A Rainha da Beleza escrita por Meewy Wu


Capítulo 30
XXIX - Pêndulos




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Nenhuma das outras se mexeu. Fui eu, quem teve que abraçar Livie enquanto ela chorava e gritava e chamava de forma incoerente o nome da irmã – E de alguma forma, como um dia eu fizera com o nome de Isis, eu sabia que era Lilie que era chamava.

Foi Isabel quem deu a notícia, com os olhos cheios de lágrimas que eu já não podia dizer que eram apenas de tristeza pela morte de Lilie, ou alegria por Livie finalmente ter despertado após quase duas semanas. Quando Apolo avisou que ela havia acordada, todas nos pomos a correr para a enfermaria sem lembrar-se da noticia dolorosa até que ela perguntou.

"Onde está minha irmã?". A pergunta ressoava na minha mente enquanto as lágrimas atravessavam o busto do meu vestido e passavam para minha pele. A expressão de Napho, com pelo menos uma semana de barba por fazer e claramente mal alimentado, deixava a entender que ele havia tido a decência de não contar. Não era o papel dela, era o nosso. Nós éramos as irmãs que restavam para ela.

—Livie... - Todas nos viramos para Napho. Imaginei que como eu, todas estivessem presas naquela nuvem que se estendia ao redor de Livie, e havíamos esquecido a presença do embaixador.

—O que você ainda está fazendo aqui? – Isabel o fuzilou com os olhos. Se ela olhasse sobre o ombro, provavelmente gritaria com todos em todas as macas que olhavam com pena e tristeza para nós. Todos naquela enfermaria sabiam como era perder alguém, ou ao menos como era temer esta perda.

Não era algo privado. Não precisava ser. Eu sabia que não precisávamos esconder a nossa dor, mas também sentia aquela vontade sufocante de esconder Livie do mundo. Ela grunhiu algo contra meu abraço, e soltei um pouco os braços que envolvia ela.

—O mandem sair – ela soluçou, apertando as mãos em punhos. Isabel me empurrou, se abaixando e pegando as mãos dela, a forçando a abrir até revelar as marcas roxas que as unhas haviam deixado na palma dela.

—Você deveria ir – Alicia falou se aproximando de Napho – Ela precisa ficar...

Sozinha. A palavra que Alicia engoliu foi sozinha. Não, Livie não ficaria sozinha, não com todas nós ali, não com todos que estavam naquela enfermaria. Nós não a deixaríamos ficar sozinha nem se ela quisesse, mas não ficaria com Napho.

—... Com a família – falou Tina, se aproximando da conversa também – Nós. A família dela.

—Mas eu preciso... – ele passou a mão, prendendo nos cabelos emaranhados – Preciso explicar pra ela, contar que...

Respirei fundo, vendo a confusão no rosto das duas, olhando para Livie e para Napho sem saber o que fazer. Passei com cuidado por trás de Isabel, sem encostar nela como se como um lobo ela pudesse me atacar a qualquer momento – Você, embaixador, precisa de um banho – falei, parando ao lado de Alicia.

—E se barbear – complementou Alicia, com um sorriso de desculpas.

—E muito provavelmente comer e dormir – Tina o mediu de cima a baixo com desgosto.

Passei o braço pelo de Napho, o puxando – Eu lhe acompanho até a porta, embaixador – Ele assentiu estático, enquanto eu lhe afastava em silêncio até o corredor e então soltava seu braço.

—Ela me culpa – ele falou, por fim, os olhos em geral brilhantes e cheios de vida estavam ocos.

—Ela está em choque, Napho, a deixe passar por isso em um lugar seguro – pedi, sem saber o que falar para ele além da verdade – Livie é boa e esperta, ela não vai te odiar por isso, ela apenas não precisa dos seus motivos e de explicações agora. Ela precisa chorar pela irmã.

—Nunca me senti assim – ele suspirou, olhando para os próprios pés – Nunca no mundo, Bethany. Tive amantes e amores, fugi do meu próprio casamento um dia, e nunca quis tanto ser aquele no qual uma garota derramava suas lágrimas.

—Por algum tempo, achei que estava flertando comigo – confessei, tentando mudar de assunto. Ele sorriu.

—Eu estava – ele admitiu, olhando para os lados – Como embaixador de uma nação preocupada, eu tinha que testar os limites do humor do futuro rei. Sinto muito se usei você.

Dei os ombros – Também usei você, em alguns momentos – me permiti sorrir – Não é o único que precisa testar os limites de Fox às vezes – minha boca amargou – Ainda não consegui quebra-los.

—Por favor, senhorita Bethany, esperamos que mais nada seja quebrado – Fox surgiu no corredor, com Dylan logo atrás dele. Esperei que não tivessem houvido mais do que aquela última frase – Acabamos de ser informados. Embaixador.

—Príncipe Fox – Napho se curvou, e então se virou para mim – Vou seguir seu conselho e das outras, senhorita. Espero vê-la mais tarde.

—Bom descanso embaixador – desejei, antes de me voltar para Fox e Dylan – Vossa Alteza. Duque Dylan.

—Sem formalidades, Bethany – Dylan ergueu uma mão, tentando olhar sobre meu ombro – Por que acho que não está disposta a nos deixar entrar?

—Sinto muito, mas não acho que seja um bom momento – embora respondesse a ele, era para Fox que eu olhava enquanto falava – Ela não está nada bem. As outras garotas estão com elas.

—Isso poderia ter sido evitado – Fox balançou a cabeça, olhando em volta – Dylan, arrume alguns guardas neste corredor. Como é possível que feridos e doentes estejam desprotegidos?

—Os guardas estão exaustos com os turnos e patrulhas que você insiste que eles façam – Dylan contrapôs, recebendo um olhar questionador de Fox – Desculpe Vossa Alteza, farei o que for preciso.

Observei Dylan se afastar, e então olhei para Fox tentando não parecer reprovadora – Isso era necessário?

—Muitas coisas nos últimos dias não eram necessárias, Bethany – ele apontou, dando um suspiro cansado – Me desculpe. Talvez eu esteja um pouco paranoico, ainda mais depois da reunião de hoje.

Estendi a mão, pegando a dele – O que aconteceu?

—Deveria voltar para Livie, ela vai precisar de todas vocês agora – ele olhou triste para dentro da enfermaria - Eu realmente gostaria de vê-la. O despertar dela foi a melhor notícia no palácio desde que mortos e vivos foram contabilizados.

—Ainda não encontraram Francesca? – perguntou, e ele apertou com mais força minha mão – Fox?

—Não queria contar para você agora, você precisa apoiar a sua amiga – ele respirou fundo, olhando para mim com cuidado – Ela foi localizada em um antigo hospital fechado fora do centro da cidade, que está servindo socorrendo de feridos. Tinha ido a biblioteca da Universidade de Paris buscar alguns volumes que havíamos emprestados para ele. Eles já estavam em trânsito quando avisamos da situação da cidade - ele engoliu em seco, olhando para mim receoso - O carro tentou mudar a rota, mas não foi difícil reconhecer um carro do palácio. Tentamos transferi-la para nossa enfermaria, mas a condição dela impede que a tragamos até aqui. Sinto muito Bethany, ela não deve ter mais do que alguns dias...

Eu já não tinha mais lágrimas as quais chorar. Olhei para ele, sentindo a dor dentro de mim gritar – Eu sei que a situação de Paris ainda não é segura Fox, mas existe alguma forma de eu... Eu poderia ir ver ela?

Dava pra ver que ele já esperava por aquilo – Você irá ir amanhã – ele anunciou, parecendo cansado - Eu não posso ir com você, mas Dylan irá. Ele precisa sair do palácio um pouco antes que enlouqueça e me enlouqueça. Ele também conhece Neuilly-Sur-Seine melhor do que eu, e ficará feliz em ver Cameron.

—Cameron se machucou? - perguntei, aflita, lembrando do rapaz loiro de tantas noites atrás, quando o palácio ainda era desconhecido para mim.

—Não sabia que se conheciam - Fox comentou, franzindo a testa - Mas não, admiravelmente Cameron é um estudante de medicina e se ofereceu para ajudar com os feridos, ele quem nos avisou sobre Francesca.

—Sei que deve ter lhe custado algo, enviar a mim e Dylan até fora da cidade assim - As lágrimas finalmente vieram, em um misto de dor e alegria, enquanto eu pulava com os braços em torno do pescoço dele – Obrigada Fox, obrigada.

