três de bastões escrita por themuggleriddle


Capítulo 11
Effugiat risus


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigado, Godsnotdead, Vika e MaeveDeep pelos últimos reviews :)))



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De alguma forma, Yelena Voronova acabou no apartamento deles naquela noite.

Ela riu quando Frank jogou algumas moedas na fonte do Átrio do Ministério, conversou com eles durante a caminhada por Londres (ela havia usado a mentira do irmão e noivo outra vez, ao saírem do Ministério pela entrada de visitantes) e depois ficou para a janta. Frank, apesar de sorrir e rir com as piadas da bruxa, continuava quieto demais, prestando muita atenção em tudo que Yelena falava sobre o funcionamento da comunidade mágica e, de vez em quando, arriscando perguntar sobre velhos crimes do mundo bruxo.

A garota respondera às perguntas sem titubear, apesar de Feliks perceber que ela, também, estava tentando tirar o máximo de informação deles: ela perguntara a Frank sobre a relação dele com os Riddle e o trabalho dele em Little Hangleton, questionou Ravenwood sobre o seu dom de ver magia e a sua família, e terminou perguntando como eles haviam conseguido entrar no Ministério. Essa última pergunta saiu no meio de uma piada, quase passando por um comentário insignificante.

“Temo não poder lhe dizer isso, Srta. Voronova,” disse Frank, arqueando uma sobrancelha ao ver um sorriso torto repuxar os lábios da moça.

“Imaginei,” ela falou e então voltou a falar sobre como os elfos-domésticos cuidavam da limpeza dos arquivos, logo antes de ser interrompida pelo jardineiro:

“E por que você nos ajudou?”

A bruxa o olhou por um momento, seus olhos claros brilhando com divertimento.

“Por que você decidiu ir atrás de um assassino bruxo?” ela perguntou, virando-se para olhar Ravenwood, que sentiu o rosto esquentar ao notar os olhos de Frank e Yelena em si.

“Porque...” ele começou a falar. Essa era uma pergunta que o homem se fazia todos os dias e ainda não encontrara uma resposta satisfatória. “Em parte porque fiquei curioso. Queria saber o que eram aquelas coisas que eu estava vendo e como os Riddle morreram. Foi bem frustrante fazer a necropsia deles.” Ele suspirou e olhou para Bryce. “Então, acabei encontrando alguém que deu corda para essa minha curiosidade e aqui estamos.”

“Aí está a sua resposta,” disse Yelena, gesticulando para Feliks como se estivesse expondo algum objeto interessante.

“Curiosidade?” perguntou Frank, estreitando os olhos.

“Não é todo dia que dois trouxas entram naquele arquivo depois de se infiltrarem no Ministério sem serem notados,” ela explicou. “Fiquei curiosa. Meu papa dizia que a curiosidade é uma faca de dois gumes, mas que sempre podemos usar o lado bom dela se tentarmos o suficiente.”

“Eu diria que você tem mais sorte do que juízo,” disse Bryce.

“Papa também diria isso.” A bruxa deu de ombros, dobrando as pernas em cima do sofá para poder sentar de pernas cruzadas. “Ele dizia que essa era a razão de eu ter ido parar na Corvinal.”

“O que é essa Corvinal que as pessoas ficam falando?” perguntou Feliks, finalmente saindo da cozinha e indo se sentar com os outros dois na sala.

“Quem fica falando?”

“Alguns... bruxos que conhecemos,” disse Ravenwood, sentando-se ao lado da bruxa e olhando para Frank, que ocupava a poltrona e tinha sua perna machucada esticada enquanto uma de suas mãos massageavam os músculos desta. “Falaram que Frank era ‘um perfeito grifinório’ e que eu era um Corvinal ou um... como era? Lupa-Lupa?”

“Lufa-Lufa. São casas da nossa escola,” ela explicou. “Casas de Hogwarts, a escola britânica de magia.”

“Uma escola de...?” Bryce murmurou, sua mão parando os movimentos da massagem. “Santo Deus.”

