Asas Quebradas escrita por CameronDittmann


Capítulo 2
Asas Passadas


Notas iniciais do capítulo

Anteriormente em Asas Quebradas...

"...passei duas semanas em um hospital, fazendo exames praticamente diários e em permanente estado de confusão mental. (...) Custava ele ter me avisado sobre o tal concurso um pouco antes?

Mantenho minha atenção na pasta e folheio alguns papeis para me recordar do tipo de coisa que ela contém. Dou um sorriso ao perceber que ali dentro tem todo o tipo de coisa que eu já tinha tentado desenhar ou escrever.

Um crime perturbador havia ocorrido na cidade turística de Newbridge (...) em vez de coração, Victoria trazia um pássaro em suas entranhas.

— Wow, de onde você desenterrou isso? É aquela sua história policial, não é? — Evan folheia rapidamente as páginas. — E se eu não me engano... esse aqui é o cara de quem você mais gostava."



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Ainda me lembro da sensação que tive quando vi o rosto dele pela primeira vez. Por um momento aquilo me pareceu inacreditável, meus olhos se estreitaram, quase ofuscados. Foi como olhar para o Sol. Matthew tinha um rosto de traços bonitos, cabelos ondulados na altura das orelhas e belos olhos cor de avelã. Reuni nele muitas das características que me agradavam, e por isso ele se tornou meu personagem favorito. Encontro no verso da página, uma descrição.

“Definitivamente, Matthew Reed não era o estereótipo do cara que sonha em ser policial. Esguio e muito alto, aparentava ainda estar por volta dos vinte anos, por mais que já tivesse trinta e pouco. Era graduado em psicologia e física, mas tinha um pouco de conhecimento em todas as áreas e pensamentos rápidos demais – o que fazia com que ele parecesse por muitas vezes uma enciclopédia de fatos irrelevantes.  Tinha alguns problemas de socialização, principalmente quando se tratava de conversas informais. Era capaz de falar perfeitamente bem para uma plateia se estivesse dando uma palestra, mas ao mesmo tempo não conseguia pedir o telefone de uma garota sem gaguejar. Era apaixonado por livros de todos os tipos, mas seus favoritos eram os clássicos da literatura. Sempre tomava café em excesso, até quando não tinha necessidade de permanecer acordado ou alerta. Às vezes, era inseguro para tomar decisões. No passado, tinha uma relação conflituosa com a irmã, Sheila, que não vê há muito tempo.”

Agora é engraçado pensar que com quatorze anos, idealizei o homem dos meus sonhos, e para estar sempre com ele, o transformei em um dos protagonistas de uma história em quadrinhos. E mais engraçado ainda é perceber que, pela aparência e pelos traços de personalidade que descrevi, Matthew ainda me agrada muito. Entendo a emoção que senti ao conseguir desenhá-lo pela primeira vez. E talvez até esteja sentindo um pouco dela novamente.

Folheio as outras páginas e dou uma olhada geral nos outros integrantes da equipe. Tudo bem, não darei todos os méritos da minha emoção à Matthew. Lembro que na época eu estava extremamente satisfeita em ver toda a equipe junta. Quando se tratava de criação de personagens, pensar em como seriam suas aparências era uma das partes mais divertidas do processo. Talvez a lembrança de tal sensação também esteja tão presente pelo fato de que, na hora de transpor para o papel o que eu havia imaginado, eu praticamente não tenha me frustrado. Consegui reproduzir as feições dos personagens de uma forma extremamente próxima de como havia imaginado. O rosto fino de Dahlia Brandt, emoldurado por longos cabelos cacheados. As sobrancelhas marcadas de Ashton, que tanto combinavam com seus traços severos. O queixo anguloso de Robert. As bochechas redondas e o sorriso inconfundível de Paige. Vê-los todos aqui, no papel à minha frente, está sendo uma boa recordação. Folheio as outras fichas e encontro mais descrições, mas se não as visse, pouca diferença faria, pois ao ver a figura de cada um, certos aspectos me vêm na memória instantaneamente. Além de Matthew, havia Dahlia Brandt a delegada inabalável, que levava sua postura rígida até mesmo para sua vida pessoal. O estereótipo do bonitão, Ashton era o eye-candy de história. A ruiva Paige fazia parte da perícia digital e auxiliava a equipe desvendando informações de computadores e outros dispositivos eletrônicos. Robert era a pessoa em quem Dahlia mais confiava, e provavelmente seria indicado para ser seu sucessor. Sempre que era necessário, fazia as vezes de assessor de imprensa da equipe.