—É o mínimo que eu poderia fazer, por alguém que nos serviu tantos anos e por... – ele pareceu não saber muito bem como me definir, antes de finalizar – Por você. Agora, volte para suas amigas, eu voltarei para a reunião e informarei vossa majestade que a senhorita Livie está em boas mãos – ele olhou para o corredor e sorriu – E que o embaixador inglês enfim parece disposto a tomar um banho.

Sorri. Mais do que a viagem ao hospital, agradeci mentalmente a Fox por me fazer sorrir – Espero que Isabel não tente me morder – suspirei, e ficou sério.

—Se Isabel está com vocês, é bom que Dylan não tenha entrado – ele comentou, arrumando as roupas – E antes que pergunte para mim, já aviso que é melhor perguntar diretamente para ele amanhã durante seu passeio.

Senti meu nariz contrair, e então ele me deu um cumprimento de cabeça e se afastou, e eu entrei na enfermaria, percorrendo o labirinto até as meninas. Tina e Alicia estavam apertadas nos pequenos espaços que Livie não ocupava na cama, e Isabel tinha os olhos vermelhos, sentada na maca ao lado que parecia vazia. Observei Annie e Nisha, um pouco afastada do grupo no espaço limitado entre duas macas, sem saber muito bem o que fazer.

Alicia, sentada pouco atrás de Livie, penteava o cabelo dela e Tina estava cortando e lixando as unhas de suas mãos. Isabel me olhou irritada –Parece que você acompanhou o embaixador até o quarto, Bethany.

—Não seja amarga, Isabel – Pediu Annie, olhando para a Italiana com uma advertência.

—Eu estava falando com o Príncipe Fox e... – Balancei a cabeça, não mencionando Dylan na frente dela – E assegurando que nós estávamos com Livie, e que ele e a Rainha poderiam falar com ela quando...

Dei os ombros, deixando a frase morrer. Quando? Quando doesse menos? Quando a dor fosse suportável? Quando a rainha não estivesse dez mil assuntos para cuidar? Quando não houvesse uma cidade para se reerguer do medo? Quando não houvesse pessoas morrendo e o maldito mundo não tivesse virado de ponta cabeça?

Uma mão tocou meu ombro. Assustada, me virei para Nisha que se afastara de Annie, e apertava meu ombro.

—Quem? – ela perguntou. Em certo ponto, a morte se torna tão presente na nossa vida que a reconhecemos nos outros.

Balancei a cabeça, sem conseguir explicar quem era Francesca ou por que doía tanto. Eu gostaria de ser como ela um dia, quando não fosse mais jovem o bastante para ser uma musa – Uma bibliotecária. Cercada de ordem e livros e conhecimento e vida. Ela me ofereceu um sorriso triste, e então me abraçou.

Não era meu momento de sofrer ou de chorar, porém aceitei o abraço de Nisha como se um peso saísse de dentro de mim com aquilo. Eu estava prestes a me afastar dela quando outra pessoa se chocou contra minhas costas.

—Se falar qualquer coisa, você morre – Isabel ameaçou, me apertando com força – As duas.

Nisha sorriu, e nós ficamos ali por alguns segundos antes de voltarmos para Livie, que havia pegado no sono com Alicia escovando seus cabelos.

—São os remédios – Annie explicou, antes que perguntássemos qualquer coisa – Gostaria que ela tivesse comido algo antes de apagar.

—Ela não vai sentir fome tão cedo – Alicia secou uma lágrima. A lágrima de quem também perderá uma irmã um dia.

Tina largou a mão de Livie com cuidado sobre o corpo pálido e cansado de Livie, com um olhar confuso – Então, nós apenas... Ficamos aqui?

Nós nos entreolhamos. Com Livie dormindo, não havia o que nós seis fazermos ali, porém me afastei até a maca onde Isabel estava antes e me sentei – Eu não vou a lugar nenhum.

Isso bastou. Isabel tomou o lugar ao meu lado, Annie e Nisha as cadeiras de acompanhantes, e Alicia seguiu sentada atrás de Livie, com as pernas servindo de travesseiro para a amiga. Tina se arrastou até o pequeno espaço livre na ponta da maca, e pegou o caderno de desenhos da bolsa, rabiscando algo com os olhos distantes, e em silêncio, nos velamos o sono de Livie enquanto as horas passavam.

...............................

Dylan me esperava antes mesmo do sol raiar, junto a doze guardas na porta principal do palácio. Mas do Dylan que eu conhecia, havia apenas a pose descontraída encostado na parede do salão – ele vestia um sobretudo preto, pesado e embaixo deste, ele usava calças e jaqueta jeans escuras e um suéter caramelo. Os cabelos estavam molhados e despenteados, e os olhos cobertos de óculos escuros.

—Duque Dylan – reverenciei a ele, por etiqueta em frente ao guardas mas também para chamar sua atenção.

—Senhorita – ele curvou a cabeça, sorrindo. E então apertou os lábios ao me analisar. Nenhuma das meninas sabia o que estava acontecendo, então não pude pedir a nenhuma que me ajudasse a me vestir. Eu sabia que manter a discrição nas ruas de Paris era essencial, mas eu não sabia até que ponto o natural e o excesso se diferiam quando se tratava daquela cidade.

—Vai ficar com frio vestida assim – foi o que ele falou, estendendo a mão para um dos guardas que rapidamente lhe estendeu outro sobretudo preto. Ele o entregou para mim – Fox pensou que talvez não soubesse como pode ser frio além do centro da cidade.

—Eu cresci na Suíça, estou acostumada com frio – contrapus, mas aceitei o casaco.

—Seus pés porém estão há meses acostumando-se a um palácio aquecido – ele rebateu, sorrindo amistosamente e me entregando uma caixa – Estes eu arrumei por conta própria.

—É gentil da sua parte, mas não acho que irei precisar – sorri, passando os braços pelas mangas do casaco e amarrando-o em volta de mim.

Dylan tirou os próprios óculos olhando para o chão por um momento antes de se virar para mim muito sério – Não acho que isso seja algo sobre o qual você tenha poder de escolha Bethany – os olhos dele eram cautelosos. Não era uma conversa que ele gostaria de ter entre 12 guardas – E deveria perder os cabelos também.

Ele recolocou os óculos, e me ofereceu pacientemente o braço enquanto eu enrolava uma mecha de cabelo em volta das outras da melhor forma que conseguia. E então, seguimos através da porta, os doze degraus até o pequeno e discreto carro preto, entre dois bem maiores.

Dylan esperou que eu entrasse e seguiu ao meu lado, fechando a porta e cumprimentando o motorista antes de subir o vidro que nos dividia da primeira fileira de bancos.

—Harold é meu motorista desde os doze anos, podemos confiar nele com nossas vidas, não há quem conheça as ruas da França como este homem – Dylan me garantiu, olhando por cima do ombro enquanto quatro guardas ocupavam o carro atrás de nós. – Estaremos com nove homens, um ao lado de Harold no banco da frente, e oito em cada carro. Não podemos demorar mais do que quatro horas, no limite de nosso tempo Bethany, e apenas a viagem até Neuilly-Sur-Seine leva cerca de uma hora, mais o dobro para voltar, então precisa ser rápida. Devemos estar de volta ao palácio a tempo do almoço.

—Entendo – assenti. Mas não, eu não entendia. Talvez, uma parte de mim entendesse a segurança e o cuidado, mas toda a minha essência não entendia. Era de se esperar que a morte fosse rápida, mas o corpo de Francesca estava perecendo lentamente após tantas violações. Como se esperar que a dor fosse rápida?

O carro começou a se mover. Eu sabia, que havia um carro a nossa frente e outro atrás de nós. Eu sabia, que assim como eu mal conseguia ver o mundo do outro lado do vidro negro, o mundo também não conseguia me ver. Eu tinha total consciência do casaco enrolado em meu corpo e dos óculos pousados no meu colo.

Eu sabia todos os riscos que levaram cada uma daquelas coisas ao seus lugares, e ainda sim eu não entendia.

Ainda sim tudo aquilo parecia simplesmente demais. Todas aquelas barreiras que simplesmente me mantinha, assim como mantinham Dylan, assim como mantinham todos naquele palácio longe do mundo lá fora. Nós os deixávamos entrar, deixávamos que tocassem e provassem do nosso mundo mas nunca poderíamos fazer o mesmo com o deles?