“Vocês têm uma escola de magia?” perguntou Feliks, não conseguindo esconder a animação na sua voz. Sentia-se como quando ainda era um menino e descobria que iria passar o dia no lago ou algo parecido.

“Claro. Acharam que as pessoas simplesmente surgem no Ministério já sabendo como fazer magia? Hogwarts é um dos colégios mais famosos ao redor do mundo e aceita alunos do Reino Unido e da Irlanda,” ela explicou e então sorriu para Ravenwood. “Fica na Escócia.”

“O que?”

 

“Uma das fundadoras foi uma bruxa escocêsa: Rowena Ravenclaw,” Yelena falou, sorrindo ao ver o médico franzir o cenho por um momento. Frank, na sua poltrona, imitou a expressão confusa ao ouvir o nome. “Cada casa representa um fundador e aceita alunos com as características que eles prezavam: Godric Gryffindor gostava dos jovens corajosos; Salazar Slytherin, dos ambiciosos e de sangue puro; Rowena Ravenclaw dava muita importância à uma mente aberta e vontade de aprender; e Helga Hufflepuff acolhia aqueles que eram leais e trabalhadores.” Ela sorriu e então suspirou. “Claro que essas não são as únicas características das casas. Uma vez em Hogwarts, você começa a ver as nuances dos alunos e tudo faz mais sentido.”

“E você era a Corvinal,” disse Bryce. “Há quanto tempo você está aqui?”

“Deixei a Rússia em 1930,” ela explicou. “Toda a minha educação formal foi em Hogwarts.”

“Existem escolas mágicas na Rússia?” perguntou Feliks.

“Sim, nós temos duas grandes escolas.” A bruxa se ajeitou no sofá, deixando a postura mais ereta, e continuou: “A Escola de Artes Mágicas Tsaritsa Anastasia Romanovna e a Escola de Magia e Feitiçaria Petropavlovskaya. A Tsaritsa fica em algum lugar nos Montes Urais e Petropavlovskaya, em São Petersburgo. Existem diversas escolas menores por todo o país, claro, mas essas duas são as maiores e acabaram estabelecendo dois tipos diferentes de educação: uma é baseada nos tipos mais tradicionais de magia, com um foco no que algumas pessoas chamam de ‘magia negra’, e a outra foi completamente inspirada por Beauxbatons, a escola francesa, apesar de que muita coisa mudou em Petropavlovskaya depois do regime soviético.”

“E você teria estudado em uma dessas se não tivesse vindo para a Inglaterra?” perguntou Frank.

“Bruxos e bruxas da minha família sempre estudaram na Tsaritsa, ou pelo menos aqueles que não foram educados em casa. Confesso que tenho curiosidade de saber quais as diferenças entre a educação de lá e a de Hogwarts.”

“Você disse que uma delas foca em magia negra?” Ravenwood perguntou, perguntando-se como alguém ensinaria rituais sombrios à uma criança, ou seja, lá o que magia negra significava.

“Quando eu digo magia negra, não quero dizer magia ruim. Conheço muita gente que vê as coisas assim, principalmente aqui no Reino Unido...” disse Yelena, gesticulando como se tentasse explicar algo com as mãos. “Magia pura não é branca ou negra, é só magia, sabe? O que diferencia as duas coisas é o quão fácil fica para que um bruxo a controle.”

Frank olhava a bruxa como se ela tentasse lhe explicar as inúmeras declinações da língua russa, mas seus olhos estavam focados e ele parecia interessado mesmo assim. Feliks inclinou-se na direção dela, tentando prestar mais atenção.

“Magia branca requer mais controle. Você precisa moldar a magia de acordo com a sua vontade de um jeito quase matemático. Um feitiço considerado branco normalmente necessita de muita concentração e método. Magia negra é mais volúvel, mas também é mais fácil de domar. Ela é suprida por emoções: uma maldição da tortura é mais forte quando você odeia a pessoa torturada, mas um feitiço de proteção também é mais efetivo quando lançado em alguém que você ama,” ela continuou a explicação. “É fácil se perder na magia negra, porque ela dá uma ilusão de poder.”

