhe dizer o quão orgulhoso estavam, diferente de todos os seus colegas. Agora, as lágrimas não eram apenas pela demissão, mas também por notar que continuava na mesma situação, continuava sozinho, e que uma das maiores conquistas da sua vida não significava nada naquele momento. Ele ainda era o menino escocês que tinha medo de se sentir sozinho e de não saber o que fazer da vida.

Depois do que pareceram longos minutos, Ravenwood ouviu a porta se abrir. O som de passos lentos e erráticos foi abafado pelos próprio soluços enquanto escondia o rosto nas mãos, sentado na beirada da cama. Ele conseguia sentir a presença de Frank, mas não queria erguer o rosto, nem mesmo quando sentiu a mão do outro em seu joelho, fazendo-o recuar.

“ ‘Que foi agora?” o médico perguntou, forçando-se a erguer o rosto e logo se arrependendo quando um soluço teimoso escapou de sua boca. “Não precisa me lembrar de como eu sou patético como homem, além de como médico.”

Ele encarou Bryce, cujos olhos castanhos pareciam ainda mais escuros agora, no quarto iluminado apenas pela luz que vinha da cozinha. Os soluços iam diminuindo lentamente e os olhos de Feliks ardiam por conta do choro.

“O que diabos aconteceu?” A voz de Frank estava mais baixa agora, hesitante.

Ravenwood pressionou os lábios um contra o outro. Ele não queria falar aquilo em voz alta, como se falar fosse tornar realidade. Ele não queria admitir que havia falhado em algo.

“Eu...” ele começou a falar, sentindo o lábio inferior estremecer. O rosto do jardineiro tinha uma ruga entre as sobrancelhas enquanto ele o observava, mas a expressão parecia mais leve e menos teimosa do que antes. Talvez isso fosse apenas um truque de luz, mas Feliks queria acreditar que não era o caso. “Meu chefe descobriu que você está morando aqui,” ele falou e as sobrancelhas de Bryce se franziram ainda mais. “Ele também falou que eu... estava mais desinteressado no trabalho.”

“Besteira,” Frank resmungou.

“E que eu estava... agindo estranho. Que ele olhou nas minhas coisas, encontrou uma página do julgamento de Morfin, mas pensou que era algum tipo de piada,” o homem continuou explicando, sentindo como se as palavras lutassem para não sair de sua garganta. “Ele veio com uma teoria idiota sobre o motivo de eu estar tentando resolver esse caso, apesar de não ser o meu trabalho. Digo, eu tenho que descobrir a causa da morte e tentar ajudar na maneira da morte. Não sou um detetive ou investigador, sou só um patologista. Eu... eu tento entender o cadáver, os órgãos e tecidos, o que mudou neles, como pode ter mudado. Eu só tento entender o que eles querem dizer-“

“O que ele falou?” perguntou Bryce, mantendo a voz baixa, mas agora com uma pontada de dureza outra vez. “Sobre os seus motivos?”

“Que eu reconheci algo em Tom Riddle que me fez ficar interessado na morte dele. Ele falou algo sobre... sobre reconhecer algum tipo de figura paterna.” Ravenwood riu, tentando ignorar a expressão no rosto de Frank. Ele não queria pensar que a teoria de Webster podia ter um fundo de verdade aos olhos do outro. “Como se eu tivesse me estampado em um homem morto.”

“E então...?”

“E então ele começou a falar sobre como eu estou agindo estranho e que ‘você é um homem da ciência, você não precisa de superstições’, além de uma baboseira sobre arranjar uma esposa,” ele tentou imitar a voz de Webster. “Ele disse que o nosso Legista-Chefe conhecia um patologista... que está vindo de Oxford. Um homem mais velho, com mais tempo de trabalho e menos chances de se deixar abalar,” o médico continuou falando, sentindo sua garganta se fechar e seus olhos arderem. “Ele vai começar amanhã e eu... e-eu estou... f-fora.”

Ravenwood se odiou quando sentiu outro soluço sacudir o seu corpo. Era isso: ele havia perdido o emprego. Ainda havia o trabalho no Hospital Westminster, mas o seu cargo como patologista forense, as necropsias, os crimes, os cadáveres lhe contando os seus segredos, tudo isso estava perdido. E agora ele tinha que ver uma expressão estranha (Pena? Confusão?) tomar conta do rosto de Bryce enquanto seus olhos se arregalavam.

“Feliks...”

“Eu n-não sei o que fazer,” Ravenwood confessou. “Eu não sei-“

“Você ainda tem o emprego no hospital, não tem?” perguntou Frank.