—Respire Bethany – virei para o lado, surpresa. Dylan me olhava com divertimento. Revirei os olhos, e ele bufou uma risada – As vezes preciso falar isso para mim mesmo. As vezes é a única forma de lembrar que sou parte de algo.

—Você é? – aquilo pareceu surpreende-lo.

Ele deu os ombros – Todos somos, não é mesmo? – ele limpou as mangas perfeitas do sobretudo – Senão, qual seria o sentido?

—Não acho que exista um sentido – dei os ombros – Pessoas morrem. Outras vivem. Algumas em um palácio. Outras em uma cidade.

—É uma ironia amarga, não é? – ele perguntou, batendo os dedos na porta – Nós somos tudo que eles reverenciam, e ainda sim nós não somos mais do que peças do mesmo jogo de xadrez que algumas pessoas recusam-se a entender.

—Nunca gostei tanto assim de xadrez – comentei, indiferente – Não torne tudo isso pessoal, Dylan.

—Isso é pessoal, Bethany – ele afirmou, se mexendo no banco.

—Desculpe, mas não acho que possa comparar suas brigas infantis com Isabel com guerras e mortes. – bufei, e senti ele se virando exasperando para mim.

—Minhas brigas com Isabel podem resultar ou cessar – ele parou por um minuto, ao perceber que falava muito alto – muitas guerras e muitas mortes.

—Então deveriam deixar de brigarem sem motivo aparente toda vez que parecem se entender – afirmei, e vi ele apenas balançar a cabeça – Eu não entendo, vocês dois estavam bem!

—Estávamos – ele confirmou, e por algum tempo não disse mais nada além disso. Achei que a conversa havia terminado quando ele continuou – Mas isso foi antes da reunião com minha mãe e minhas madrastas, pelas minhas costas. Pelas costas de todos, para ser realista. Quando soube que queriam falar com Lady Venezza, Isabel jogou com todos para estar lá... Ela queria estar no controle da reunião, do acordo que achou que aconteceria naquela sala.

—Acordo? – franzi a testa, lembrando do que Isabel falará ao sair da sala de jantar naquela manhã.

" Eu tenho que transmitir a seriedade necessária, se o assunto for o que eu imagino." Ela havia dito, e então em seguida "guerra'.

—Ela realmente não contou nada a vocês, não é mesmo? – ele bufou – Isabel achou que nossas famílias formariam uma aliança. Achou que a reunião fosse a respeito do... Do nosso casamento.

—Vocês vão se casar? – arregalei os olhos, me virando bruscamente para ele.

—Pela coroa Bethany, não, não vamos nos casar – ele pareceu exasperado, e depois balançou a cabeça frustrado – Isabel havia entendido tudo errado.

—E é por causa disto que ela está tão irritada com você? – perguntei, completamente confusa nas explicações que ouvia.

—Ela disse que estava irritada comigo? – ele perguntou, mais ansioso do que curioso, mas ainda assim havia um tom levemente menos sombrio na sua voz agora.

Dei os ombros – Ela deu a entender, sabe como Isabel é – desfiz com a mão, nervosa – Ela o chamou de... Como era mesmo? Francolico desesperado para se provar a si mesmo, acho que foram as palavras. E muitos gritos em Italiano.

—Francolico? – ele arfou – Eu sou um maldito Francês!

—Então, se não há casamento, qual o problema? O que aconteceu com vocês durante o ataque? – Insisti, enquanto ele xingava em voz baixa.

—Durante não, antes. Isabel foi naquela maldita reunião com minha mãe e minhas madrastas. As três armaram tudo pelas minhas costas. Deveriam estar aqui apenas para passar minhas últimas duas semanas em Paris comigo – ele revelou muito cuidadosamente – E quando viram que eu não mudaria de ideia, decidiram encontrar Lady Venezza e implorar por uma posição para mim na guarda vermelha.

—O exercito Venezza? – perguntei por confirmação. Eu já ouvirá falar deles antes.

—Exato – ele afundou no banco, balançando a cabeça com os olhos voltados para cima – O maior exercito de toda eurásia.

—Por que iriam querer envia-lo para a guarda vermelha? – perguntei, confusa – É longe de tudo, de Paris e de sua família...

—Aos olhos delas, é mais seguro do que ir para Berlim – ele sorriu amargamente, com um olhar significativo – Irei me juntar ao exército em Berlim e lutar contra os rebeldes. – Minha cabeça doeu. Berlim. Onde Apolo estava antes de Isis e Marian morrerem. Minha expressão deve ter ficado muito evidente, pois ele pausou antes de continuar – Meu treinamento e, mais do que isso, meu título, me conferem um posto de Major que por si só é muito mais seguro do que ser um mero soldado. Mas isso não tranquiliza tanto o coração de minha mãe quanto estar em um exército onde haveriam menos batalhas a lutar e mais homens para morrer no meu lugar.

—Mas em vez de Lady Venezza ou Lady Flora, foi Isabel quem elas encontraram – resumi, apertando os lábios – E Isabel não gostou do assunto tratado...

—Isabel se enfureceu em algum momento, saiu no meio da reunião direto ao meu escritório, gritou comigo em tanto italiano quanto eu poderia entender, me chamou de tantos nomes inimagináveis, e no fim eu já nem sabia o que a enfurecerá. O casamento, minha partida, a reunião, Berlim, em certo momento ela até mencionou seu aniversário e então... – ele balançou a cabeça – Minha mãe entrou na sala no exato momento que ouvimos a primeira bomba e precisamos nos esconder. Minha mãe usou todo o tempo possível tentando mudar minha mente e Isabel, não falou uma palavra. E então, quando saímos ela viu Lilie e eu precisava estar com minha mãe... E ela está sendo apenas, Isabel, desde então.

—Disse que partiria em duas semanas – falei, franzindo a testa – Seria antes do aniversário dela.

Ele abaixou a cabeça – Sim, seria. Eles dobraram meu prazo, mas mesmo agora, partirei na manhã seguinte a festa.

—Ela parecia feliz, naquela manhã antes da reunião – falei, pensativa – Determinada. Como alguém que vai de encontro a uma missão. Se ela realmente achava que se casaria com você...

—Isabel não é tola, Bethany. Ela sabe de todos os pequenos acordos do palácio, entre estes um que diz que eu não posso fazer um pedido de noivado antes de Fox escolher sua noiva – ele sorriu debochadamente – Ela provavelmente estava muito orgulhosa de si mesma por ter jogado com todos da forma que fez. Se nos impusessem um casamento, uma aliança de armas, riquezas e genética, ela teria todo o poder para negociar ao próprio favor.

—Berlim – testei a palavra, que por si só soava amarga – Dylan, você tem certeza de que é isso que você quer?

—Eu vou lutar pelo meu pais e pelo meu rei, Bethany, desafiando quem tentar desonrar seu nome em toda Eurásia e além dela, e construir uma glória que será lembrada pelos séculos após minhas morte. E este é um sonho muito mais seguro e estável do que estar casado com Isabel Venezza.

Assenti, sem deixar de rir, mas algo do lado de fora chamou minha atenção. Uma estrutura gigantes, bela e intocável. – Esta é...

—Ela mesma, a torre Eiffel – ele sorriu, sem sequer se virar para observar o mesmo que eu. Estreitei os olhos inutilmente tentando ver mais claramente pelo vidro – Este é o caminho mais comprido até o hospital, entende, mas também o mais seguro no momento. A torre tem segurança tão constante quanto o palácio. Tentamos acreditar que enquanto a mantivermos de pé manteremos nosso orgulho em pé.

—Homens e seu orgulho – revirei os olhos, e brinquei – Então, quando você for importante o bastante, eles lhe mandarão de volta a paris para cuidar da torre?

Ele levou a mão no peito com muita seriedade – É meu grande objetivo.

Rimos, e por fim nos mantemos em silêncio enquanto seguíamos pelo arco do triunfo até os limites de Paris, até pararmos em frente ao grande e mal conservado prédio pálido na luz fraca do início da manhã.

—Por este lado – Dylan gesticulou, antes que eu abrisse minha porta. Deixei que ele saísse e o segui, para o lado de fora onde os guardas já estavam posicionados, nos escoltando até o lado de dentro. Apenas quatro entraram conosco.