“Espera.” Bryce piscou e franziu a testa. “Você disse que magia negra é usada em uma maldição de tortura.”

“Exato.”

“E depois disse que também pode ser usada em feitiços de proteção?”

“Sim, mas não todos. Quando esse tipo de magia é usado, normalmente acontece por acidente. Por exemplo: se você estivesse em perigo e o Dr. Ravenwood tentasse protegê-lo, ele poderia desencadear um tipo de magia criado a partir da emoção e não da lógica.”

“Isso não faz sentido,” disse Frank, estalando a língua dentro da boca e parecendo incomodado.

“Na verdade, faz,” disse Yelena.

“Não, não faz. Você está dizendo que a maldição que matou os Riddle é a mesma coisa que, sei lá, uma magia criada a partir de amor.”

“Já ouviu falar de crimes passionais?” perguntou Feliks, olhando Bryce, que simplesmente estreitou os olhos e sacudiu a cabeça. “É um crime que acontece no calor do momento, causado por uma emoção. Sabe, quando uma mulher mata o marido depois de descobrir que ele tinha uma amante ou um homem mata uma moça porque ela não correspondia ao amor dele... São bem violentos, na maioria das vezes. Você consegue ver o quão emotivas essas pessoas estavam quando cometeram o assassinato: múltiplas facadas, muito sangue, esganaduras malfeitas, etc. Algumas pessoas conseguem uma força incrível para cometer esses atos de violência e tudo isso acontece por conta da emoção. Uma pessoa que mata por amor é capaz de ser tão violenta quanto aquela que mata por ódio.”

“A magia faz parte do bruxo,” Yelena explicou, acenando com os dedos no ar. Pelo olhar espantado de Frank, ela estava realmente projetando a sua magia e não era apenas a luz visível aos olhos de Feliks. “Ela fica mais forte ou mais fraca dependendo da sua energia e emoções. Amor e ódio são os extremos de uma enorme variedade de emoções e ambos podem trazer coisas boas ou ruins, isso depende de como o bruxo ou bruxa trabalha com eles.”

“Como ódio pode trazer algo bom?” Bryce resmungou, afundando mais na poltrona e voltando a massagear a própria perna.

Yelena sacudiu a cabeça, seus cachos castanhos se soltando em alguns pontos do seu penteado, e riu fraco. A luz em suas mãos agora parecia mais sutil e ela olhou para o trouxa com um sorriso torto no rosto.

“Foi isso que te trouxe até a magia, não foi?”

***

Desde a visita ao Ministério da Magia, Frank voltara ao seu estado silencioso, muito parecido com o Frank Bryce que o médico havia conhecido em Little Hangleton: quieto, sério e mal-humorado. Ele evitava falar sobre magia e, se possível, sobre qualquer outra coisa. Eles acordavam cedo e Ravenwood saía para o trabalho sem ouvir mais do que um resmungo de ‘bom dia’ e voltava já de noite para encontrar o outro homem reclamando que sua perna estava doendo mais do que o normal.

Yelena, de vez em quando, escrevia para eles. Quando uma coruja marrom aparecia empoleirada na janela, Feliks sabia que a ave estaria trazendo uma carta. A bruxa escrevia sobre o seu trabalho e perguntava como eles estavam. Frank sempre lia as cartas, mas raramente as respondia. Às vezes, Ravenwood percebia que ele levava o bilhete até a loja de chás e jogava fora respostas amassadas assim que chegava em casa.

Levou uma semana para Feliks decidir tentar falar com Frank sobre o que estava acontecendo. Não por conta do mal humor ou da falta de educação (ele estava acostumado com esse comportamento por conta dos policiais, colegas e, antes, de alguns pacientes), mas porque estava claro que Bryce não estava bem. Ele havia progredido desde que deixara Little Hangleton: o homem estava brincando, rindo, aproveitando a companhia de pessoas diferentes e até saindo com moças bonitas como Celestina Warbeck... E então ele voltou a ser o jardineiro enlutado e raivoso sobre o qual os aldeões fofocavam n’O Enforcado.