O sinal toca e a turma começa a voltar para a sala. Mas isso faz pouca diferença para mim, sempre fui quase invisível para a maioria deles. Não que isso me incomode, com certeza não faz parte da minha realidade ser a garota que sofre porque é excluída e sofre bullying por estar fora de algum padrão de beleza ou por ser considerada estranha. Me dou bem com todo mundo, mas na maioria do tempo, eu só sou irrelevante para os outros. E isso tem lá suas vantagens, por exemplo, agora, mesmo com todos em sala, eu vou continuar lendo até que o professor chegue e me mande prestar atenção na aula ou fazer algum dever no livro. Coloco a ficha de Matthew no seu devido lugar, atrás de todas as outras, e começo a lê-las na ordem certa.

“Dahlia Brandt era a chefe da equipe. Racional, firme e compenetrada. Seu maior desafio era conciliar sua vida pessoal e profissional. Apesar de quase nunca demonstrar emoções, ficou marcada pela morte do marido, seu companheiro há quase dez anos...”

Me distraio da leitura. Acho estranho o professor não ter chegado até aquela hora, a turma já havia subido há uns vinte minutos e nenhum dos nossos professores é dado a atrasos, nem mesmo o de literatura. Por não estar tendo aula, a sala está um tanto desorganizada: vários estudantes de pé, andando livremente e conversando, e alguns até sentados na mesa do professor. Na mesa mesmo, sobre o tampo da mesa, não ocupando o lugar do professor. Rob chega na porta, abre e olha pelos corredores.

— Ué, cadê o professor? O Rick não costuma chegar atrasado... — ele diz, voltando para a sala e fechando a porta.

“O professor faltou.” Ouço uma voz responder ao questionamento dele. Por um momento, penso que ele também ouviu a resposta, mas pela falta de comemoração, percebo que ele não havia escutado.

— O professor faltou, não ouviu que te responderam? — Falo olhando para ele, sem sair da minha mesa.

— Alguém respondeu? — Rob arregala os olhos, surpreso.

— Sim, eu acabei de ouvir.

Tenho certeza de que ouvi aquela resposta, mas ele não parece acreditar. Saio da cadeira e olho para o corredor, em busca da Bea ou de alguém que tivesse circulando por ali e que pudesse ter sanado a dúvida do meu colega de classe, porque normalmente tem um responsável vigiando os corredores, em busca de alunos matando aulas ou alguém que precise de informações. Durante a manhã a responsável é uma funcionária chamada Bea, uma havaiana muito gente boa que passa os intervalos conversando comigo e com Evan quando não estamos a fim de ficar no tumulto que a cantina vira durante a hora do lanche, o que acontece com uma certa frequência. Mas não vejo Bea ou qualquer outra pessoa que possa ter respondido, o corredor está morto, vazio, até mesmo as turmas que estão em aulas estão relativamente quietas. Será que agora eu escuto coisas? Porque só me falta essa, a encefalite ter me deixado com alguma sequela louca que me faz ouvir coisas que não existem, e ainda por cima coisas que respondem perguntas dos outros.

Fecho a porta e congelo na cadeira por alguns segundos. Já estou ouvindo coisas, será que também vou começar a ter sonhos estranhos e ficar igual a minha mãe? Não que minha mãe seja uma má pessoa, mas a verdade é que nunca fomos o tipo de pessoas que, além de mãe e filha, são melhores amigas e confidentes. Sempre teve uma certa formalidade entre nós, até mesmo nas conversas mais corriqueiras. Por exemplo, nunca tivemos aquele tipo de conversa que os pais têm com os filhos quando eles estão entrando na adolescência, e sabemos relativamente bem pouco uma da vida da outra. Ela não faz ideia de como são meus dias, e eu pouco sei como eram as coisas “no tempo dela” ou o que ela fazia quando era mais nova. Em uma das poucas histórias sobre a juventude dela que eu conheço, soube que ela teve alguns sonhos proféticos que chocaram toda a família. Previu uma onda gigante e um grande deslizamento de terra, mas sem saber exatamente onde iam acontecer. Previu a morte do irmão e até minha aparência antes do meu nascimento. Acredito que isso deve ter feito com que se tornasse extremamente fechada e religiosa, apesar de nunca ter imposto toda essa religiosidade para mim. Ainda assim, prefiro não ficar maquinando sobre isso, gosto de acreditar que o que ela tem é algum distúrbio do qual ela, mesmo sendo médica, se recusa a tratar.