—Dylan – Loiro e brilhante no meio do lugar deprimente, Cameron abraçou Dylan batendo nas costas dele. Sob o jaleco, usava calças puídas e uma camisa branca mal lavada – E senhorita Bethany, as cartas avisavam da sua vinda mas tenho a impressão que nunca me desculpei pela primeira vez que nos vimos. Cameron Blanc-Dumont, ao seu dispor milady, permitam-me guia-los por aqui, tudo está uma completa bagunça.

—Fiquei feliz em saber que retomou seu estudos velho amigo – Dylan comentou, enquanto o seguíamos pelos corredores cheios de gente – E surpreso quando descobri o que estava fazendo aqui.

—Isso, é obra de uma garota – riu Cameron, limpando os óculos e se virando para mim – Uma que conheci na mesma noite que conheci a senhorita, a propósito. É uma pena que ela não esteja aqui hoje para mim apresenta-los a ela.

—Em outra ocasião, certamente – sorri, não só para ele mas para aqueles no chão e macas em nossa volta, surpresa que mesmo feridas, sujas e claramente famintas, elas eram capazes de sorrir de volta. Me virei para Dylan – Não há nada que possamos fazer para ajuda-los?

—Nós temos bastante remédio e comida, não se preocupem – Cameron alegou, gentilmente cumprimentando algumas pessoas – Somos todos voluntários, então nos falta gente para atender a todos e servi-los, e como o hospital original foi fechado poucas áreas são seguras para mantermos as pessoas. E são muitas pessoas.

—Não entendo como podem simplesmente... Fechar um hospital – não era um pergunta, e Dylan pareceu engasgar ao me ouvir, mas Cameron parecia confortável em esclarecer tudo.

—Todos os centros hospitalares Rives de Seine foram fechados após a quarta guerra mundial, quando os médicos e enfermeiros insistiram em cuidar e abrigar crianças negras. As verbas foram cortadas e a população pouco se agradaria em ajudar, então foram obrigados a fechar e caíram em ruínas. Com o tempo, passou a ser mais cara coloca-los em uso do que ampliar e melhorar hospitais existentes, porém em situações como esta – ele parou por um momento, chegando a prancheta e nos levando por um segundo corredor – Nem todo o tamanho ou tecnologia do mundo se compara a proximidade.

Assenti, enquanto ele parava em frente a uma porta e abria para que eu entrasse. Como o resto, o quarto era sem nenhuma vida. Francesca, com os cabelos dourados em volta da cabeça, estava com os olhos fechadas ligada a intermináveis fios e máquinas.

—Queriamos esperar até amanhã a noite para desligar as máquinas. O estado dela, os danos em sua cabeça e órgãos, é como se já estivesse morta porém quando a encontramos com roupas do palácio fizemos tudo que podíamos para que ela tivesse alguma chance – Cameron explicou, parado ainda na porta. Segurei a mão dela. Eu lembrava da primeira vez que entrará naquela biblioteca gigante e me senti tão perdida e acolhida ao mesmo tempo. A mão dela estava gelada. Meu coração sabia que ela já havia ido.

—É um quarto grande – falei por fim, engolindo as lágrimas – Caberiam cinco, talvez sete pessoas aqui?

—Mesmo se colocássemos nove, estariam mais confortáveis do que no corredor – Cameron comunicou muito calmamente – Senhorita...

—E estas maquinas... Em trinta e seis horas, quantas pessoas poderiam salvar? Pessoas que não precisam de todas de uma única vez? – perguntei, e senti ele falhar antes de responder.

—Até cinco pessoas, senhorita Bethany.

Me virei para ele, e eu sabia que ele já entenderá onde eu chegará com aquelas perguntas.

—Francesca não merece ficar presa nessas máquinas quando tudo que ela era já partiu – falei, e traída pelos meus próprios olhos senti as lágrimas quentes escorrerem – Eu posso pedir que elas sejam desligadas, ou...?

—Ele pode – Cameron gesticulou para Dylan, que olhava para mim.

—É o que acha que deve fazer? – perguntou Dylan para mim, cauteloso. Assenti – Traga os documentos e prepare nove de seus pacientes para serem transferidos, Cameron. Também entre em contato com o crematório.

—Crematório?- perguntei, me sentindo um pouco fora do meu próprio corpo naquele momento.

—Há um lugar, na biblioteca do palácio, onde guardamos urnas – Dylan falou gentilmente – Pensei que seria um bom lugar para as cinzas, se for do seu agrado Bethany.

Senti minha cabeça balançar, girando. Distante. – Seria bom.

Dylan assinou os documentos e Cameron desligou as máquinas. Fui eu que fiquei ao lado de Francesca, segurando a mão dela até sentir seu pulso parar enquanto outras pessoas eram colocadas em colchões no chão e nas cadeiras e poltronas. Quando a ultima pulsação morreu e ela foi levada, uma mulher não muito mais velha do que eu foi colocada na cama ligada a um dos aparelhos. Atrás dela, tropeçando nos próprios pés, uma menina sentou na beira da maca e me observou com cuidado.

—Você é a rainha? – perguntou ela, cheia daquela curiosidade que só as crianças podem ter.

—Não, eu não sou – sorri para ela, ouvindo o estomago da criança roncar. Como se respondendo a ela, outros quatro estômagos das nove pessoas ali fizeram o mesmo.

—Ela foi levada Bethany, podemos ir se quiser – falou Dylan, voltando ao quarto apenas para mim perceber que não notará sua ausência. Olhei para o relógio pendurado na parede. Haviam se passado apenas duas horas.

—Disse que tínhamos quatro horas – falei, respirando fundo e recobrando meus sentidos por um momentos – Eu gostaria de ficar por mais uma hora e ajudar no que eu puder. Posso servir comida e fazer ataduras ou qualquer coisa que precisarem.

—Você está me notificando ou pedindo a minha autorização? – ele perguntou, surpreso.

—Eu... – eu percebi que na mão que eu não usará para segurar a de Francesca, a caixa de óculos escuros de Dylan. Entreguei para ele, e me virei para Cameron que observava o quarto lotado, ainda mais com nós dois dentro – Desculpe duque Dylan, não tenho certeza se estava falando com você.

Cameron sorri, levantando as sobrancelha – Toda ajuda é bem vinda. Devem ter comida pronta a este horário, pode começar por este quarto e seguir por quantos conseguir até o final do corredor.

Com uma confirmação de cabeça, ele me indicou o caminho até a cozinha e eu de repente estava de volta a Corippo, com as crianças famintas doentes no inverno sem saírem de seus quartos enquanto por algum motivo, nenhuma gripe me pegava. Dylan em algum momento pôs seus talentos em práticas costurando ferimentos e eu me vi perdendo a noção do tempo, distribuindo comida, sorrisos e trocando palavras com as pessoas nos quartos e corredores daquela pequena parte do hospital. Eu não me importava com o sangue e as feridas, de repente eu estava ajudando e fazendo parte de algo real. Algo mais real que um mundo de fantasias brilhantes.

No último quarto, haviam quatro pessoas dispostas numa peça muito menos do que aquele que eu começará. Ajudei uma senhora a se sentar antes de lhe entregar comida, e quase derramei a sopa nela ao ter uma luz estourando em meu rosto. Ao levantar a cabeça, percebi que o flash viera da câmera do senhor do outro lado da cama, com uma perna engessada e um curativo na testa, mesma câmera que agora cuspia para fora uma fotografia.

—Mil perdoes senhorita, eu não quis assusta-la. A senhorita é uma musa, não é mesmo? – perguntou ele, esperançoso e então apontou para a senhora na cama – Nossas netas sonham em ser musas, elas irão ficar muito feliz se voltarmos vivos e com uma foto de uma verdadeira musa para a Inglaterra.

—Bem, sendo assim como eu poderia negar? – estendi a mão para a foto – Eu posso ver?

—Ah, sim, claro senhorita – ele me alcançou o pequeno quadradinho. E eu era linda. Sem os vestidos longos, os saltos ou a maquiagem. Eu estava ali, usando calças forradas e um sweater grosso sob o blazer de Dylan, ou Fox, ou quem quer que o tenha providenciado. Eu estava usando botas planas e minha trança de Corippo. Na foto, eu estava de lado entregando uma tigela de sopa para uma mulher doente no cenário mais depreciativo possível. E ali, eu era linda. – Posso tirar outra? Talvez uma que pegue melhor seu rosto?

—Ah, claro – assenti, me endireitando e sorrindo enquanto outro flash estourava em meu rosto ao mesmo tempo que a voz de Dylan estourava em meus ouvidos.