E havia os pesadelos. Ravenwood ouvia murmúrios e soluços e lençóis sendo revirados no meio da noite, quando ficava acordado até tarde revisando algum caso, corrigindo laudos ou olhando lâminas. De vez em quando ele ouvia os passos falhos de Frank andando de um lado para o outro no quarto enquanto o homem sussurrava alguma coisa para si mesmo. Uma vez ou outra ele ouvira um grito, seguido da respiração errática que acompanha um susto. Naquela segunda-feira, ao amanhecer, foi um desses gritos que acordaram Feliks, fazendo o médico se esgueirar para fora da cama e bater na porta de Bryce para ver se podia ser de alguma ajuda.

“Frank,” ele chamou, abrindo a porta e enfiando a cabeça pela fresta (ele devia estar parecendo um louco com os olhos ainda inchados do sono, os cabelos como uma bagunça de cachos e os óculos tortos sobre o nariz). “Está tudo bem?”

Levou alguns segundos para conseguir identificar a figura de Bryce dentro do quarto escuro: encurvado sobre a cama, com o peito subindo e descendo com a respiração acelerada. O médico suspirou e entrou, aproximando-se da cama, mas se mantendo a uma certa distância do homem sentado na beirada desta.

“O que ‘ta acontecendo?” ele insistiu, finalmente vendo a cabeça do outro se erguer para olhá-lo.

“Nada,” disse Frank. Ele parecia irritado e... Envergonhado?

“Vamos lá.” Feliks passou uma mão pelos cabelos, tentando tirar os cachos da frente do rosto. “Você está esquisito a semana inteira, desde que saímos do Ministério. Talvez ajude falar-“

“Não acho que tenha algo para falar,” ele o interrompeu, fazendo Ravenwood franzir o cenho.

“Na verdade, acho que tem sim algo para ser falado,” disse Feliks, sentindo-se um pouco mais acordado agora. “Sei que tudo isso é loucura e que é um enorme desgaste emocional para você, por conta... do que aconteceu com os Riddle. E isso está te afetando muito mais do que você quer admitir. Não sou psiquiatra, mas-“

“Você ‘ta certo. Você não é nenhum psiquiatra ou, melhor, não é nem um médico de verdade, hum?” Frank perguntou, suas palavras fazendo com que um buraco se abrisse no estômago de Ravenwood. “Não sou seu paciente, então não precisa tentar me consertar. Espere para quando eu estiver morto e gelado no seu necrotério.”

O médico ficou parado no meio do quarto, tentando processar o que havia acabado de ouvir. Até mesmo em Little Hangleton, ele não havia ouvido a voz de Frank soar tão raivosa e suas palavras parecerem tão afiadas. Ele respirou fundo e arriscou um passo na direção da cama.

“Sei que não está bem, Frank,” disse Feliks, tentando não deixar sua voz mostrar o quanto sua autoconfiança havia sido abalada pelas palavras do outro, apesar de conseguir ouvir seu sotaque soar mais forte do que o habitual. “Se você quiser dar um tempo nisso... Na investigação, sabe. Você está se saindo muito bem aqui em Londres, na loja, no Black Siren...”

“Oh, por favor!” O homem soltou uma risada sem emoção e agora o médico conseguia enxergar melhor os contornos dele: seu rosto estava rígido e seus olhos, marejados. “Por quanto tempo você vai se iludir, doutor? Por quanto tempo vai acreditar que somos bem vindos entre essa gente?” Frank sacudiu a cabeça e fechou as mãos. “Não somos como eles. Eles têm magia, têm criaturas e varinhas mágicas que podem nos matar num piscar de olhos, ou você já se esqueceu do que viu quando abriu os Riddle?”

“Frank,” Feliks tentou recuperar a conversa, mas notou que sua voz estava muito mais fraca do que esperava.