“Seu trabalho na loja é tão bom quanto o trabalho no jardim da Sra. Riddle?” Feliks tentou respirar fundo. “É diferente. Tudo o que eu fiz até agora... Eu me encontrei naquele lugar. Ou, pelo menos, encontrei meu lugar dentro da área médica. E agora eu não-“ O médico fechou os olhos por um momento. “Eu não sei como eu acabei aqui. Eu nunca amei isso como devia, como os outros médicos amam. Nunca pensei que faria algum trabalho nobre de salvar muitas vidas. Eu só... Precisava de algo que me mantivesse. Eu tinha notas boas, sabe? Consegui entrar na escola médica, ganhei uma bolsa e depois não sabia mais se era isso que queria. Mas eu já estava na metade e... A patologia. Eu podia lidar com a patologia. E depois a parte forense...”

O homem ajoelhado na sua frente não falou nada. Frank Bryce apenas o observava e Ravenwood não sabia se devia continuar ou não.

“Eu não sou um médico muito bom,” ele murmurou. “Dizem que minha mãe era boa em quase tudo que tentava fazer. Eu não sou como ela, eu não consigo ser muito bom depois que perco o interesse. Eu podia ser melhor, mas... Na patologia, eu encontrei algo que prendeu meu interesse por mais tempo. E depois a patologia forense. São as únicas coisas nas quais eu sou realmente bom, apesar de não ser o que eu sempre quis fazer da vida-“

“O que era?” perguntou Frank, finalmente erguendo a mão e a apoiando no joelho do outro de novo. “A coisa que você sempre quis fazer da vida?”

“Eu gostava das estrelas,” ele murmurou, um sorriso triste aparecendo em seus lábios. “Quando eu era pequeno, eu tinha essa ideia de que a minha mãe podia estar entre elas, então eu queria estudar as estrelas. Eu sabia várias constelações, como encontrá-las... Mas dai eu fui para Glasgow e, depois, Londres e estrelas viraram uma raridade.”

“Por isso você tem tantos livros de astronomia,” disse Bryce, sorrindo fraquinho, e Feliks assentiu.

“Quando eu vim para Londres, descobri escolas como a Escola de Artes do Chelsea e pensei nisso também. Eu gosto de pintar, mas... eu já estava trabalhando e eu-“ O médico se interrompeu e riu. Os soluços haviam cessado, apesar de ainda ter lágrimas escorrendo pelo rosto. “Eu sou uma bagunça. Não sei o que fazer da minha vida. Faço trinta e três anos em alguns dias e uma das poucas certezas que eu tinha se foi. Não sei o que fazer.”

Frank suspirou e se levantou, sentando-se ao lado dele e e apoiando os cotovelos nos joelhos por um momento, parecendo pensativo.

“Você quer tudo e nada ao mesmo tempo, não é?” o jardineiro perguntou, virando o rosto para olhá-lo.

“É... um jeito interessante de explicar,” disse Feliks, tentando enxugar o rosto com o dorso da mão.

“O Sr. Tom costumava dizer isso.” Frank escondeu o rosto nas mãos e ficou assim um tempo, antes de se ajeitar e olhar para as próprias mãos. “Me desculpe por dizer todas aquelas besteiras hoje.”

Ravenwood foi pego de surpresa pelo pedido de desculpas. Frank era teimoso e rabugento; já era um grande feito ele ter conseguido se acalmar e deixar de lado as suas frustrações. Mas ele não esperava ouvir um pedido de desculpas tão direto vindo da boca do jardineiro, pelo menos não tão cedo.

“Você estava irritado-“

“Você não é um médico ruim. Nunca vi você praticar a, ahm, medicina normal, mas aposto que você é ótimo. E aposto que sua mãe e seu pai, seja lá o que aconteceu com ele, teriam orgulho de você,” o homem continuou falando e Feliks não sabia se queria ouvir ou não. As lágrimas começaram a fazer seus olhos arderem de novo. “Aposto que o Sr. Tom ficaria feliz, sabe, por eu ter encontrado um amigo como você. Ele teria gostado de ti.”

Bryce ergueu o rosto e o encarou por um momento, depois ergueu uma mão e a apoiou em seu ombro, como que em um meio abraço.

“Acho que ele ficaria com mais orgulho de você,” murmurou Ravenwood. “Por, sabe, ter arriscado.”

Feliks sentiu a mão em seu ombro o puxar de leve e se permitiu ir até o abraço. Era estranho e Frank Bryce não parecia o tipo de pessoa acostumada a abraçar os outros, mas era confortável e logo ele conseguiu relaxar. Paradoxalmente, o médico voltou a chorar, não sabendo exatamente o porquê, mas suspeitando que a razão agora fosse o alívio de perceber que ele não havia perdido Frank.