—O que você está fazendo? – perguntou ele, abismado – Não pode tirar fotos, Bethany, é perigoso!

—O que tem de perigoso em uma foto? – perguntei, mas ele já havia seguido até o homem e pego a fotografia que saíra de dentro da câmera.

—Desculpe senhor, eu preciso ficar com isso – ele colocou a foto no bolso e se virou para mim muito sério – Já passamos uma hora do tempo que deveríamos ficar aqui, nos precisamos ir agora.

—É claro, duque Dylan – assenti, fazendo a volta na cama para apertar a mão do senhor – Diga as suas netas que conheceu uma musa. E que elas deveriam ser médicas em vez de sonharem com uma vida como a minha.

Dylan já havia dado as costas, sem nunca saber que havia outra foto além daquela no bolso dele, e eu o segui, sabendo que haviam lágrimas nos olhos do homem naquele quarto. Eu não me importava com as regras, não naquele dia.

—Fox ficará furioso – suspirou ele, segurando a porta do carro para mim entrar.

—Foi apenas uma hora a mais – falei, estendendo a mão para ele que me olhou confuso – A foto.

—Ah, isto – ele me entregou, fechando a porta com força. O mesmo foi feito na fileira a frente.

—E os óculos – acrescentei, enquanto ele me entregava a caixa. Coloquei os óculos escuros, encostando a cabeça no vidro escuro daquele carro escuro, enrolada em um casaco escuro, com toda a escuridão me protegendo enquanto o carro dava partida e eu dormia no caminho de volta ao Petit Palace, um sono cheio de crianças feridas e doentes. Crianças que estiveram no passado distante e no mais breve do presente. Crianças rindo, chorando e cantando ao meu redor uma cantiga que ninar que me assombrava.

—Cinco horas - A voz de Fox me acordou, junto a luz que veio da porta contrária a minha quando esta foi aberta.

—Vossa alteza real, preciso pedir que volte ao interior do palácio - Um guarda, imaginei que fosse. Tirei os óculos, esfregando os olhos e vendo Fox parado na porta.

—A partir desde momento, os jardins estão liberados senhores, seus deveres agora é garantir que eles estejam seguros para permanecerem assim - Fox anunciou, se afastando para que Dylan saísse do carro e eu o seguisse - Por que demoraram tanto tempo?

Dylan sorriu olhando para mim. Esperando.

—Foi minha culpa - falei por fim. Não uma confissão, apenas a verdade - Depois que vi o hospital e as pessoas insisti em ajudar e perdemos o tempo. Sinto muito.

—E você permitiu? - perguntou ele para Dylan, furioso.

—Permitir? Esta, meu caro príncipe e primo, é pior do que a própria Isabel Venezza - ele me olhou feio, e depois deu os ombros - Eles precisavam de ajuda, Fox. Também me ocupei fazendo suturas e perdi a hora.

—Não sei se reprimo vocês ou os agradeço - suspirou Fox, olhando para nós dois, mas tamanho o alívio em seus olhos não conseguia sequer parecer irritado.

—Eu aceito os agradecimentos - Dylan provocou, antes de despedir-se com um aceno de cabeça - Me encontre no meu escritório, certo? Tem algo que preciso tratar com você.

—Em alguns minutos - Fox avisou, se virando para mim - Francesca?

—Desligamos as máquinas. Dylan disse que será cremada e as cinzas poderão ficar na biblioteca - relatei, porém no fim parecia mais como uma pergunta.

—Sim, elas podem - ele concordou - Imagino que tenha sido doloroso. Tem algo mais que eu possa fazer?

—Já fez muito Fox - estendi a mão, tocando o braço dele - E é bom ter os jardins de volta, mas acho que eu deveria dormir um pouco agora. Deveria ver o que Dylan quer tratar.

—Algo para os feridos que vocês ajudaram, sem dúvidas - ele sorriu, ajeitando a gravata - Bom descanso, senhorita Bethany.

—Boa tarde, vossa alteza - reverenciei, antes de entrar no palácio e segui até a Casa das Musas, meu quarto e por fim minha cama, na companhia silenciosa de Romeu e no cansaço que me impedia de chorar.

.....................................

Apesar do que eu dissera a Fox, demoraram mais alguns dias até que eu enfim fosse para os jardins, disposta a tirar Romeu de seu cativeiro naquele quarto – e em parte, me tirar dele também. Os jardins não estavam nem perto da glória de antes, mas estavam sendo rapidamente reconstruídos. Havia floristas e marceneiros por todos os lados, jardineiros e arquitetos também faziam parte do gigantesco time que pedaço por pedaço montava novos jardins em volta ao Petit Palace.

Partes desses novos jardins eram constituídas por enormes paredes de folhas, onde se dizia que na primavera cresceriam flores e talvez até dessem frutos. Esperava que chegassem até a primavera em pé para que eu descobrisse.

—Eu não gostaria de deixa-lo desconfortável sobre isso Nicholas, mas eu realmente preciso saber até onde vocês chegaram às pesquisas sobre a princesa – Parei imediatamente, reconhecendo a voz de Napho do outro lado de uma parede de folhas que não devia ter sido erguida a mais do que um par de dias – Depois de tantos anos, qualquer informação é importante.

—Desculpe senhor, tudo que conseguimos foi o que o palácio conseguiu – um homem respondeu uma voz familiar que eu não conseguia reconhecer – Tudo sobre a princesa perdeu-se em Londres. Não há mais nenhuma informação sobre ela.

Pisquei algumas vezes, confusa. Napho estava perguntando sobre Annie? A Inglaterra estaria interessada após tantos anos do sumiço dela em encontra-la – Será que não confiavam em Fox no trono?

Romeu passou por entre os meus pés, seguindo em direção à passagem entre duas das paredes de folhas, e também em direção a conversa, me forçando a segui-lo e parecer surpresa ao encontrar Napho – porém, realmente me surpreendeu seu acompanhante. Eu o havia visto duas vezes antes. Era branco, mas estava queimado do sol e sujo de terra. Os olhos eram grandes e castanhos, e agora tinha uma marca de corte no lábio inferior. Mas a maior mudança era o cabelo – nas vezes anteriores era curto perto da cabeça, mas agora cachos castanhos chegavam quase a tapar suas orelhas.

Um rapaz arrastado de um baile. Um prisioneiro que daria mais trabalho morto de que vivo. Um traidor. Uma vítima. Eu não sabia o quanto as duas coisas se diferiam.

Ele me olhou assustado e se curvou – Senhorita.

—Bom dia – sorri da melhor forma que consegui, e depois virei para Napho – Bom dia embaixador.

—Bom dia senhorita Bethany – ele cumprimentou com um sorriso brilhante – Já conhece Nicholas?

—Nós nos cruzamos algumas vezes – permiti meus olhos correrem rapidamente para os pulsos dele. Já não tinham as marcas de cordas, porém as mãos tinham feridas e ataduras por todos os lados.

—Eu deveria ir senhor. Como eu disse vou acabar entrando em problemas se me pegarem falando com o senhor ou com a senhorita. Com licença – ele se curvou, afastando-se e então se virou novamente de uma forma um tanto brusca – Senhorita Bethany, certo? Desculpe a ousadia, mas posso fazer uma pergunta?

—É claro – respondi intrigada.

—A nova musa, a garota negra. Ela está bem? – ele perguntou hesitante – Tentei ajuda-la na noite do ataque, mas acredito que ela tenha me confundido com os rebeldes, e não a vi desde então.

—Confundido não é a palavra que eu escolheria, Nicholas – meu tom era mais arrogante do que eu pretendia, mas não me senti arrependida. Não com as mortes e todas as pessoas feridas que eu presenciara.

—Existem formas diferentes de se rebelar, senhorita – ele defendeu-se muito calmo – Alguns de nós simplesmente não querem ferir ninguém. De nenhum dos lados.

Assenti – Nisha está bem, se recuperou em poucos dias.

Ele sorriu – Fico feliz com isso. A presença dela aqui é a prova de que tudo que eu e Adam acreditávamos é possível. Com sua licença.

Esperamos que ele se afastasse com calma, enquanto Romeu parecia disposto a arrancar todas as folhas da nova parede.

—Não precisava ser tão dura com ele – falou Napho, com uma voz ressentida – Eu pedi para conversar com ele.

—Ele fez por onde merecer dureza e desconfiança – argumentei, puxando Romeu para longe das folhas.