“Não somos nada para eles. É por isso que eles não se deram o trabalho de ir atrás do assassino. Para os bruxos, os Riddle eram apenas trouxas quaisquer. Eles não podiam perder seu precioso tempo com eles,” ele cuspiu as palavras e jogou as pernas para fora da cama, ficando de pé e tentando se aproximar do outro homem, mas parando por um momento e soltando um gemido baixo por conta da perna.

“Frank, por favor-“

“Não importa o que a gente faça, não somos como eles e eles sabem. Você pode conseguir ver a magia deles, mas não consegue fazê-la e é isso que importa pra eles, e, adivinhe? Não importa o quanto você tente se enfiar no mundo deles, aprendendo sobre a magia e os crimes, explicando o seu trabalho e blablabla...” O jardineiro deu alguns passos cambaleantes até alcança-lo, apontando um dedo para o seu rosto. “Você não faz parte do mundo deles. Você e eu não fazemos parte disso e mesmo que a gente apareça com o assassino agora mesmo naquele maldito Ministério, eles não vão pensar duas vezes antes de apagar as nossas memórias, da mesma forma que fizeram com o Sr. Tom quando Morfin o atacou!” Frank abaixou a mão e suspirou, dando-lhe as costas e mancando de volta para a cama. “Temos que admitir que não somos merda nenhuma.”

Ravenwood não falou nada enquanto observava Bryce voltar para a cama, gemendo baixinho ao puxar a perna machucada para cima do colchão outra vez. Ele não sabia o que falar, mas sabia que era grato por ainda estar escuro. Dessa forma, Frank não conseguia ver a expressão ridícula que tomara o seu rosto, as bochechas coradas e o lábio inferior tremendo levemente, apesar de ele tentar parar o movimento ao pressionar os lábios um contra o outro.

Depois de alguns segundos, o médico sacudiu a cabeça sutilmente e deixou o quarto. Seus passos na direção da cozinha e seus movimentos para preparar um chá com as raízes fedorentas de valeriana eram automáticos, assim como a caminhada de volta ao quarto de Frank para deixar a caneca na mesa-de-cabeceira.

“Você devia voltar a dormir,” ele falou, agradecendo por conseguir falar, apesar do nó em sua garganta.

Frank não falou nada quando ele lhe deu as costas e saiu.

***

Parecia que Londres decidira ser gentil com ele. Quanto mais trabalho, menos tempo Feliks tinha para se afundar nas palavras que ouvira de Frank naquela manhã e foi isso que a cidade lhe presenteou: um homem que aparecera boiando no Tâmisa, já parcialmente comido pelos peixes; uma senhora encontrada morta em seu apartamento depois que o corpo começara a cheirar mal, já inchada e enegrecida pela decomposição; um jovem que decidira partir mais cedo com o auxílio de um cinto amarrado em volta do pescoço... Entre um corpo e outro, havia pouco tempo para que a voz de Bryce voltasse aos seus pensamentos, já que o trabalho de ajudar na limpeza da sala de necropsia, redigir laudos e se aparamentar para a próxima autópsia o distraíam.

Foi apenas no final da tarde que Feliks Ravenwood conseguiu sentar por alguns minutos a mais em seu escritório, permitindo-se reler a cópia dos arquivos dos Riddle que Yelena havia lhes fornecido. E, como se o dia não estivesse tenso o suficiente depois de uma manhã ruim, um almoço sem graça e dois cadáveres podres (ele podia jurar que aquele cheiro ficaria em seu nariz por pelo menos três dias), o médico sabia que as coisas estavam para piorar quando viu o Inspetor Chefe Harry Webster entrar na sua sala. O rosto do homem tinha uma expressão neutra impossível de ser lida por detrás do bigodinho engraçado que ele usava e seus olhos escuros alternavam entre Feliks e a sua mesa, como se estivesse buscando algo.

“Precisamos conversar,” disse Webster, puxando uma das cadeiras até se sentar na frente do outro homem.

“Tem... algo errado? Eu esqueci alguma coisa das necropsias de sexta, não é?” Feliks perguntou, tentando se lembrar dos corpos que ele examinara dois dias antes.