De repente, a coordenadora abre a porta, interrompendo meus pensamentos. A sala inteira se cala e de maneira automática, os alunos que estão em pé voltam discretamente para seus lugares, com o medo de uma reprimenda transparecendo no olhar. Apesar disso, o sorriso no rosto dela não mostra interesse nenhum em punir ninguém. Nada formal, ela anuncia:

— Oi gente, só vim avisar que o professor Rick passou mal e foi embora, então esses dois tempos de agora estão vagos, ok? — O tom de voz dela expressa um carinho quase maternal. — Só por favor não fiquem saindo da sala porque as outras turmas estão tendo aulas, tudo bem?

Todos concordam e começam a conversar baixo assim que ela foi embora. Respiro fundo e sinto um certo alívio. Certamente ela estava passando pelo corredor e, já pronta para comunicar a ausência do Rick pra gente, ouviu a pergunta do Rob e a respondeu antes de entrar em uma sala qualquer. E já que tenho a confirmação da minha sanidade novamente, aproveito que terei tempo para terminar de ler meus papeis. Lógico que alguns minutos depois da saída da coordenadora a desordem e o barulho tomaram conta da sala novamente, mas nada capaz de tirar minha concentração. Fico levemente triste ao constatar que a maior ficha era mesmo a de Matthew. Dahlia, Robert, Paige e Ashton tinham anotações de poucas linhas. O que mais preenchia os espaços em branco das páginas mesmo eram desenhos. Rascunhos de algumas poses deles em ação. Dahlia e Robert apontando as armas para alguém não identificado. Matthew com uma expressão desapontada segurando um copo de café, e uma seta indicando o copo como “descafeinado”. Paige usando um computador, esboços de Ashton com a camisa molhada sem nenhum motivo aparente. Em uma folha separada, um esboço bem leve da equipe reunida. Nem mesmo os rostos estavam desenhados, mas só por alguns detalhes como a silhueta e as diferenças de altura era possível saber quem era quem.

Folheio mais páginas. Não encontro nada sobre outros personagens além dos investigadores. Acho que meu intuito era criar uma trama que mostrasse não só o crime e a velha e boa dinâmica de gato e rato entre polícia e serial killer, mas também os conflitos pessoais de cada um dos membros da divisão de homicídios. E de alguma forma, eles eram como uma família. Tinham que apoiar uns aos outros para que não sucumbissem ao estresse da profissão ou da vida pessoal. Esboço um sorriso quando olho para a mesa do professor e a vejo vazia. Desejo melhoras à você, Rick, mas nada podia ser mais perfeito do que essa sua falta. Tenho mais de uma hora inteira para me dedicar aos meus investigadores e um assassino interessante.

Estou tão animada que leio tudo rápido demais e me decepciono profundamente ao descobrir que eu não tinha escrito um final. Aliás, tudo estava ainda bem longe de ter um final. Os esboços e storyboards paravam quando havia o relato de um novo desaparecimento, agora de uma estudante chamada Lauren Stewart, e o paradeiro da garota ainda ia ser investigado. Matthew tinha conhecido uma pessoa misteriosa por causa de uma ligação para um número telefônico errado. Dahlia enfrentava mais uma crise de depressão. Ashton estava tendo problemas com uma modelo, mãe de seu filho. Por um momento, minha frustração é tanta que tenho vontade de pensar um pouco e voltar a desenhar só para não deixar tudo sem um final. O enredo e os personagens certamente não são obras primas, mas ainda gosto muito de todos eles. E não seria difícil recomeçar de onde eu havia parado, a nova vítima não tinha mais do que um nome. Estou certa de que se eu pensar um pouco, quem sabe as antigas ideias não voltam e eu não consigo retomar a história de onde parei? Seria maravilhoso ver que mesmo depois de alguns anos, eu ainda me lembrava dos planos originais sobre como aquele enredo iria prosseguir. Ou então, mesmo que não me lembre exatamente de tudo, teria de novo a sensação de exercitar a criatividade para fazer algo diferente. E quem sabe não fica até melhor do que meus planos originais?


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Notas finais do capítulo

Até o próximo.
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