Ele bufou - Isso não é muito diferente do que dizem da sua amiga Nisha.

—O que você tinha para falar com ele? – perguntei – Como poderia me dizer qualquer coisa e você sequer saberia se é verdade!

Ele deu os ombros - É preciso se arriscar senhorita. E de qualquer forma só vim falar com ele por algo que o príncipe Fox me comentou.

—O que? – Fox havia falado para Napho sobre Annie?

—Que ele salvou a vida do príncipe durante o ataque! – Napho exclamou surpreso – Ele é um prisioneiro aqui, um traidor. Ele foi considerado um deles durante o ataque e em vez de usar isso para se vingar, ele protegeu o príncipe quando viu isso.

—Ele ainda é um traidor – aleguei.

—Por querer um mundo diferente? Por acreditar que a algo melhor do que o que temos agora? – Napho perguntou, empolgado. Fascinado – Talvez seja, mas estou perplexo Bethany. Fox sequer é um rei e inspirou a lealdade de um rebelde que teve o melhor amigo, irmão e amante morto pela família real.

—Você soube de Adam – suspirei. Eu ainda tinha pesadelos com a morte dele. Napho assentiu – De qualquer forma, não deveria deixar que as pessoas lhe vissem falando com um prisioneiro tão casualmente.

—Por que não? É o meu trabalho, senhorita – ele parecia genuinamente confuso, com a testa franzida. – E já que não posso passar meu tempo com Livie, é melhor que eu faça o que vim fazer aqui antes que me mandem para casa.

—Você ainda não a viu? – aquilo me surpreendeu – Desde que ela acordou?

—Suas amigas sempre estão com ela – ele deu os ombros. Mas havia dor nos seus olhos. – Desde que ela acordou. – observei seu rosto com cuidado, talvez por tempo demais até que ele notou e deu um sorriso calmo – Está tudo bem senhorita, é só difícil ficar longe... Às vezes eu me pego indo em direção à enfermaria sem saber o porquê. Coisas que nunca aconteceram comigo antes.

—Por favor, não me faça me arrepender disso embaixador – pedi, muito calmamente, dando um olhar sugestivo para ele – Mas acredito que esteja quase na hora dos remédios dela, e ela vai estar dormindo se subirmos agora.

—Eu preferia uma situação onde pudesse conversar com ela – ele se mexeu, desconfortável, enquanto eu esperava pacientemente – É a melhor proposta que eu recebi até agora. Eu ficaria grato, senhorita Bethany.

—Então vamos entrar – tomei o braço dele, seguindo para dentro do palácio, os corredores finalmente após tanto tempo barulhentos e movimentados. Estávamos quase na porta da enfermaria quando um vulto negro e vermelho esbarrou contra mim, sem parar sua quase corrida pelos corredores do palácio. Da enfermaria, logo atrás dela, saiu Livie, segurando-se na parede – Isabel!

—Livie, você precisa se deitar – pediu Tina, vindo atrás dela – Deixe-a, ela vai entender.

—Eu vou falar com ela – Alicia apresou-se em dizer – Você precisa descansar, acabou de ser medicada.

—Eu não devia ter dito aquilo... Não dessa forma, não... – Livie levou a mão na cabeça, com os olhos cheios de lágrimas, e nem sequer consegui ver Napho saindo do meu lado e a pegando antes que caísse apagada no chão.

—O que aconteceu? – perguntei assustada, enquanto ele a levantava no colo. Tina fez sinal para que ele a seguisse para dentro do quarto carregando Livie.

—Estava tudo bem, estávamos conversando e então Livie disse que assim que se recuperasse totalmente pediria para a rainha parar partir – Alicia contou com a voz tão baixa que primeiro achei que não queria que alguém ouvisse, mas então percebi que ela estava dolorida. Aquilo de alguma forma a magoara também – Falou em ir para a Alemanha por algum tempo, procurar algo da sua família... Isabel explodiu, desejou boa viagem e saiu correndo e chorando como um vendaval.

—Essa não... – suspirei, balançando a cabeça – Alemanha?

—Qual o problema com a Alemanha? – perguntou Alicia, franzindo a testa. Balancei a cabeça – Eu deveria ir falar com ela. Pode entrar e dizer para Apolo esperar por mim? Ele já recebeu alta, e diz que está bem, mas eu quero ter certeza que ele vai estar bem acomodado no dormitório e...

—Alicia – A segurei pelos ombros, para que parasse de se mexer apenas por um minuto – Fique com Apolo, eu falo com Isabel.

—Bethany, ela vai descontar tudo em cima de você – Alicia me alertou se afastando das minhas mãos – Acredite em mim, você não quer passar por isso.

—Não, mas acho que é melhor eu ir – sorri para o chão, e depois para ela – E Apolo pode fingir-se de forte o quanto quiser, mas ele precisa da sua ajuda ou irá quebrar aquela perna antes mesmo de chegar ao dormitório, seja lá onde for isso.

—Tem certeza que está tudo bem? – ela parecia incerta, mas ainda sim esperançosa. Ela queria estar ali, e eu sabia disso, por que não era sempre que ela tinha a chance de cuidar dele. Era algo que era doloroso de se entender – Talvez Annie possa ajudar, ela deve estar na sala de jantar esta hora...

—Eu vou ficar bem – garanti, empurrando ela – Agora, vá cuidar de Apolo.

—Tudo bem – ela sorriu, entrando de volta para a enfermaria. Vi de relance Tina se aproximando da porta, e Napho sentando-se naquela mesma cadeira da qual tivemos que expulsar ele apenas três semanas antes, mas não esperei por ela. Pus-me a caminhar pelos corredores até perceber que não fazia o caminho para a Casa das Musas: Eu estava então, saindo do palácio novamente, e desta vez em direção aos estábulos.

Ela não estava lá. Nem Venezza.

E se ela estava a cavalo, a única forma de ir até ela seria a cavalo. O escolhido foi um cavalo um pouco menor do que os garanhões que Isabel e os outros montavam que sequer tinha um nome, apenas um número gravado em cima de sua baia.

Demorou mais tempo para sela-lo e montar do que de fato para encontrar Isabel na área de equitação. Dava para perceber quão nervosa ela estava apenas pelas batidas de Venezza no solo, mas havia algo leve na imagem num todo. Pensei quão difícil deveria ter sido para ela também, ficar presa dentro do palácio confinada sem poder cavalgar.

Aproximei-me aos poucos, surpresa por ela não ter notado a minha presença antes de eu estar realmente perto dela – De todos os dias do ano, Bethany, você resolveu cavalgar justo hoje?

—Eu estava procurando por você – esclareci, e ela assentiu como se já houvesse constatado aquilo.

—Eu imaginei – ela revirou os olhos, segurando com força as rédeas de Venezza – Infelizmente, para você, não estou com humor para conversa.

Ela acelerou, voando e jogando terra em mim. Fiz o máximo que consegui para tentar alcança-la, mas a velocidade de repente fez minha cabeça girar, e me segurando com força para não cair, puxei as rédeas do meu cavalo o fazendo erguer-se e me jogar no chão com toda a força.

Aquilo chamou a atenção dela – Você é mesmo uma idiota – ela grunhiu, pulando de Venezza assim que chegou perto o bastante e me ajudando a levantar – Você cavalgou uma vez na vida e acha que consegue alcançar alguém que andava de cavalo antes de caminhar?

—Eu tinha que tentar – dei os ombros, massageando o quadril.

—Você está bem? – ela perguntou, duramente. Assenti, ainda tentando ter certeza disso – De todos os cavalos, Bethany... Este acabou de chegar, é quase selvagem.

—Ele parecia tão dócil – suspirei, pegando a rédea do cavalo e puxando para acompanha-la em direção aos estábulos de novo.

Ela parecia me achar completamente maluca – Você precisa rever seu conceito de dócil, nem sequer me deixaram montar neste... – ela parou no portão do cercado, olhando para cima com uma expressão dolorida.

Segui o olhar dela, vendo Dylan rindo junto a uma jovem de cabelos loiros nas janelas do segundo andar, e então com os olhos cheios de lágrimas piscou diversas vezes para o chão antes de sair pisando duro em direção aos estábulos, deixando Venezza para trás.