“Não, não é isso.” Pela segunda vez em menos de vinte e quatro horas, Ravenwood sentiu seu estômago ser tomado por um vazio incômodo. “É verdade que você está morando com o principal suspeito daquele assassinato de East Yorkshire?”

O homem sentiu o sangue sumir de sua cabeça e membros, sentindo seus dedos começarem a formigar.

“O Sr. Bryce não é mais um suspeito,” disse Ravenwood, não conseguindo fazer com que sua voz saísse mais alta do que um sussurro. “A polícia de Yorkshire concluiu que ele não estava envolvido com as mortes.”

“Não importa se ele os matou ou não, Feliks,” Webster falou, franzindo as sobrancelhas cabeludas. “Ele era um suspeito e você estava conduzindo as necropsias das pessoas que ele estava sendo acusado de matar. Não vê o quão errado parece quando alguém diz que vocês estão morando sob o mesmo teto?”

“Ele está na minha casa até conseguir pagar um lugar para si. O homem estava miserável em Little Hangleton, aquelas mortes foram muito para ele e a vila agora pensa que ele é um assassino, mesmo com a polícia dizendo o contrário,” Feliks tentou explicar, ouvindo seu sotaque voltar a ficar mais pronunciado, cada R reverberando contra o seu céu-da-boca com intensidade. “Além disso, ele só veio para cá meses depois das mortes e só ficou comigo porque eu era a única pessoa em Lonres cujo nome ele ao menos conhecia.”

“Como diabos vocês se conheceram?”

“Eu fui até Little Hangleton para falar com ele-“ o homem começou a falar, mas parou abruptamente.

“Você não é um detetive ou investigador,” disse Harry, estreitando os olhos. “Você é um médico. Seu trabalho é abrir os cadáveres, ver o que os matou e nos dizer para que nós possamos fazer a investigação. É a divisão de Homicídios que é responsável por encontrar esses criminosos.”

“Mas vocês não encontraram dessa vez,” ele sussurrou.

“Você sabe muito bem que nem sempre conseguimos,” o Inspetor Chefe falou.

“Eu sei, mas...”

“Olhe, garoto, você sabe que eu o considero uma das pessoas mais dedicadas desse lugar, certo? Você está aqui há quanto tempo? Dois ou três anos? Você é bom, Feliks, mas...” O homem pressionou os lábios um contra o outro e o observou por um momento. “O caso dos Riddle... Desde que você voltou, não é mais o mesmo. Você está mais distraído, faltando o trabalho-“

“Eu faltei um dia porque estava com dor,” Ravenwood tentou explicar. “E depois coloquei o trabalho em dia o mais rápido possível.”

“Aí aparece morando com outro homem, um antigo suspeito de assassinato, além de começar a ler umas coisas estranhas,” o inspetor falou, fazendo uma careta. “Vi você com um livro esses dias, algo sobre magia e superstições. E então... Olha, não sei se você escreveu isso ou se foi o pessoal de Yorkshire tentando nos pregar uma peça, mas esses textos sobre os Riddle-“

“Espere.” Feliks franziu o cenho, olhando para a sua pasta onde estavam guardados os arquivos do Ministério. “Você estava mexendo nas minhas coisas?”

“Era só um texto esquisito sobre um homem que fazia ‘magia para assustar’ um dos Riddle,” Harry explicou. Ravenwood tentou não demonstrar o quão aliviado ficou ao perceber que o homem não pareceu acreditar no que havia lido. “O negócio é o seguinte: você se envolveu demais nesse caso. Não sei o que foi que fez isso... Andrew disse que talvez seja por causa do filho dos Riddle.”

“O que diabos Tom Riddle tem a ver com isso?” perguntou Feliks.

“Bom, vocês dois são parecidos,” disse Webster. “Vi uma foto do homem em um dos relatórios que Linwood nos mandou. Andrew disse que você talvez tenha reconhecido algo familiar nele, talvez ele o lembre do seu pai ou algum parente?”

“Eu nunca conheci o meu pai,” Ravenwood não sabia se queria rir do absurdo de tudo aquilo ou ir atrás do Inspetor Andrew para socá-lo no nariz.