“Vamos lá, eu não sou bom nisso,” Bryce murmurou, fazendo Feliks rir enquanto sentia os dedos do outro em seus cabelos. “Só para deixar claro, você também não é louco. Você é um bom médico e um bom homem. Você pode não estar mais trabalhando com essa coisa de crimes, mas ainda tem gente morta, não? Você me falou, dos cadáveres do hospital...”

“Necropsias clínicas,” o médico falou, não sabendo se o outro o havia ouvido por conta da voz abafada.

“E também aquelas suas lâminas. Aposto que não é todo mundo que consegue ver tudo o que você vê em uma tirinha de gente,” o jardineiro falou, rindo fraco. “É tipo a sua visão pra magia, só que... você vê doenças e coisinhas minúsculas que mudam no corpo. Acho que nem todo médico tem a chance de ver isso, não é?” Bryce suspirou fraco, seus dedos ainda perdidos entre os cachos de Ravenwood. “Eu sou um sortudo dos infernos por ter conhecido alguém como você, que consegue me aguentar e que está disposto a me ajudar em missões doidas. Então... Obrigado por isso. E pelos chás.”

O médico riu e soluçou ao mesmo tempo, fazendo um barulho engraçado logo antes de esconder o rosto no ombro de Frank. Os dedos em seus cabelos estavam tendo o mesmo efeito de alguns dias antes: era relaxante e o induzia ao sono.

“Você não é um bruxo,” Feliks murmurou, sua voz saindo abafada. “Mas isso não te faz menos interessante que eles ou... Sei lá, não significa que vou te largar aqui para ir fazer festa com bruxos e bruxas.” Ele riu, esfregando o lado do rosto no ombro do outro para limpar as lágrimas. “Você vai ter que me aguentar. Só vou embora quando você pedir.”

Os dedos de Frank pararam por um momento, antes de continuar o carinho.

“Vai dar tudo certo,” disse Bryce em um sussurro. “Vamos dar um jeito nisso.”

Ravenwood queria responder algo, mas não conseguiu. Suas pálpebras estavam pesadas e o abraço, junto com o afago em sua cabeça, apenas fizeram o cansaço aumentar. Por um momento, ele ainda conseguiu ouvir a voz de Frank falar algo indistinguível, antes que tudo sumisse, engolido pelo sono.


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Notas finais do capítulo

A versão original desse capítulo mostrava o Feliks sempre focando na perda da patologia forense. Engraçado como, um ano depois de começar a estudar patologia, acabei vendo que sim, a perda da patologia forense seria horrível pra ele, mas ainda ter a patologia cirúrgica seria um alívio. Quem me conhece, sabe que eu acabei colocando um pouco de experiência pessoal demais no Feliks (eu já devia ter aprendido a não fazer isso depois do Tom Sr), então o fato do personagem se sentir muito deslocado dentro da medicina é bem... real... pra este que vos fala. Foi só esse ano que eu percebi que existe uma área da medicina na qual eu consigo ir bem sem sentir que estou fazendo isso contra a minha vontade. Algo que às vezes eu paro e penso "até que eu sou bom nisso" porque eu consigo enxergar e raciocinar em cima daquele monte de tons de rosa e roxo que são lâminas de histologia. E esses dias eu fiquei pensando, coisa bem boba, mas... Feliks curte astronomia e estrelas e trabalha com células e tecidos. Uma coisa é algo muito grande que as pessoas usam lentes para ver menor, a outra é algo muito pequeno que usam lentes para ver maior. Os dois são coisas super complexas e cheias de padrões que, de vez em quando, imitam uma a outra. Sei lá, eu tenho momentos de ficar pensando coisas sem sentido.

De qualquer jeito! Desculpem o mini texto agora no final, desandando a falar sobre patologia, mas se você por acaso tem interesse na área médica, ta pensando em fazer faculdade disso ou já faz, dê uma chance para o seu professor/laboratório de patologia, vão lá fazer uma visita e conhecer como é o trabalho que acontece ali dentro. Mesmo que vocês não vão ser patologistas, ter esse conhecimento vai ajudar muito vocês a serem bons médicos e não cometerem gafes e erros.

Ok, chega de puxar a sardinha. Espero que tenham gostado (((: digam o que acharam e peço desculpas pela demora pra postar.

1) “Como se eu tivesse me estampado em um homem morto.”: em inglês, 'imprinted', é tipo... sabe quando bebês patos vêem um bicho/pessoa quando ainda são muito novinhos e acham que é a mãe deles e ficam o resto da vida achando isso? É isso. Ou, uma referência mais... popular... pensem em Crepúsculo e os lobisomens.



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