—Eu os levo senhorita – falou um rapazinho, não muito mais velho do que dez anos, quando fiz menção de pegar as rédeas de Venezza junto aos do cavalo que eu levava. – A senhorita Venezza gosta que escovem seu cavalo quando ela não tem tempo, e ela parecia apressada. Quer que eu escove o seu também.

—Você quer escova-lo? – perguntei, sem ter certeza de qual seria a melhor resposta para dar a ele.

Ele balançou a cabeça com muita certeza - Se eu escovar bastante deles, eu ganho duas sobremesas.

Sorri – Então eu ficaria muito feliz se pudesse escova-lo para mim – tirei um par de notas do bolso do casaco – E ainda mais feliz se fizer isso do lado de fora do estábulo, enquanto eu falo com a senhorita Venezza.

—Sim senhora – ele sorriu radiante, pegando as rédeas dos cavalos e os guiando. Nem tão radiante estava eu, entrando no estábulo atrás de Isabel.

Ela estava parada em frente a uma baia. Reconheci o cavalo dentro desta assim que me aproximei – Triomphe.

—Você realmente não desiste, não é mesmo Bethany? – ela perguntou, sem se virar para mim – Vocês não se casam de se divertir com meu sofrimento?

—Céus, eu me perguntava a mesma coisa nos meus primeiros meses aqui a seu respeito – respondi me apoiando em uma viga de madeira – Qual o seu problema, Isabel?

—Não é da sua conta – ela grunhiu, estendendo a mão e passando na cabeça de Triomphe. "o campeões são treinados para respeitarem um único dono" Fox me dissera uma vez, mas ali estava o cavalo de Dylan Bordeaux feliz em ser acariciado por Isabel Venezza – Não é da conta de ninguém. Vocês se sentem mais bondosos e amáveis simplesmente por se meterem onde não são chamados?

—Eu particularmente me sinto bastante bondosa e amável quando não estou chorando por mim mesma – dei os ombros, enquanto ela se virava para mim com um sorriso amargo.

—Você já não é a mesma Bethany que entrou neste castelo – ela constatou, me analisando de cima a baixo – Não, tem algo diferente em você. Acho que é o que acontece quando se percebe que é a próxima rainha.

—Quer mesmo fazer esta conversa sobre isso?

—Esta conversa é sobre isso Bethany! – ela grunhiu, elevando a voz – Você será rainha! Alicia se casará com o guarda dos sonhos dela! Annie e Tina seguiram suas vidas neste palácio... E eu? O que eu vou ter? Meu pai está morto. Lilie está morta. Para minha mãe, eu vou estar morta assim que Fox anunciar no dia seguinte ao meu aniversário o nome de outra para receber a coroa. Livie vai embora. E Dylan parece disposto a gastar cada um de seus dias com uma meretrice diferente antes dele...

Ela parou. Ela não podia me contar aquilo. Ela não sabia que eu já sabia. –Antes de ele ir para Berlim – terminei, e ela me olhou surpresa – Dylan me contou.

—E ele dormiu com você também? – ela ironizou amarga. Dentro da baia, Triomphe relinchou – Tranquillo. Não posso fazer nada que seu dono seja stupido o bastante para te levar para a morte.

—Se te consola, não acho que eu vá ser rainha – comentei, olhando para o chão – Mesmo se Fox ignorasse tudo que me desqualificaria para isso, o conselho tem que aprovar a decisão dele e o embaixador deu a entender que eles têm outro nome em mente. Ainda pode ser você.

—Fox costumava ser o bastante pra mim – ela suspirou, olhando enquanto o menino trazia Venezza para dentro. Ficamos em silêncio por alguns segundos até que ele saísse – E então você chegou. E ele olhava para você daquele jeito que me fez querer que alguém me olhasse assim, e eu entendi toda a merda que Alicia sempre falava. Eu queria aquilo.

—Você tem aquilo – falei, olhando para Triomphe com a cabeça agora para fora da baia.

—Não importa, eu não poderia viver com Fox vendo-o olhar daquele jeito para você, poderia? – a voz dela beirava o deboche de tão absurdo que ela achava a ideia – Uma garota precisa se sentir se não desejada, respeitada. – ela balançou a cabeça – Isso não é sobre um homem Bethany. Isso é sobre o que sobra pra mim? Sem uma família, vendo todos os que amo e confio morrerem e partirem. Uma bailarina esperando a hora de falhar e tornar-se uma professora como minha tia?

—Sua tia é uma grande professora – aquilo não pareceu agrada-la.

—Ela é – ela concordou – Mas eu quero ser mais do que uma grande professora. Meu pai me trouxe para Paris com sete anos, e não me trouxe para ser uma professora de dança por que foi simplesmente o que me restou. Sozinha em um estúdio depois que todos foram embora por que paredes são tudo que sobraram.

—Não vou te deixar ficar sozinha – era uma promessa confusa, percebi. Céus, Isabel Venezza me odiara noventa por centro do tempo que compartilhamos. Era uma promessa cheia de contrapontos. Era uma oferta de uma companhia que talvez fosse pior do que a solidão – Se você quiser conversar, gritar ou simplesmente estiver se sentindo confusa com tanto vermelho e verde por todo o lado e precisar fugir... Nós tivemos maus momentos, mas eu gostaria de ser sua amiga.

Ela respirou fundo e então bufou – Agora você está sendo um pouco sentimental demais, Bethany. – ela revirou os olhos, e então em um gesto inesperado ela se lançou até mim e me abraçou – Espero mesmo que eles escolham você. Sarai un dannatamente grande regina.

—Senhoritas, esta cena está começando a me dar algumas ideias divertidas – até mesmo a minha boca amargou ao ouvir a voz de Dylan, antes de nos afastarmos e o sorriso divertido dele desmanchar-se ao ver o rosto de Isabel – Você estava chorando?

Por alguns segundos enquanto ela o encarava, pensei que fosse soca-lo, porém ela levantou o dedo do meio e anunciou - Vai all'inferno.

Ele a observou sair com os olhos arregalados, e então se virou para mim parecendo realmente preocupado – Aconteceu alguma coisa? Foi à mãe dela, ou o que eu ouvi sobre...

—Pelo menos você teve a decência de não trazer a sua amiga aqui – grunhi, passando por ele e sendo forçada a parar para o garotinho entrar com o cavalo que eu usara.

—Bethany, não sei o que vocês acham que viram, mas eu estava... – ele começou a defender-se, mas ergui minha mão para impedi-lo.

—Não é da minha conta, Dylan. Entendo algumas decisões suas, não todas, mas eu não gosto de ver minhas amigas magoadas – tirei outra nota para o menino que me olhou com os olhos arregalados - Isso, é pra você não escovar o cavalo dele – apontei para Dylan – Se não fizer isso, amanhã eu trago um bolo inteirinho para você.

Ele engoliu a saliva, extasiado.

—E agora você é amiga de Isabel e suborna crianças – Dylan gritou enquanto eu seguia para fora do estábulo. -Você não pode fazer isso!

—Sim, eu posso – contrariei. E se eu não pudesse, eu faria da mesma forma. 

.....................................

"2298

Ela tem os olhos mais azuis que o oceano mais límpido, como os de William, e os cabelos mais dourados e brilhantes do que o sol do meio dia, como os meus. E ela sorri. William diz que não parece com um sorriso, mas eu sei que ela sorri para mim. Eu a amo mais que o mundo, é a única coisa que eu sei. Por que me dói a cada segundo que ela é tirada dos meus braços com o velho pretexto de que eu preciso descansar.

Ela é meu descanso. Minha benção. O amor mais incondicional e indescritível que já tive na vida, maior do que qualquer amor que eu tivesse por Frances, William ou minha mãe.

Por que ela era minha filha. Naquele momento, ela não era a futura rainha da Eurásia, a futura mulher mais poderosa e bela e cobrada de todo o reino. Era o meu bebe. A minha valentia. A minha Valenttina."

.................................

—Bethany? – olhei para cima. Alicia estava parada na porta, parecendo um pouco apreensiva – Eu... Posso entrar?

—Claro! – me endireitei na cama enquanto Romeu aproveitava sua oportunidade de entrar para baixo das cobertas - Está tudo bem? É Livie ou...

—Não, não, Livie está bem, está tudo... Tudo bem, a medida do que podemos chamar de bem por aqui ao menos – ela pegou uma manta marrom escura no meu armário, se enrolando e sentando na cama apenas com os pés cobertos de meias, descobertos, antes de jogar um caderno entre nós - Sou eu quem precisa de ajuda.