“Exatamente! Talvez você tenha se apegado muito a tudo isso por ver nele uma figura paterna que nunc-“

“Eu conduzi uma necropsia no corpo de Tom Riddle,” disse Feliks, tentando ignorar o tremor em suas mãos. Ele não queria admitir que, sim, ele notara como ele e Riddle tinham narizes compridos e rostos sardentos, ou como ele e Riddle tinham cachos escuros e mãos com dedos longos e finos. Ele não queria pensar em como Frank Bryce o olhou, confuso, pela primeira vez e como o jardineiro disse que ele e Tom Riddle tinham os mesmos olhos azuis desconcertantes. Ele não queria que Webster se lembrasse que o falecido compartilhava o seu nome, apesar da grafia diferente. Porque tudo isso lhe pareceu irrelevante quando ele conheceu Thomas Felix Riddle pela primeira vez, sobre uma mesa de necrotério. “Eu não iria querer abrir uma... figura paterna.”

“Vou ser honesto com você, garoto: não sei o que está acontecendo. Não sei se esse caso te abalou muito ou se você só... está entediado aqui. Afinal, você é jovem e médicos da sua idade normalmente estão lá fora ou em emergências, não é?” O inspetor sorriu fraquinho, antes de voltar a ficar sério. “Não sou o único que notou a diferença. Seus colegas do Hospital Westminster entraram em contato, perguntaram se estava tudo bem, pois você estava agindo estranho-“

“Oh, pelo amor de Deus!” o médico começou a falar, mas parou quando viu Harry erguer uma mão. “Eles estão falando merda-“

“Que você não está passando tanto tempo por lá quanto costumava, que você está pesquisando coisas estranhas... Um deles disse que viu algo que você escreveu, algo sobre ver coisas-“

“Não estou vendo coisas,” disse Feliks, rapidamente, enquanto sentia seu coração acelerar. “Eu não... Eu não sou louco, Harry.”

“Sei que não, mas um jovem como você... É normal que esteja começando a sentir a pressão do mundo, sabe? É normal que você questione as suas escolhas e, por conta disso, comece a relaxar um pouco,” o homem continuou falando. “Às vezes a situação é demais para a sua cabeça. Não sei o que está acontecendo, Feliks, mas você é um homem da ciência. Magia e superstições não é como resolvemos nossos problemas aqui.”

Ravenwood queria dizer que, sim, magia era a chave por detrás de tudo aquilo. Magia era a razão de não terem achado o culpado e de nem mesmo terem desconfiado de Morfin Gaunt, mas aquilo estava fora de cogitação. Ele não queria parar em um sanatório e era isso que aconteceria se falasse tudo o que estava pensando.

“Andrew é amigo de um patologista que acabou de chegar de Oxford. Ele já atua na área há muito mais tempo e já viu muita coisa ruim.” Enquanto Harry falava, Feliks sentia mais e mais dificuldade para respirar. Ele não queria ouvir, ele queria desaparecer, queria aparatar ou pular dentro das chamas verdes do Ministério da Magia. “Ele tem menos chances de se abalar tanto com algo, como o que aconteceu com os Riddle-“

“Mas eu-“ Outra vez ele se interrompeu ao ver a mão de Harry erguida.

“Você é jovem, Feliks. Aposto que consegue fazer uma carreira brilhante se entrar para o exército agora ou ir trabalhar em alguma emergência... Deus sabe como estamos precisando de médicos em uma hora como essa.” O homem sorriu. “Não estou lhe dizendo para abandonar a patologia para sempre, mas, quem sabe, dar um tempo? Conhecer outra coisa e depois voltar, caso queira. Você sempre será bem-vindo aqui e aposto que o pessoal do laboratório também não pensaria duas vezes antes de aceitá-lo de volta. Mas por hora? Tente voltar a ser um médico, sabe? Voltar para a vida. Talvez até mesmo achar uma moça bonita para você. Já está na hora de começar a pensar nisso, não é?” Webster riu e deu uma piscadela brincalhona. “Aposto que dividir a casa com uma mulher e filhos vai ser melhor do que com esse... esse rapaz do caso dos Riddle.”

Feliks permaneceu em silêncio por um minuto ou dois, observando o outro homem sorrir. Um sorriso falso. Um sorriso que tentava confortá-lo, mas que falhava miseravelmente nessa tarefa.

“Você não pode me despedir,” o médico murmurou.

“Na verdade, posso, garoto,” disse Webster, o sorriso se dissolvendo em seus lábios. “E estou fazendo isso, porque estou preocupado com o que vai acontecer daqui para a frente. Por enquanto, você ainda consegue trabalhar, mas quem sabe o que vai acontecer daqui um mês? No momento temos um profissional com experiência pronto para tomar o seu lugar. Sei o quanto você se importa com esses corpos, então posso garantir que eles serão bem cuidados quando você sair.”

Ravenwood observou o outro se levantar e levar a cadeira para o seu lugar original, antes de ir até a porta.

“O Dr. Crieff começa amanhã. Já falamos com ele. Eu ficaria eternamente grato se você conseguisse deixar a papelada toda pronta para ele, caso algo precise de alguma revisão.” O Inspetor Chefe Harry Webster o olhou uma última vez e suspirou. “É uma decisão difícil para mim, garoto. Mas a vida é cheia de decisões difíceis, ainda mais na situação atual do mundo. E nós somos parte da Polícia, cuidamos da segurança do nosso país em um momento complicado e precisamos fazer isso sem nos comprometer com nada e nem ninguém. Espero que entenda.”

Quando ele saiu, Feliks Ravenwood continuou encarando a porta. Enquanto a ideia de que não voltaria àquele necrotério no dia seguinte começava a fazer mais sentido em sua cabeça, o cheiro doce da decomposição misturado com o cheiro de sangue e de água sanitária ficou mais forte em seu nariz. Ele nunca pensara que sentiria falta daquele odor.

 

 


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Notas finais do capítulo

Hoje é dia do patologista e eu queria postar algo de Três de Bastões por conta do patologista mais adorável de todo Reino Unido. Patologistas são profissionais essenciais na área da saúde e é uma pena que muita gente fuja da área por não saber como ela funciona... o nosso contato com patologistas é nas aulas de patologia, as quais muita gente acha chata e difícil. Quando vemos séries de TV com médicos, elas sempre focam em cirugiões e, quando são de investigação policial, o pessoal não percebe que aqueles profissionais são patologistas ou o roteiro cai no clichê do Investigador Estilo Sherlock Holmes I'm Too Good For This... eu tento, com o Feliks, mostrar um pouco da patologia porque sei lá, né, vai que alguém se encanta com isso! Hehehe. Comecei a escrever essa fic em uma época em que estava bem desmotivado em relação ao fim da faculdade e tudo mais, e ela me ajudou muito a achar essa motivação... agora que estou convivendo mais nesse mundinho da patologia, quero conseguir colocar mais desse dia a dia aqui, mesmo que seja só pra gente ver o Frank ficar "... que diabos é isso?" enquanto o Feliks fica falando dos maravilhosos núcleos feios bonitos.

— Taceant colloquia; effugiat risus. Hic locus est ubi mors gaudet succurrere vitae: "Deixe a conversa ser silenciada; deixe o riso se extinguir. Este é o lugar onde a morte se compraz de ajudar os vivos." Essa inscrição adorna as paredes de muitas salas de necrópsia ou laboratórios de anatomia (na faculdade da minha irmã, tinha só a última parte... na minha faculdade, a gente tinha a Oração ao Cadáver Desconhecido, do patologista Karl Rokitansky, na entrada). Não se deixe enganar por ela, pessoal dessa área está longe de ser um povo fechado e sério... na verdade, todos que eu conheci até agora são gentis e divertidos, até por esse ser o jeito que eles acharam de lidar com o trabalho que, apesar de distante do paciente, é pesado.

Como vocês podem ver, eu estou jogando amor por todos os lados para a patologia, foi mal.

Como sempre, digam o que acharam :)))



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