—Ajuda? - ergui uma sobrancelha, e ela ergueu o queixo em direção ao caderno. Abri, folheando de trás pra frente às paginas em branco, até uma página cheia de rabiscos irregulares nas linhas, que se assemelhavam a letras.

—Eu tentei, e tentei, e tentei - ela suspirou frustrada - Mas sempre acaba assim de novo... Aprendi a ler e escrever quando pequena Bethany. Leio e respondo cartas, mas parece que qualquer coisa maior do que isso é... Impossível!

—Alicia... - eu não sabia o que dizer, com o caderno nas mãos.

—Quero escrever minha história Bethany - ela suspirou, torcendo as mãos – Eu vi a morte tantas vezes, eu cheguei até aqui e talvez eu seja insignificante e talvez tudo seja, porém eu quero ter a minha história naquela biblioteca junto a de tantas outras musas. Eu não quero que tudo isso se perca.

—Quer que eu escreva pra você? – perguntei, e me assustei quando ela assentiu confirmando – Alicia é a sua história, eu... Não sei se eu poderia fazer isso. Parece invasivo demais.

—Não tem muitas pessoas que eu confie, Bethany... Mas você me conhece e conhece Apolo. Eu espero que isso baste para que você entenda o quão tolos nos fomos em alguns momentos – ela riu, e depois ficou com uma expressão sombria – Você também é uma das poucas pessoas que eu confio quando eu entrar em prantos.

Respirei fundo, estendendo a mão para o diário e batendo no travesseiro para que ela se acomodasse enquanto eu pegava uma caneta. Então Alicia falou do início, das primeiras lembranças, da morte da irmã, da chega ao palácio e de como conheceu Tina, Isabel e Annie, e todas as outras que vieram depois até conhecer Apolo e persegui-lo com os olhos pelos salões de baile até ter a chance de chama-lo para dançar na primeira noite dele não sendo um guarda, e falou tanto e com tantas descrições sobre a luz do sol em Madri no inicio da manhã ou as cores do cabelo de Apolo nas luzes coloridas do baile que precisei pedir que se acalmasse em alguns momentos, e reduzisse o ritmo para que eu a acompanhasse com as palavras.

—É o bastante por hoje, estou ficando cansada – suspirou Alicia, que estava agora deitada ao meu lado, olhando sobre meu ombro enquanto eu escrevia – Este é seu vestido para amanhã? – ela olhou para o enorme vestido de baile pendurado alto o bastante para não tocar o chão. Se eu usasse qualquer sapato um pouco menor do que o que Tina designara para aquele vestido, ele se amontoaria aos meus pés.

Eu diria, porém que aquele era o meu favorito de todas as suas criações – Era magnífico, por horas foi impossível tirar os olhos dele, pois aquele vestido diferia de tudo que eu conhecerá desde que chegará ao palácio. Ele não era extravagante ou exagerado, embora fosse tolice sequer compara-lo ao que poderia ser chamado de simples. O trabalho era tão minucioso e complexo, com camas de seda brilhante, tule fosco, rendas e flores minúsculas que formavam o corpete e cascateavam pela saia. Mesmo o tom do vestido era tão parecido com a minha pele, que se não fosse à saia gigantesca eu provavelmente me sentiria nua, apenas vestida de flores.

Era fascinante, de uma forma que eu quisera experimentar na hora que o vi, mas Tina insistira tanto para que eu não o fizesse que cedi ao desejo dela. Como não o faria, se ela havia criado aquela obra da arte?

—Eu não consigo entender como ela consegue – suspirei, sem tirar os olhos do vestido. Sentia que Alicia também não conseguia.

—Tina tem mãos de fada – ela suspirou distante – Passou tanto tempo estudando e praticando que acho que faria de olhos fechados, mas este... Bethany, ele é feito para você.

—Todos os vestidos são "feitos para nós" – eu ri, enrolando uma mecha do cabelo.

—É diferente, este é diferente – ela me mexeu, sentando na cama – É como se ela tivesse capturado em tecido tudo aquilo que nós vemos em você. Toda a leveza e calma brilhante e cheia e minúcias.

—Eu não sou tão interessante assim, Alicia – revirei os olhos, sentando também e sentindo Romeu sob meus pés.

—Com isso eu tenho que concordar – Isabel estava na porta, sorrindo com uma caixa de doces na mão – Importa-se?

Olhei para Alicia, para o diário aberto, mas ela apenas fez sinal para que Isabel se aproximasse e esta fechou a porta e sentou-se na cama conosco, olhando para o vestido – Valenttina realmente se superou – ela piscou, sorrindo de forma que parecia quase orgulhosa – Imagino que isso tenha.

—Ainda não está usando as roupas de Tina?- perguntou Alicia, em um tom reprovador.

—Não faça isso, ela reformou o vestido que eu ia usar – Isabel se defendeu, penteando o cabelo – Apenas queria usar algo que já tinha guardado.

—Bem, isso é uma surpresa – Alicia a olhou curiosa, se inclinando para frente – Vai nos contar ou...?

—Bem, eu não debutei com 18 anos como todas vocês, lembra? – Isabel perguntou casualmente, sorrindo, e Alicia fez uma careta se virando para mim.

—E tornou nossos debutes todos insuportáveis – grunhiu Alicia, olhando feio para Isabel que sorriu travessamente e deu os ombros – E quando foi à hora de nos vingarmos ela recusou a festa dias antes, quando já estava tudo pronto!

—Incluindo o vestido. Eu não queria viver aquilo sem o meu pai nem a minha família comigo – ela deu os ombros, e depois olhou para mim sorrindo – Mas eu tenho uma família.

—Você não espera que eu te abrace, não é mesmo? – perguntou Alicia, fazendo cara de brava – Você trocou os meus sapatos por solas com molas, Isabel!

—Aquela foi uma noite fascinante – Isabel gargalhou – Mas não precisa me abraçar, Bethany já fez isso há alguns dias.

Alicia virou a cabeça rapidamente, quase me fazendo engolir cabelo, apenas para receber um dar de ombros. Algumas coisas não precisavam de explicação imediata.

—A propósito, a irmã da Duquesa de Emillion virá se preparar para o baile conosco, e eu sei que você e Dylan não estão em um bom momento – ela olhou para Isabel muito apreensiva – Mas seja legal com ela.

—A duquesa tem uma irmã? – Isabel perguntou, com o mais falso dos desinteresses que eu já vira.

—Sim, e ela é extremamente amável, mas a condição dela pode deixa-la instável se alguém for cruel ou irrita-la – Alicia olhou para Isabel muito séria, antes de complementar – Ela tem síndrome de Down.

—Oh, certo... – Isabel piscou surpresa – Bem, imagino que eu teria percebido quando a conhecesse. Eu nunca seria...

—Você seria – a cortei, e ela me olhou feio.

—Certo, eu seria – ela fez um beicinho, e depois olhou muito alerta para Alicia – Por curiosidade, como é esta irmã da Duquesa?

—Loira, não muito alta – Alicia deu os ombros – Você dificilmente deve ter visto ela já que esta evitando Dylan e ele que está com ela a maior parte do tempo com todos ocupados.

—Realmente, ele deve estar muito entediado agora que teve que esperar duas semanas a mais antes de correr para o campo de batalha – ela grunhiu, esticando o corpo e deitando na cama ao lado de Alicia.

Mordi o lábio – Uma garota loira, você disse? – como a que eu e Isabel vimos com Dylan pela janela no outro dia.

—Bethany, se você começar a falar sobre Dylan eu vou ter que ler essas adoráveis histórias em voz alta – Isabel falou, folheando o diário de Alicia – Céus, vocês realmente esconderam isso por muito tempo, não é?

—Não sabia que minha vida amorosa lhe interessava Isabel – Alicia brincou, tirando o diário das mãos dela.

—Como não interessaria? – Isabel arregalou os olhos, levando a mão no peito – Depois de todos esses anos não conseguiu perceber o quão apaixonada eu sou por você?

Alicia a acertou com um travesseiro, e então Isabel me acertou por acidente, e eu acertei as duas tantas vezes até não fazer diferença quem havia acertado quem e nós estarmos exaustas gargalhando com Romeu nos observando, e quando eu peguei no sono, tive a impressão que as duas também adormecendo, e como poucas das noites no palácio, naquela eu não me sentia machucada, vazia ou sozinha – eu tinha minhas amigas. Minhas irmãs.


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